E agora pergunto eu...
semana que chegou ao fim foi marcada por uma discussão internacional em torno das patentes das vacinas. Os EUA, eterno defensor da iniciativa privada, do lasser-faire, sob a batuta de Joe Biden, que, apesar de velhinho, que caía durante a campanha e era objecto do gozo de Trump, tem surpreendido com uma governação super-enérgica, propuseram agora o impensável para a indústria farmacêutica: o levantamento das patentes das vacinas. O tema é complexo porque as patentes, a protecção aos interesses económicos são o que financia a investigação científica que permite chegar às vacinas, no entanto, a covid-19 (diferente da malária, que mata sobretudo nos países subdesenvolvidos e que, por isso, não é prioritária) mudou a percepção das patentes, que passaram a ser vistas como um entrave à imunização mundial.
Na semana passada, dava aqui exemplos de como priorizar e este é um exemplo excelente porque, antes do lucro das farmacêuticas, que têm direito a ele porque foram elas a investir na investigação, antes do lucro, está a prioridade de preservar a vida humana. Prioridades são prioridades.
Entretanto, por aqui. O Presidente autorizava mais de 760 milhões de dólares para a construção de novas centralidades... E agora pergunto eu, com tanta centralidade construída e deixada ao abandono de Norte a Sul do país, com gado a pastar e paredes a rachar, algumas por ocupar por falta de água ou de outros básicos, construir mais é prioridade? Mas pior, com tantas outras prioridades como a fome ou o combate à malaria e às doenças que o lixo piorou, priorizar a construção de centralidades não é um exemplo de falta de prioridades?
A propósito de coisas fora da lista de prioridades, esta semana assinalou-se o Dia Mundial da Imprensa, e dizer “celebrou-se” seria desajustado porque há pouco para celebrar. O exercício de informar está cada vez mais dificultado. Cada vez é mais difícil captar para a profissão quadros de qualidade que o façam com responsabilidade e respeito ao código e cada vez é mais difícil à imprensa sustentar-se sem amarras que comprometam a sua razão de ser: informar com idoneidade. Num mundo cada vez mais carregado de notícias falsas, de propaganda e de emergências sociais em que seria imperativo o acesso à informação plural, o exercício de informar torna-se mais dificultado pelas acções do Governo que olha para a imprensa ou como um gramofone para manietar e anunciar o que julga ser as suas vitórias, ou como um inimigo a abater.
O quarto poder vê-se, particularmente em sociedades com sistemas democráticos subdesenvolvidos, infantis mesmo, como a nossa, cada vez menos poderoso e impedido de informar. Multiplicam-se os episódios de jornalistas ameaçados, coagidos, processados criminalmente, detidos, vítimas de violência policial. Aqui mesmo nesta empresa que lhe faz chegar o Valor Económico e a Rádio Essencial tivemos quatro profissionais presos durante três dias por fazerem jornalismo. A profissão cada vez convida menos. Multiplicam-se as acções de controlo e monopolização dos media que ferem a liberdade de imprensa e o direito à informação. Os media públicos, coitados, são instrumentalizados pornograficamente, a ponto de cumprirem missões de tal forma propagandísticas e abjectas que chegam a insultar a inteligência tanto do público, quanto dos profissionais desses meios. Na semana que passou, foi “a maça que o líder da Oposição terá ido comprar a Portugal” a estrela do ‘prime time’. Como já se tornou práxis dos órgãos reféns do Governo, não se ouviu a versão do acusado, como não se ouviu a propósito de tudo o resto que envolve obcecadamente o seu nome sem lhe dar a mesma chance de se defender.
Quando vejo insultos aos media públicos e aos que passaram para a esfera do Governo, lembro sempre que também os jornalistas desses meios acreditaram que, com João Lourenço, estavam a entrar numa nova era, que lhes permitiria o que é corriqueiro nos outros países, cobrir um evento da Oposição, por exemplo, com a mesma naturalidade que de um partido no poder. No início do mandato do Presidente, a televisão pública adoptou uma nova postura, fazia perguntas incomodas aos governantes, as perguntas que defendiam o interesse público, cobria o mau estado das vias, as dificuldades dos agricultores para as transitar, dos médicos nos hospitais... Até que o sistema voltou à velha forma porque estão lá as pessoas velhas. E a cobertura jornalística voltou à parcialidade propagandística que dá o palco a qualquer confuso que ataque o líder da Oposição e que sirva para distrair de temas que o poder quer ver esquecidos como as promessas autárquicas por cumprir, a fome de doer no Sul do país e a catástrofe nos hospitais a abarrotar de doentes adoecidos pelo lixo.
Os media privados, os poucos que sobrevivem a todas as dificuldades de se sustentar, vivem existências de pânico dependentes de accionistas que sabem de uma hora para outra podem desaparecer e de anunciantes que maioritariamente receiam represálias do Governo se anunciarem em meios que espelham uma realidade mais real do que o país das maravilhas pintado pelos meios da propaganda governamental. Nos media, há pouco para celebrar no Dia Mundial da Imprensa.
Entretanto, e voltando às prioridades, a foto que vê nesta página é do Namibe, e a criança mucubal a julgar pelo paninho preso por missangas que se usa na minha tribo de origem materna.
Não há palavras para descrever a fúria e a amargura que brotam da comparação dessas imagens com as prioridades do Governo expressas em gastos milionários do OGE. “Construção, construção, construção, satélite, metro de superfície”, e a coexistir com esses projectos a FOME nua e crua, violenta, impiedosa.
Há uma calamidade silenciosa a acontecer e, mais do que tirar fotos a armazéns cheios de comida que vai chegar por ‘benevolência dos nossos governantes’, é preciso que o alimento chegue mesmo e rapidamente às pessoas, às crianças, que, de outra forma, vão morrendo. Porque, mais do que apontar a evidente falência do Governo que andou a perder tempo precioso a negar a existência da FOME e que até agora evita assumi-la por vergonha, é preciso agir.
Às iniciativas que já existem e que tentam recolher apoios para mandar para o Sul do país, juntou-se, mais uma, num grupo online de voluntários anónimos que querem fazer chegar comida rápido sem colher louros, sem aparecer nas fotografias com t-shirt do partido seja de que cor for, sem alimentar politiquismos que nos levaram a este estado miserável de coisas. Todas as iniciativas são poucas porque há muita gente com fome. Procure ‘S.O.S. Angola Sul – Voluntários Anónimos de Angola’, querido leitor, apoie as recolhas de donativos que lá e noutros órgãos estão a decorrer. Há uma calamidade a acontecer e há que travá-la.
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