E agora pergunto eu...
Na semana que passou, a actualidade mundial foi marcada pelas imagens de afegãos de tal modo desesperados para fugir do seu país que arriscam a vida e se penduram em aviões em movimento. Alguém pôs a circular um vídeo lembrando que Angola já viveu tempos semelhantes e que as lideranças incompetentes e perigosas podem fazer com seja insustentável a vida no país de nascença.
Um dos corpos que se vê cair do céus, e do avião em pleno voo, é de um jovem futebolista de 19 anos e que já se vai tornando símbolo da queda de volta às trevas que é para muitos o retorno ao comando Taliban. Um pesadelo em que opositores são mortos e silenciados, particularmente acintoso para as mulheres que, apesar das promessas em contrário, podem voltar a estar sujeitas às leis mais draconianas que as tapam, escondem, proíbem de trabalhar e põem oficialmente sob custódia de irmãos, maridos, filhos e restantes homens da família. Uma perda de liberdades conquistadas repentina a que assistimos através dos media e das redes sociais. Um regresso vertiginoso às trevas que nos faz quase dar graças pela pequenez dos nossos terroristazinhos locais, por isso mesmo, por serem pequeninos, míseros... Na semana que passou, a direcção do jornal Valor Económico, yours truly incluída, foi atacada nas redes sociais por um perfil provavelmente falso dos muitos usados pelos nossos pequenos terroristas e que, como qualquer terrorista, visa impor o terror da censura o medo, a lei da rolha. Visa, pobre diabo, silenciar vozes dissonantes, não alinhadas, sem se aperceber que as suas diatribes não podem senão definir quem tenta atacar bem mais do que quem se ataca.
Não podemos sentir-nos muito especiais porque esse tipo de ataque, de bullying cibernético cobarde, já se tornou marca de uma ala de defensores do partido no poder de tal forma banalizada que, depois de na semana passada o Valor Económico ter publicado uma sondagem da AngoBarómetro, que apontava para uma vitória da UNITA sobre o MPLA nas próximas eleições, os avisos de que o partido se iria vingar do VE vieram de todos os lados. Esse bullying já se tornou tão corriqueiro que é agora previsível. Basta algum meio, ou algum jornalista publicar alguma coisa que o partido considere desalinhada com o seu discurso, que lá vêm a brigada de militontos (essa expressão genial do F8) falar mal do profissional, do meio, dizer que é avençado ou chantagista, chapinhar na vida pessoal da vítima, tentar desacreditá-la com ligações a outros rotulados, e, por vezes, indo bastante mais baixo como já vimos chamarem bêbados, amantizados, doentes e afins, a críticos com os quais não conseguem argumentar com argumentos racionais.
Previsível como um relógio, depois da publicação da sondagem, surgiu então um militonto, provavelmente alicerçado por um grupo de militontos, que pensou que seria de inteligência intimidatória atacar o jornal, neste caso, mensageiro de más noticias para o partido. Em qualquer democracia, os partidos encomendam sondagens para perceberem que ajustes devem fazer à sua imagem e à comunicação com o público, de modo a tornarem-se mais eficientes. A nossa democracia especial anda, pelo contrário, à procura de expedientes administrativos para que, tanto sondagens, como qualquer outro reflexo negativo da governação, seja impedido de chegar à opinião pública como se esse impedimento fosse substituto de um trabalho governativo minimamente, aceitável. O militonto que escreveu falava em “vergonha do panfleto do Zenu para defesa dos 500 milhões” e foi mais longe ao avisar para que ninguém fale com este jornal porque chantageia governantes e empresários – mentiras infantis e avisos desnecessários porque o VE já é vetado pela ala mais beligerante do partido e não é por isso que deixou de fazer jornalismo. No entanto, e porque o articulista que representa orgulhosamente a ala mais ignorante do partido que quer defender parece confuso, vamos aqui aproveitar para esclarecer aqui alguns factos (porque contra factos não há argumentos) relacionados com os temas que tentou usar como ferramentas de intimidação.
Facto: o caso dos 500 milhões, que o Presidente João Lourenço tornou bandeira da luta contra a corrupção e seguindo o líder os militontos repetem como tolos que são, é uma vergonha de facto. Mas não para a defesa ou para quem demonstra que é uma vergonha, mas uma vergonha para um sistema de justiça que, pressionado pela política, na voz do mais alto mandatário da nação (que não se coíbe de emitir julgamentos), condena pessoas a até 8 anos de prisão por um roubo que não tem sequer ‘coisa roubada’. Diferente dos 900 milhões de dólares encontrados numa só conta de Carlos São Vicente, que não voltaram para o país, a transferência dos 500 milhões foi revertida para Angola – o próprio Governo anunciou isso mesmo, pelo que não há coisa roubada – facto: os 500 milhões nunca estiveram em contas dos acusados tão-pouco. Facto: resta então a acusação de ‘intenção de roubo’ que é, no mínimo, ridícula, tendo em causa toda a documentação que a transferência implicou, a autorização do então presidente e o facto de a transferência ter ocorrido entre bancos e no âmbito da política de investimento do banco central, não entre ‘contentores de caranguejos’, mas bancos, com registos de quem efectuou, quem pediu, quem autorizou e todos os trâmites de diligência a que a banca internacional obriga e sem os quais nem teria recebido o dinheiro. Facto, sendo que o dinheiro saiu do banco central, não se pode tratar de ‘branqueamento’ que só se aplica quando o dinheiro é ‘sujo’ ou de origem criminosa, aqui a origem é o BNA. Facto: o ‘Zenu’, que insiste o militonto ser dono do VE, não é nem nunca foi dono do VE. Mas facto mais relevante é que: poderia ser, ele ou qualquer outro, porque estaria sempre sujeito a ver no VE, jornalismo independente feito por jornalistas sem quaisquer interferências políticas na linha editorial, seguindo critérios de relevância e interesse público. Se ser propriedade de um Zenu ou outro qualquer fosse motivo de vergonha, respondemos sem qualquer dúvida, que vergonha mesmo seria receber dinheiro público e fazer propaganda travestida de jornalismo. Nada que esperemos que militontos habituados a regurgitar pensamentos colectivos compreendam, e razão pela qual este espaço, por exemplo, no passado e no Nova Gazeta, criticou a nomeação de Isabel dos Santos para a Sonangol quando a corrente militonta era de aplausos, sendo que o Nova Gazeta, no seu editorial, classificou sempre como um crime idiota a detenção de jovens acusados de rebelião por lerem um livro e apelarem a manifestações que são direitos constitucionais. Tudo factos.
E vale acrescentar os seguintes factos sobre o pretenso dono do VE, porque a tendência para o silêncio que demonstra (e que parece ser mal hereditário) faz com que não se defenda e com que essas narrativas deturpadas solidifiquem junto da opinião pública. Apesar de não o conhecer pessoalmente o suficiente para afirmar se é boa ou má pessoa, há mais factos que vale a pena clarificar já que insistem em colar o VE a Zenu... Facto: Zenu foi preso não pela transferência dos 500 milhões, mas por causa supostamente do Fundo Soberano onde se teriam detectado irregularidades de gestão, razão pela qual foi preso na mesma altura o outro gestor do Fundo Jean Claude de Morais que, outro facto, saiu mais cedo que Zenu da cadeia, depois de reportadamente assinar um acordo de confidencialidade que impedia, por exemplo, a divulgação de quanto foi que o Fundo perdeu por retirar aplicações que tinha feito antes da maturidade. Facto: não se sabe quanto foi que custou ao Fundo a pressa (o apressado come?) de controlar o dinheiro que lá estava para desbaratinar no PIIM (que anda aí tão cheio de buracos como as estradas do nosso país). Facto é que nunca essas irregularidades de gestão foram bem explicadas, que nunca se apresentou um valor desviado ou se mostrou para onde, sendo que o Fundo era auditado e apresentava lucros, passando a apresentar perdas já depois da saída de Zenu. Resumindo, facto: o filho do antigo PR foi preso, mas ninguém sabe explicar exactamente porquê ou o que foi que roubou que merecia quase um ano de prisão. Facto: quando a justiça espanhola diz que a justiça angolana é politizada e parcial, é fácil de ver exemplos. Facto mais grave é que, quando a justiça é politizada, torna-se maleável à vontade do freguês (no caso, o freguês é um chefe que amanhã pode bem decidir, por exemplo, que não quer opositores políticos, e a justiça terá de arranjar artimanhas para o servir). Isto de olhar para factos em vez de embarcar carneiradas colectivas dá que pensar...
Mas voltando à sondagem que provocou a ira militonta, e que nem incluía a nova plataforma de salvação, pergunto-me se os militontos não percebem que facto indiscutível é o descontentamento genérico popular com a governação... E agora pergunto eu, com as toneladas de miúdos a comer no lixo nas ruas das cidades, o aumento grotesco da fome, os falhanços das políticas públicas, de programas eleitoralistas como o PIIM, com as promessas por cumprir que se amontoam, com o aumento da pobreza a olhos vistos, o desaparecimento da classe média, o aumento do desemprego é alguma surpresa que a popularidade do Governo esteja em queda livre? Não seria o contrário o anormal? Se estão a chegar ao ponto de recorrer à oração em comícios para baixar o preço da cesta básica, depois de um governo de quase meio século, é alguma surpresa uma queda de popularidade do partido? E se em vez de se focarem em combater quem aponta factos usassem essa energia e destreza para governar e ajudar a governar melhor?
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