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E agora pergunto eu...

12 May. 2021 Geralda Embaló Opinião
D.R

semana que chegou ao fim foi marcada por uma discussão internacional em torno das patentes das vacinas. Os EUA, eterno defensor da iniciativa privada, do lasser-faire, sob a batuta de Joe Biden, que, apesar de velhinho, que caía durante a campanha e era objecto do gozo de Trump, tem surpreendido com uma governação super-enérgica, propuseram agora o impensável para a indústria farmacêutica: o levantamento das patentes das vacinas. O tema é complexo porque as patentes, a protecção aos interesses económicos são o que financia a investigação científica que permite chegar às vacinas, no entanto, a covid-19 (diferente da malária, que mata sobretudo nos países subdesenvolvidos e que, por isso, não é prioritária) mudou a percepção das patentes, que passaram a ser vistas como um entrave à imunização mundial.

Na semana passada, dava aqui exemplos de como priorizar e este é um exemplo excelente porque, antes do lucro das farmacêuticas, que têm direito a ele porque foram elas a investir na investigação, antes do lucro, está a prioridade de preservar a vida humana. Prioridades são prioridades.

Entretanto, por aqui. O Presidente autorizava mais de 760 milhões de dólares para a construção de novas centralidades... E agora pergunto eu, com tanta centralidade construída e deixada ao abandono de Norte a Sul do país, com gado a pastar e paredes a rachar, algumas por ocupar por falta de água ou de outros básicos, construir mais é prioridade? Mas pior, com tantas outras prioridades como a fome ou o combate à malaria e às doenças que o lixo piorou, priorizar a construção de centralidades não é um exemplo de falta de prioridades?

A propósito de coisas fora da lista de prioridades, esta semana assinalou-se o Dia Mundial da Imprensa, e dizer “celebrou-se” seria desajustado porque há pouco para celebrar. O exercício de informar está cada vez mais dificultado. Cada vez é mais difícil captar para a profissão quadros de qualidade que o façam com responsabilidade e respeito ao código e cada vez é mais difícil à imprensa sustentar-se sem amarras que comprometam a sua razão de ser: informar com idoneidade. Num mundo cada vez mais carregado de notícias falsas, de propaganda e de emergências sociais em que seria imperativo o acesso à informação plural, o exercício de informar torna-se mais dificultado pelas acções do Governo que olha para a imprensa ou como um gramofone para manietar e anunciar o que julga ser as suas vitórias, ou como um inimigo a abater.

O quarto poder vê-se, particularmente em sociedades com sistemas democráticos subdesenvolvidos, infantis mesmo, como a nossa, cada vez menos poderoso e impedido de informar. Multiplicam-se os episódios de jornalistas ameaçados, coagidos, processados criminalmente, detidos, vítimas de violência policial. Aqui mesmo nesta empresa que lhe faz chegar o Valor Económico e a Rádio Essencial tivemos quatro profissionais presos durante três dias por fazerem jornalismo. A profissão cada vez convida menos. Multiplicam-se as acções de controlo e monopolização dos media que ferem a liberdade de imprensa e o direito à informação. Os media públicos, coitados, são instrumentalizados pornograficamente, a ponto de cumprirem missões de tal forma propagandísticas e abjectas que chegam a insultar a inteligência tanto do público, quanto dos profissionais desses meios. Na semana que passou, foi “a maça que o líder da Oposição terá ido comprar a Portugal” a estrela do ‘prime time’. Como já se tornou práxis dos órgãos reféns do Governo, não se ouviu a versão do acusado, como não se ouviu a propósito de tudo o resto que envolve obcecadamente o seu nome sem lhe dar a mesma chance de se defender.

Quando vejo insultos aos media públicos e aos que passaram para a esfera do Governo, lembro sempre que também os jornalistas desses meios acreditaram que, com João Lourenço, estavam a entrar numa nova era, que lhes permitiria o que é corriqueiro nos outros países, cobrir um evento da Oposição, por exemplo, com a mesma naturalidade que de um partido no poder. No início do mandato do Presidente, a televisão pública adoptou uma nova postura, fazia perguntas incomodas aos governantes, as perguntas que defendiam o interesse público, cobria o mau estado das vias, as dificuldades dos agricultores para as transitar, dos médicos nos hospitais... Até que o sistema voltou à velha forma porque estão lá as pessoas velhas. E a cobertura jornalística voltou à parcialidade propagandística que dá o palco a qualquer confuso que ataque o líder da Oposição e que sirva para distrair de temas que o poder quer ver esquecidos como as promessas autárquicas por cumprir, a fome de doer no Sul do país e a catástrofe nos hospitais a abarrotar de doentes adoecidos pelo lixo.

Os media privados, os poucos que sobrevivem a todas as dificuldades de se sustentar, vivem existências de pânico dependentes de accionistas que sabem de uma hora para outra podem desaparecer e de anunciantes que maioritariamente receiam represálias do Governo se anunciarem em meios que espelham uma realidade mais real do que o país das maravilhas pintado pelos meios da propaganda governamental. Nos media, há pouco para celebrar no Dia Mundial da Imprensa.

Entretanto, e voltando às prioridades, a foto que vê nesta página é do Namibe, e a criança mucubal a julgar pelo paninho preso por missangas que se usa na minha tribo de origem materna.

Não há palavras para descrever a fúria e a amargura que brotam da comparação dessas imagens com as prioridades do Governo expressas em gastos milionários do OGE. “Construção, construção, construção, satélite, metro de superfície”, e a coexistir com esses projectos a FOME nua e crua, violenta, impiedosa.

Há uma calamidade silenciosa a acontecer e, mais do que tirar fotos a armazéns cheios de comida que vai chegar por ‘benevolência dos nossos governantes’, é preciso que o alimento chegue mesmo e rapidamente às pessoas, às crianças, que, de outra forma, vão morrendo. Porque, mais do que apontar a evidente falência do Governo que andou a perder tempo precioso a negar a existência da FOME e que até agora evita assumi-la por vergonha, é preciso agir.

Às iniciativas que já existem e que tentam recolher apoios para mandar para o Sul do país, juntou-se, mais uma, num grupo online de voluntários anónimos que querem fazer chegar comida rápido sem colher louros, sem aparecer nas fotografias com t-shirt do partido seja de que cor for, sem alimentar politiquismos que nos levaram a este estado miserável de coisas. Todas as iniciativas são poucas porque há muita gente com fome. Procure ‘S.O.S. Angola Sul – Voluntários Anónimos de Angola’, querido leitor, apoie as recolhas de donativos que lá e noutros órgãos estão a decorrer. Há uma calamidade a acontecer e há que travá-la.

Geralda Embaló

Geralda Embaló

Directora-geral adjunta do Valor Económico