E agora pergunto eu...
Uma das últimas unidades do mestrado de marketing político e institucional que fiz é precisamente a comunicação de crise. Todo o mestrado é superinteressante, sobretudo para um jornalista, porque permite entender e desconstruir as técnicas da comunicação para o público e permite entender como comunicam as instituições e sobretudo que efeitos têm ou podem ter essas comunicações junto do público. Esta unidade é uma das últimas e foi lecionada pelo mentor sénior do mestrado, provavelmente para nos ficar na memória e por ser uma das mais instrumentais de toda a formação de comunicação institucional: saber o que dizer quando as coisas correm mal. E é uma aula que faz imensa falta à maioria dos representantes das nossas instituições públicas, até porque começa por lembrar uma lição que no fundo é uma lição de vida, que é a da humildade de reconhecer que, se se está a falar em nome de uma instituição pública, isso significa que se trabalha para o público, é-se servidor público e por isso deve-se contas e a prestação dessas contas é uma obrigação, não um favor. Uma lição que os nossos governantes se alguma vez souberam, esquecem muitas vezes. Nessa aula o professor dividiu a turma, distribuiu situações desastrosas e colocou cada um dos alunos primeiro na capacidade de quem comunica em representação da instituição em causa e depois no lugar de quem é lesado pelo desastre. Uma das situações de crise que calharam ao meu grupo foi um derrame petrolífero e outra um acidente de trabalho em que morreram trabalhadores da empresa que representávamos. Trabalhávamos com casos de estudo reais e em que depois era possível observar e medir o impacto dessas comunicações. Houve casos em que a gestão de crise foi tão má que levou a que a empresa perdesse valor em bolsa, se visse abandonada pelos stakeholders, multada por supervisores e até em falência. A comunicação institucional tem impacto directo na percepção da imagem da instituição e instituições com má imagem pagam sempre um preço elevado. No caso das instituições do Estado, o preço é mais elevado ainda que indirectamente, porque reflecte na imagem externa do país num mundo globalizado em que o crédito soberano que o país recebe da comunidade internacional está atrelado a essa mesma imagem. É verdade que as ações falam mais alto do que as palavras, mas é um paradoxo que na esfera pública as acções dependam tanto das palavras para serem de facto compreendidas.
Foi tema da semana passada e continua a ser o que domina a actualidade desta (ou que pelo menos devia dominar), os acontecimentos em Cafunfo e a reacção das nossas instituições a essa crise. Uma reação falhada a principalmente a nível da preservação da vida que deve ser sempre prioritária para todos e mais para instituições de ordem pública.
Li online várias críticas à pressa em comentar o assunto na ausência de informação confirmada e confiável, que são perfeitamente compreensíveis, porque temos um histórico de informações falsas prestadas tanto por vítimas como por agressores que se fazem passar por vítimas e é sempre difícil perceber de facto quem é quem e o que se passou realmente. E muitas vezes os comentários desinformados contribuem para incendiar situações que se querem sanadas. No entanto, volto a reiterar que o que se sabe com certeza, através principalmente da comunicação em estilo bélico das autoridades (da polícia e do MININT) e dos vídeos a circular online que mostram imagens de acções de uma violência gratuita, vingativa e perfeitamente inaceitável independentemente do contexto contra gente visivelmente indefesa no chão, são mais do que suficiente para atestar a falência de instituições que como a polícia são instrumentais para a saúde de qualquer sociedade.
Não se trata aqui de apontar o dedo só para apontar culpados. É preciso apurar responsabilidades para que não torne a acontecer e para restaurar a confiança nessas autoridades. Trata-se de pôr ao serviço de um bem comum, nomeadamente a segurança pública, os muitos neurónios e as muitas vozes que temos e que colocam acima de qualquer partidarismo ou nacionalismo ou ismo de qualquer feitio (e que as há mesmo dentro do sistema) porque o bem vida (como costuma dizer a nossa ministra da saúde), é o mais importante preservar.
Aqueles corpos ensanguentados arrastados no chão que vemos nos vídeos feitos pelas próprias forças que deviam preservar a ordem, em vez de embarcar em vinganças sanguinárias com laivos nacionalistas que só acabam envergonhando a nação, são filhos de mães e de pais, são eles próprios pais de crianças que podem ver os seus pisados por botas da ordem pública, são irmãos são tios são família de alguém... e agora pergunto eu, mesmo que se justificassem disparos para defesa da vida dos policiais, como se justifica a selvajaria odiosa que se vê nos vídeos, homens fardados a pisarem em cabeças no chão, a arrastarem corpos que vêm calmamente a esvaírem-se em sangue? É suposto termos medo ou confiança nas nossas autoridades policiais? Se agem com violência mortífera e vingativa tantas vezes como se fossem juízes e carrascos é possível confiarmos-lhes a segurança pública? A segurança dos nossos filhos? Os chefes que elogiam essa violência sem nem terem tempo de analisar a situação toda, podem ter capacidade de reformar estas instituições como é claramente necessário?
Voltando à lição da comunicação de gestão de crise, a primeira coisa que nos ensinam é a demonstrar clara e inequivocamente empatia com quem perdeu mais com o desastre em causa, empatia com quem perdeu entes queridos, empatia com quem sofre mais, o exercício de pensarmos “e se fosse connosco, com os nossos filhos?”. E foi essa empatia que não se viu das nossas autoridades que se puseram a demonizar os mortos a tentar dizer que de alguma forma mereceram morrer daquela maneira. Uma incompetência chocante e tanto mais porque a polícia até tem profissionais capazes e com formação para gerir a comunicação de forma a equilibrar o apoio necessário a qualquer actuação policial com a empatia com quem perdeu mais. Um equilíbrio que procure sanar, criar pontes em vez de incendiar e dividir. Nos discursos dos “misseis” e de “a polícia fez muito bem” viram-se apenas demonstrações do autoritarismo repressivo que fez o país quedar no índice da democracia feito pela Economist (como quedaram a maioria dos países confrontados com a pandemia) e que a continuar assim vai quedar muito mais.
Nesse quadro da falta de empatia foi um bálsamo ler sobre as declarações do ministro da Justiça que assumiu que houve violação dos direitos humanos (ainda que de parte a parte), e que prometeu um inquérito para apurar responsabilidades. Esperemos é que esse inquérito seja independente em vez de a polícia a investigar-se a si própria. Era isso, essa serenidade, maturidade e imparcialidade que se esperava dos outros responsáveis que falaram em nome da polícia e que se esperava do Presidente que até agora se mantém mudo enquanto já se fala em “massacre” em todo o mundo com todos os danos para a imagem do país que essa palavra acarreta. Ver dentro do sistema de governo vozes que se mostram capazes de remar contra a maré, capazes de pensar pelas próprias cabeças, fora da carneirada, capazes de lembrar que o país é de todos não só de quem manda, quase faz renascer a esperança na capacidade do governo de manter a vigilância à sua própria actuação, de manter uma independência higiénica entre poderes que é tão essencial em democracia e que até agora parece ser miragem. Quase... até se ler o comunicado do partido no poder sobre Cafunfo.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...