E agora pergunto eu...

08 Sep. 2020 Geralda Embaló Opinião
D.R

Mais uma pessoa morreu às mãos da nossa polícia no âmbito do cumprimento das regras de prevenção do Covid 19. A última leva de regras para além da multa pela ausência de mascara agora inclui a multa na ausência de máscara quando se conduz no carro sozinho, uma recomendação que não veio da Organização Mundial de Saude, sendo que nos paises em que pude consultar o uso da mascara é recomendado ou obrigatório para quem anda com pressoas no carro. A questão do ar condicionado espalhar o vírus verifica-se no caso de presença do vírus e teoricamemte se a pessoa está contaminada deve ficar em casa e se o ar do carro fizer circular o vírus, sendo que está sozinha, o perigo também é relativo. Perigo mesmo é cada vez mais, encontrar-se com a policia.

Desta vez foi um médico que foi levado para uma esquadra por falta de ATM para pagar uma multa que diz a lei que tem 30 dias para pagar, e que morreu aparentemente de uma hemorragia na cabeça. A policia terá justificado a morte numa primeira fase com uma ferida causada por uma queda em que embateu num objecto contundente. O que a ser verdade, levanta a questão de “se estava ferido porque é que não foi encaminhado para um pronto socorro em vez de deixado até morrer”.

Ainda se vão investigar as causas concretas da morte e esperemos que seja uma investigação transparente e com resultados que tragam esclarecimentos cabais à família, mas já se sabe à partida, que caso não tivesse sido levado para a esquadra pela polícia por causa de estar sem máscara, ainda estaria vivo mesmo que apanhasse covid. Por tanto é a prevenção policial, e não a doença, a matar as pessoas.

Não imagino o choque violento e a revolta e que a família deve estar a sentir neste momento, a dor da perda e não se deseja a ninguém, este medico bem como os outros que morrem sem necessidade nenhuma só porque temos instituições incompetentes e malformadas, são sempre filhos, irmãos, pais família de alguém que sofre pela perda.

 Aqui ficam sentimentos, extensivos aos outros que morreram às mãos da polícia desde o início da pandemia, ou por não terem máscara ou por não estarem a cumprir o recolhimento obrigatório, ou as regras do estado de calamidade como foi o caso do jovem no bairro do prenda de 23 anos e que tinha a vida pela frente. Poderia a vir a ser médico ou enfermeiro ou professor ou outra das muitas coisas que o país precisa desesperadamente, em vez de mais um que perde a vida por simples azar de se cruzar com um polícia que, como muitos, não sabe qual é a verdadeira função da farda que usa. Que não sabe que a sua função primária, assim como a do médico que morreu, é ou deve ser, preservar a vida dos cidadãos. Tenho amigos polícias e por isso sei que há muitos comprometidos com a instituição e com o dever de proteger o público, polícias que se envergonham quando os colegas borram a farda desta maneira. E sei que apesar dos seus melhores esforços a corporação é composta de milhares de efectivos com diferentes graus de educação e a tarefa é hercúlea.

Mas narrativas que validam violência como a dos ‘rebuçados e chocolates’, num contexto que se conhece cheio de debilidades por parte de quem executa ordens, a criação de regras do pé para a mão sem contemplação inclusivé do nível de compreensão dos policias na rua, previsivelmente vão dar este tipo de resultado infeliz. Os nossos governantes continuam a pensar como quem não vive na mesma realidade dos que governa, como quem não conhece a polícia que tem. Não tem sensibilidade para perceber os efeitos colaterais das imposições e que logicamente a autorização de cobrança de multas (que facilmente se transformam em gasosas), numa altura em que a população já anda tão espremida, pode criar estas situações.  

Diz o ditado que ‘quando a casa do teu vizinho esta a arder deves ir buscar um balde de água para apagar o fogo’. Isto porque a probabilidade é de que o fogo queime a aldeia toda de que o mal chegue a todos. Este ditado lembra uma coisa que vale lembrar, até para quem se sente hoje muito poderoso. Vale a pena fazer o possível para termos instituições melhores para todos, mais humanas sobretudo, comprometidas com a nação e com as pessoas. Quanto mais não seja porque todos, poderosos menos, mas também, podem vir a estar numa situação em que se vêem vítimas de instituições falidas de forma directa ou indirecta. Amanhã podem ser  sobrinhos, primos, irmãos a morrerem na rua por um disparo de um polícia que se habituou a pensar que por estar armado e fardado tem direito de tirar a vida a quem lhe torce o nariz.

E porque este fracasso das nossas instituições públicas se estende a outras áreas como a saúde, a educação e a justiça, nós, os nossos irmãos os nossos filhos, os nossos pais todos podem ser vítimas das enxurradas de más práticas, quer policiais, quer médicas nos hospitais, quer da nossa justiça. Tudo, enquanto pouco se reclama porque não chegou a vez da sua casa arder e então não se vê necessidade de pegar no balde enquanto é a casa dos outros. E agora pergunto eu, será este, a continuidade de mortes sem sentido, o preço a pagar pelo silencio generalizado quando as nossas instituições falham? Quando cometem crimes e injustiças?

Ainda recentemente vi online um post que dizia que as nossas instituições, a polícia, a media, até a saúde e a educação, parecem actuar como se trabalhassem não para o Estado, para a pessoas, mas para o poder, no caso o partido. E a verdade é que se fosse um dirigente do partido que anda de Lexus e motorista, o polícia nem tão pouco mandaria parar o carro. Estas são injustiças com que convivemos normalmente e que podem ser letais como foram nestes casos. Injustiças que valem a pena contestar para um país melhor para todos. Foi um médico, ontem um jovem antes de ontem um teenager, antes do Covid eram mães que vendem na rua... O problema não está nas regras mas em quem as executa.

Se continuarmos a olhar para o incêndio ele vai continuar a marcha. Mantendo em mente que em todas as instituições há pessoas de valor e que a instituição policial é essencial para o país, vale a pena, sem arruaça, sem perturbação da ordem, sem violência de qualquer espécie, e, mas com firmeza com voz e organização cada um pegar no seu balde e combater o incêndio para impedir que ele alastre em vez de se olhar para o lado. Subscrevo o que escreveu Ismael Mateus, se caísse um chefe grande quando os (múltiplos chefes pequeninos) fazem asneira, teríamos muito menos asneiras. Responsabilização séria precisa-se.

Geralda Embaló

Geralda Embaló

Directora-geral adjunta do Valor Económico