E agora pergunto eu...

19 May. 2021 Geralda Embaló Opinião
D.R

As notícias a marcarem a actualidade desta semana em Angola andaram muito em torno da saúde, e, sobretudo, da falta dela.

O deputado Raul Danda perdeu a vida e as perguntas tocaram nesse tema questionando até que ponto a falta de um sistema de saúde funcional o poderia ter ajudado a tempo de evitar a morte que é mais uma perda de peso a nível do panorama político nacional. Até que ponto poderia ter sinalizado mais cedo algum problema ou ter dado uma assistência mais emergencial que sabemos ser fundamental para salvar vidas. Em Angola, esperar uma ambulância com pessoal treinado e cuidados de emergência a tempo e horas é quase matéria de sonho e necessitar de qualquer tipo de socorro de saúde urgente matéria de pesadelo. As teorias sobre a morte do deputado poder ter mão criminosa não levam em conta que a falta aberrante da saúde no país é meio caminho andado para se morrer com qualquer situação que num país desenvolvido seria tratada com normalidade ou nem aconteceria de todo.

Também o PR colocou a saúde na agenda mediática quando foi apanhar a vacina contra a covid (que esta semana já matou cerca de duas dezenas de pessoas no país) para precaver a sua saúde, mas certamente mais para dar o exemplo aos angolanos. Pergunto-me se não daria jeito também uma vacina antirrábica e de preferência que prevenisse os ímpetos revanchistas que prejudicam a governação fazendo-a ficar cega, tão mais focada em castigar inimigos do que em transformar o país para melhor. E que é contagiosa a ponto de inquinar todo o ambiente à volta... é que a olhos vistos o país tem piorado. A inflação que é dos indicadores que melhor radiografam o que vai na base da economia subiu 24,82% nos últimos 12 meses devido à perda de valor do kwanza e ao aumento dos preços generalizado, mas sobretudo na alimentação, que dizem os nossos governantes já termos condições de produzir para substituir as importações... Há piadas... Angola caiu do terceiro para o oitavo lugar das economias africanas ao cabo de cinco anos de crescimento negativo segundo uma consultora que elabora estudos com dados dos bancos centrais e INE.

Voltando à saúde, os casos de covid aumentaram, as medidas apertaram, soluções essas é que falharam... Os transportes colectivos continuam a amontoar gente de forma absolutamente escandalosa em tempo de pandemia, enquanto o Governo exige um distanciamento social impraticável. Os hospitais, linha da frente do combate à pandemia, são aquela miséria que os vídeos e fotos online mostram, gente amontoada nos corredores, macas divididas entre três pacientes cada uma, as doenças, sobretudo diarreicas tapadas pelo Governo com a peneira da vergonha pela falta de saneamento e recolha de lixo que chegaram a níveis incomportáveis.

“Temos de esclarecer que não há cólera” – diz a ministra, - ok - mas há certamente qualquer coisa que mata bastante a reduzir ainda mais a capacidade hospitalar que já era pouca. Quando ouvimos os hospitais estão à beira do colapso a pergunta óbvia é e agora pergunto eu... não colapsaram já há muito tempo?

Naturalmente que a culpa não é da ministra, que herdou um sistema falhado e que enfrenta ‘doenças Golias’. Mas tapar o sol com a peneira, fingir que o sistema de saúde é tão pouco digno desse nome, dar primazia à covid porque está na moda e estar na moda implica contratos, compras de vacinas, construção de alas covid-19, subsídios internacionais e etc., e com tudo isso tentar esconder o que vai matando todos os dias naqueles corredores da morte dos hospitais, as doenças diarreicas pioradas substancialmente pela irresponsabilidade criminosa com o saneamento e a saúde pública, é insustentável.

Este estado de colapso, que infelizmente não se limita ao sistema de saúde e se estende ao conjunto dos factores e sectores que ditam a qualidade de vida de uma nação, esse estado de colapso é tão flagrante,tão visível que não já pode ser só da responsabilidade de governantes incompetentes.

Da mesma forma que os directores dos hospitais expostos online foram despedidos sem serem os culpados únicos pela miséria palaciana que corrói as unidades que dirigiam (provavelmente foram despedidos mais porque deixaram sair imagens do que por lá acontece) também a ministra não é responsável única ou última do estado desgraçado do sistema de saúde. Pela mesma ordem de ideias também o governo e o presidente não podem ser responsáveis únicos e últimos pela desgraça da nossa economia, apesar das decisões e prioridades erradas que tão frequentemente demonstram.

Há uma responsabilidade de alguma forma partilhada que importa reconhecer para possibilitar mudar o quadro de miséria. Uma responsabilidade partilhada por aqueles que sendo mais esclarecidos “não descem do muro”e não usam a sua capacidade intelectual e interventiva que têm para apontar caminhos diferentes, melhores. Fazem isso em busca de estabilidade pessoal, às vezes, só de paz, porque naturalmente criticar implica arriscar a colecta de inimigos da liberdade de expressão e da capacidade de pensar pela própria cabeça, particularmente numa sociedade em que as vinganças pessoais tomam primazia sobre o interesse público e do país, e em que se tornou comum vermos referências do conhecimento em diferentes áreas completamente abafadas e bloqueadas porque algum chefe, frequentemente muito menos capacitado, assim ditou.

E há também responsabilidades partilhadas com a própria oposição que vive se queixando, mas que não tinha feito até agora um trabalho condigno a apresentar-se como verdadeira alternativa. Uma alternativa que traga oxigénio ao panorama político e social, que ponha de lado o passado e ultrapasse as querelas pessoais para pensar país.

Pode ser que isso mude com a nova plataforma política que junta três pesos pesados da oposição, e que têm um ano para demonstrar ao que vem, e que é capaz de se despir dos partidarismos para trabalhar para construir uma Angola feita de instituições fortes em vez de feita de homens fortes. Que seja capaz de pôr a trabalhar lado a ladoopositores políticos, incluindo mesmo alguns actualmente parte do aparelho de Estado e por isso parte do problema, mas também instrumentais para o desenvolvimento dessas instituições fortes.É preciso que qualquer alternativa seja capaz de unificar em vez de dividir e assim fazer mais pelo país. Têm todos muito que provar como temos nós, eu e o querido leitor. Na semana que passou neste espaço por escrito fiz referência a uma campanha que está a decorrer para acudir à fome no sul do país, procure a página do Facebook S.O.S Angola Sul voluntários anónimos, um grupo feito de pessoas que querem ajudar sem precisar de aparecer nas fotografias, e apoie essa iniciativa ou as outras que de norte a sul fazem recolhas para acudir à calamidade que é bem mais grave do que o covid, uma calamidade feita de fome. Temos essa responsabilidade e a do voto.

Com consciência das responsabilidades partilhadas e esperança em dias melhores, querido ouvinte, marcamos encontro aqui e na sua Rádio Essencial às sextas-feiras.

Geralda Embaló

Geralda Embaló

Directora-geral adjunta do Valor Económico