E agora pergunto eu...
Na semana que passou, a liberdade de expressão em Angola foi premiada. Um dos prémios foi a ausência de rebuçados e chocolates aos manifestantes, que, diga-se de passagem, já é um excelente prémio e, sobretudo, um passo importante no reconhecimento de que a liberdade de expressão pela manifestação é um direito que cabe ao Governo e à polícia respeitar e fazer respeitar.
A única coisa a lamentar é ter sido necessário a vida de um jovem perdida às mãos da polícia e a respectiva condenação da comunidade internacional para que esse direito de manifestação de facto passasse à prática. E esperemos que tenha passado à prática definitivamente. De resto, as reacções de preocupação quanto à integridade da estátua do Fundador da Nação são de tal ordem contrastantes com o silêncio quanto à morte do jovem Inocêncio Matos, que se ridicularizam quanto mais alto gritam.
O outro prémio, este vindo de fora, para a liberdade de expressão em Angola foi para o cartoonista Sérgio Piçarra, que, com os seus cartoons brilhantes, mordazes e inteligentes, contribuiu e passo a citar “de modo excepcional para a promoção dos direitos humanos e do estado de direito”. Mais do que merecido, este prémio é uma mensagem clara para a nossa classe dirigente e para a que quer dirigir no futuro: a promoção dos direitos humanos é essencial e prioritária. Aprendam com as mensagens dos personagens dos cartoons de Piçarra, que já se tornaram instituições, aprendam as prioridades que o pequeno futuro e a Esperança representam, com a repulsa causada pelo personagem do Bajulino, com o ridículo governativo que, tantas vezes, se torna caricaturável.
O último cartoon que vi descrevia a dança da família dos deputados que aprovaram um bónus de natal para si mesmos, uma notícia do Novo Jornal que motivou a condenação da opinião pública. E o que vimos em resposta foi um espectáculo triste.
Os deputados remeteram-se ao silêncio em vez de se virem explicar. Alguns diziam não saber do bónus, outros explicaram que os valores do bónus de Natal não são iguais para todos, outros explicaram que o bónus já existia e que foi apenas regulado agora. Vimos deputados do partido do poder fazerem o costume, dizerem que a notícia era falsa e com isso a ridicularizarem-se, mas pergunto-me com todas as explicações para validar e justificar o dito bónus, se os deputados sentem que estão a representar o povo nesse recebimento? E agora pergunto eu, nesta altura, um bónus de Natal para os nossos representantes representa-nos? Representa a maioria dos angolanos? Nesta altura em que o número de pessoas a procurar no lixo o que comer, em que as empresas que resistem (e com excepção das beneficiadas pelo Governo) andam todas a penar, sem saber como vão sobreviver, num ano em que muitas tiveram de despedir trabalhadores, muitas têm salários em atraso e nem sonham com subsídios, é nesta altura que os representantes do povo sentem que representam esse povo com o recebimento de bónus de Natal?
Sem populismos de quaisquer ordens, até porque se percebe quando os deputados vêm explicar que não têm recebido para as despesas e que também eles têm atrasos que prejudicam mesmo a actividade. Mas a aprovação de um bónus pressupõe uma convergência na atribuição de uma benesse quando a maioria esmagadora só perdeu benesses nos últimos anos, sendo que este, com a covid, piorou substancialmente.
É uma convergência que só pode decepcionar um eleitorado pobre e miserável, sem emprego, sem perspectiva de Natal algum, e que é a maioria.
A convergência no sentido do recebimento de bónus de qualquer espécie é a mesma que justifica Lexus para os deputados ou que se gaste uma verdadeira fortuna na construção e manutenção daquele gigante que é a Assembleia ou em "melhorar" os aposentos da presidência, com cadeirões de couro gigantes, que só apequenam a entidade que lá se senta. Isto quando a prioridade devia ter sido sempre o investimento nas pessoas para termos um país melhor para todos. Os governantes e os representantes do povo, em geral, deviam de facto representar a maioria em vez de se colocarem acima dela como prioridade e de aprovarem para si mesmos luxos e benesses que a maioria que representam não tem.
E isto não é populismo, nem ideologia comunista porque quem gosta de luxo deve trabalhar para o ter sim, mas no privado e não a partir de dividendos de um Estado com uma população que deixa morrer à fome duas crianças com menos de cinco anos a cada hora, 46 crianças mortas todos os dias. Num estado assim, os políticos devem representar a maioria e ter direito da parte do Estado ao mesmo estatuto que essa maioria, porque o que deve ser preocupação do Estado devem ser os hospitais, as escolas e o garante de que a maioria tem condições básicas de sobrevivência, antes dos bónus dos seus representantes. Isso não seria populismo, mas um Estado ao serviço da equidade.
A propósito de equidade, na Inglaterra, a crise está a servir para rever algumas lógicas com lições importantes sobre a diminuição da desigualdade. Na semana que passou um relatório da renomada London School of Economics voltou a reforçar a ideia de um imposto pontual sobre a riqueza como uma solução melhor do que impostos generalizados que arrefecem o consumo, que nesta altura para reanimar a economia é instrumental. No Financial Times, Martin Wolf, afirmava que a doutrina que guiou economistas e corporativistas durante os últimos 50 anos e que ditava que a única responsabilidade social do negócio é o aumento dos lucros (Milton Friedman) estava errada. Um imposto aos ricos nunca seria bem visto numa sociedade capitalista, no entanto, até nas mais desenvolvidas, em cenário de crise profunda, os pressupostos estão a ser postos em causa. Por aqui, seria boa ideia o Estado reavaliar seriamente a dívida interna, não com as empresas fornecedoras com que acumula dívidas proibitivas, mas com a banca, por exemplo, que, indiferente às sucessivas crises, consegue sempre distribuir dividendos e obter lucros apesar de não ceder quase crédito nenhum. Reavaliar, de modo a que os dividendos possam ser canalizados para programas de microcrédito e créditos a pequenas e médias empresas, que forcem a banca a fazer circular o dinheiro para a economia envolvendo os mais pobres e incentivando a criação de postos de trabalho. Neste momento, são precisas medidas drásticas e com benefícios directos para os mais vulneráveis, não é altura para bónus de Natal.
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