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E agora pergunto eu…

03 Mar. 2021 Geralda Embaló Opinião

 

Numa semana em que a o mundo pôde olhar para imagens fantásticas do espaço e do planeta Marte, onde já se planeia até criar oxigénio, enquanto o mundo olha para o futuro nós andamos aqui com as makas do passado e com a nossa semana a ser marcada mais uma vez por vídeos e áudios a circular que espelham bem mais uma luta entre classes profissionais no país, lutas que só são sintoma de atraso...

Ainda há pouco tempo vimos os médicos ameaçar os polícias por causa da morte de um dos seus, o médico Sílvio Dala, que foi levado para esquadra por não estar de máscara dentro do seu carro sozinho depois de um turno de serviço, um episódio atroz em que, como muitos outros, ainda não se ouviu falar de responsabilizações. Vimos também os juízes ameaçar polícias porque foram impedidos de transitar durante o tempo de restrições do Covid, vimos antes disso lutas na rua entre polícias e militares, vimos também advogados contra juízes pela ordem de prisão a um dos seus e, ouvimos o Ministro da Economia achincalhar os colegas do Ministério do Comércio, que não se tratando de classes diferentes, serve certamente exemplo da necessidade de humilhar que está na base de muito do nosso atraso geral (apesar de haver quem atribua a confusão em que o país se encontra à ‘faculdade’ de dizer NÃO a um general). Agora vemos a Inspecção Geral da Administração do Estado a ser ameaçada pela coluna formada e armada de polícias em marcha, em resposta à circulação de um vídeo em que o IGAE põe a fugir, com uma rapidez de chita, um polícia apanhado a receber subornos na via pública “Oh Igaiii tamu a viree (...) a polícia tá bem máa” um prenuncio de guerra entre polícias e inspectores que só aumenta a insegurança pública a que já nos acostumámos.

O episódio do vídeo da fuga é paradigmático não só de como as nossas classes profissionais se conseguem descaracterizar completamente, o polícia torna-se ladrão com a mesma facilidade que o super-general se torna um barraqueiro infantil que não ouve não de uma mulher sem mandar prender, mas é também exemplo acabado dos nossos costumeiros faz de conta, que já se tornaram zona de conforto. Faz de conta que é novidade que os polícias penteiam e só por isso é que não se veem pronunciamentos dos responsáveis da polícia, faz de conta que não devem satisfações ao público que deviam servir, faz de conta que a referência do comandante geral à nossa PN como uma das melhores em África não nos faz chorar pelo continente desgraçado. Faz de conta que também não sabemos que os salários dos polícias, tal como da maioria, mal chegam para comprar comida para a família com a inflação que o país enfrenta e que está a fazer a fome aumentar todos os dias, e faz de conta que se acredita que a acção da IGAE é louvável porque vai combater a corrupção institucionalizada. Faz de conta que a acção fiscalizadora de subornos não seria bem mais útil aplicada aos mais altos escalões das instituições públicas que é onde os mil kwanzas se tornam milhões de dólares e se esfumam além-mar.

O faz de conta tornou-se zona de conforto porque nos acostumamos, nos adaptamos, a tudo quando acontece durante muito tempo, porque temos de continuar a existir, explica a biologia adaptativa que essa adaptação é um mecanismo de sobrevivência.

Acostumámo-nos a ver lixo nas ruas amontoado, a pisar em chão de larvas vivas produzidas pelo lixo nauseabundo, tudo apesar de sabermos que principalmente depois de chover ninguém nos salva das malárias e das cóleras que a falta de saneamento traz. Noutros países como a França, os agricultores por exemplo costumam ir despejar o fertilizante fresco saído das bundas do gado à porta dos políticos que decidem as políticas económicas que os prejudicam... E agora pergunto eu, se tivessem o lixo despejado à porta das instituições onde entram e saem para nos representar e governar, será que a sensibilidade para a urgência da resolução do problema do lixo seria maior, mais produtiva? O PR aprovou uma verba extraordinária para acudir o problema, mas é difícil perceber como é que se altera o modelo de recolha sem um plano alternativo efectivo para a transição. É que dura há muito tempo esse casamento entre luxo e lixo que o genial Piçarra desenhou na semana que passou e não se compreende a falta de plano A, B e C. Dura e nós acostumámo-nos apesar de o lixo e as doenças que traz matarem certamente muita gente. A sobrevivência acostuma-nos a tudo.

Acostumámo-nos a ser penteados pelos polícias assim como os policias se acostumaram a pentear, acostumámo-nos a ouvir discursos moralistas vindos de bocas sem moral assim como as bocas sem moral se acostumaram a pregar discursos que não cumprem. E voltando ao vídeo do polícia ‘chita’, esta onda de humilhações públicas (porque é também disso que trata, dos bons contra os maus) foi certamente impulsionada por bocas moralistas, mas frequentemente de moral duvidosa.

Quando os polícias em diferentes áudios se queixam da idoneidade dos inspetores para os estenderem publicamente e sujarem mais a instituição, falam dessa falta de moral.

As acções de inspecção e de combate à corrupção são bem-vindas porque há que começar a corrigir esses vícios a que nos acostumámos todos, mas aquele espectáculo que vimos no vídeo não. E não por questões práticas como a segurança dos cidadãos em redor, porque nada garante que um desses homens armados numa situação de fuga e de desespero não cometa alguma loucura. Não também por questões deontológicas, porque o objectivo da inspecção deve ser corrigir más práticas e não promover espectáculos de rebaixamento público como os que se tornaram recorrentes desde que o combate à corrupção se tornou um show-off para mérito de quem se quer mostrar como ‘o herói que vence o mal’. O combate à corrupção tem de existir, mas os moldes da acusação e julgamento popular não. Não só porque se corre o risco de cometer injustiças, mas porque incentiva a uma queima das bruxas em praça pública a todos os níveis primitiva que só nos leva a mais atraso de vida atraso a que estamos também acostumados. Mas que temos de desacostumar. A propósito de lixo para desacostumar, de demonstrações primitivas e da entrada no ‘março mulher’, e agora pergunto eu... Que dizer de uma farda e alta patente que se envergonha com discursos de “sabes quem eu sou?” Sabemos quem é o general do vídeo mais visto do fim-de-semana que exige reconhecimento... É o mesmo da operação que em 2012, também embuchada da mesma arrogância inflamatória fardada, matou uma criança de 14 anos (Rufino).

Mais uma vez esperam-se responsabilizações e que os discursos da ‘nova era’ saiam do plano oral para a prática. A ver vamos.

Geralda Embaló

Geralda Embaló

Directora-geral adjunta do Valor Económico