E agora pergunto eu...
Numa semana em que a nossa actualidade, que estava a ser marcada pelo lixo nas ruas que continua a invadir os espaços públicos e pelo aumento brutal da fome que faz com que se vejam cada vez mais pessoas a vasculhar nesse lixo, o anúncio de revisão constitucional feito pelo Presidente da República retomou a batuta da agenda. E se a intenção era desviar as atenções, de assuntos negativos como o episódio da visita a Benguela, com mais uma declaração equivocada (que foi o alvo certeiro da brilhante pena do catedrático jornalista Graça Campos), a intensão resultou em pleno e só se fala das alterações e possíveis alterações à lei magna.
E, naturalmente, essa revisão é motivo de várias perguntas, ainda essencialmente em torno do que vai significar essa alteração na prática, de como vai solidificar o Estado democrático ou fazer o contrário, de como vai melhorar ou piorar a vida das pessoas porque devia ser isso mais relevante.E, as perguntas giram inevitavelmente em torno também do porquê de ser feita agora, a um ano de eleições, quando o PR até tinha dito, naquele estilo algo boiadeiro paternalista que o caracteriza, que não lhe competia proceder a alterações à Constituição que era muito boa, e, quando há bem pouco tempo o partido, na voz do porta-voz garantia numa entrevista ao valor económico que não haveria revisão constitucional nenhuma com a mesma assertividade com que agora há de defender o contrário...
Esta capacidade invertebrada, e digo invertebrada porque se tiver ossos os malabarismos, o gira aqui curva ali, a que a política obriga vão parti-los, esta capacidade de se defender o absoluto contrário do que se defendia ontem, ao ponto do convencimento absoluto de que o preto é branco, de que o sol é azul e o céu verde, de que a Constituição que até ontem não era para mexer, hoje já está errada e carece de mexida, o desdizer de qualquer convicção se assim o partido ou o chefe o ditar, torna-se cada vez mais marca dos nossos políticos. Esta capacidade de se auto-contradizer com a mesma garra e com a mesma arrogância de quem sempre esteve naturalmente certo, do lado da razão absoluta, lembra sempre um dos meus livros favoritos, o 1984 de George Orwell, e dos termos que ele cunhou com a novilíngua e com os duplopensantes para além do que se tornou mais famoso e programa de TV duvidosa: o BigBrother. Estou recorrentemente a citar Orwell porque era de um brilhantismo tal que as obras que escreveu há mais de 70 anos, continuam a ter respaldo prático hoje em dia e recomendam-se vivamente.
Mas voltando às perguntas na ordem do dia, e ao racional para uma alteração constitucional a esta altura do campeonato em que temos eleições no próximo ano, as ansiedades e receios tanto do público como da oposição, são perfeitamente justificáveis porque, diga o que disser o governo com aquela convicção tantas vezes duplopensante, é sempre de estranhar uma mexida desta ordem onde até aqui não se quis mexer. E é curioso que algumas das alterações mais explicadas pelo governo, nomeadamente a conferência de mais independência ao BNA, a retirada do gradualismo e a questão das nacionalizações são questões mesmo dignas e exemplificadoras desse duplo pensamento.
No caso da independência do BNA que o representante do FMI entrevistado pelo VE na semana passada aplaude, e cujo líder vai passar também a ser validado pelo parlamento, é duplopensamento no sentido em que não se muda grande coisa quanto à independência do banco central enquanto for o presidente a nomear o governador e a ter a prerrogativa de o tirar do BNA quando quiser sem quaisquer explicações.
No caso da retirada do gradualismo previsto na actual constituição, o duplopensamento torna-se visível no sentido que ainda ontem o mesmo governo se desdobrava em justificações para o gradualismo.
No caso das nacionalizações é duplopensamento no sentido em que o governo tinha feito prioridade da atracção de investimento (depois da prioridade do combate à corrupção de alguns) e a última coisa que os investidores querem ouvir falar quando ponderam investir num país, principalmente num país africano, é em governos com poder de nacionalizar à sua própria descrição. Se a intenção era validar definitivamente as questionáveis apreensões coercivas, feitas sem processos transparentes e tramitados em julgado, por mais novilíngua que se use para justificar nacionalizações, provavelmente continuarão a ser uma sombra para o investimento... e agora pergunto, eu que investidor vai meter milhões em indústrias em que amanhã corre o risco de chegar outro governo que pode nacionalizar também porque o anterior introduziu essa prerrogativa e nacionalizou mal, a três pancadas porque tinha pressa, apesar de ser mesmo o chefe que lembra que “o apressado come cru”... O nível da nossa novilíngua às vezes é assim, como dizer, um bocado ‘mais ou menos’...
Se há coisa que a História ensina é que há mais marés que marinheiros e que o que é validado hoje, por mais atroz que seja, pode bem ser anulado amanhã. Bom exemplo disso é a anulação esta semana das condenações judiciais altamente politizadas a Lula da Silva no Brasil, e que o tornam elegível novamente. A melhor política é sempre o reconhecimento de que os líderes são passageiros, meros mortais, e que devem trabalhar para solidificar as instituições em vez de as usarem para benefício da sua própria imagem.
Esperemos que estas alterações constitucionais venham de facto melhorar a vida das pessoas, venham contribuir, porque também sabemos que vai levar tempo a melhorar, para uma Angola melhor, mais inclusiva, menos centralizada, menos partidarizada, mais livre. Esperemos que a revisão nos surpreenda pela positiva, sem estalas, sem armadilhas desenhadas para favorecer o partido no poder, que já lá está há tanto tempo que deve criar condições para o país poder funcionar de instituições em vez de de partidos. Esperemos que a expectativa não seja gorada... com esperança querido leitor porque ela é a última que morre, aqui ficam os votos de que tenha uma excelente semana e marcamos aqui encontro na sua Rádio Essencial e neste espaço.
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