E agora pergunto eu...
Na semana que passou, a nossa actualidade andou marcada essencialmente pelo veto do Presidente da República ao projecto de lei... do partido de que também é presidente. E pergunto-me se isto não faz lembrar aquele episódio da ex-governadora de Luanda que, ‘nas vestes’ de representante do partido não comentava questões que ‘nas vestes’ de governadora seriam da sua competência... O chefe aprova projecto de lei ‘nas vestes do partido’ e chumba ‘nas vestes de PR’. Estes episódios de inverosímeis aparentes distúrbios de personalidade dupla deixam clara a necessidade de que ‘vestes incompatíveis’ deixem de vestir os mesmos corpos. E, simultaneamente deixam expostos todos os defensores acérrimos das ideias das ‘primeiras vestes’, e que vêm convictos a público argumentar e justificar essas ideias, para serem depois obrigados a desdizer-se quando as ‘segundas vestes’ decidem ‘dar para trás’. Por vezes não só desdizer-se, mas congratular-se e enaltecer as decisões das ‘vestes que mandem mais’ e que vêm desfazer a trabalheira toda que deu para defender as ideias, neste caso, das ‘vestes do partido’, que ‘as vestes da presidência reprovaram’.
Estas confusões de indumentária parecem ter sido breve motivo de celebração (porque gostamos muito de festejar), e mais uma vez a festa teve o tema “do jogador de xadrez”que terá feito mais um movimento que só ele compreende na sua “clarividência” especial. Mas, e agora pergunto eu, esta festa do xadrez, não lembra essencialmente que somos todos obrigados a ser os peões do jogo de alguém (mais ou menos confuso entre que vestes vai escolher)? Quem nos perguntou se queríamos ser peças de um jogo qualquer? Um jogo com um país inteiro de peões, e que ainda por cima celebram contentes o facto de serem peões e não terem a mais pequena ideia do que é que o jogador quer fazer, e de como o tal jogo vai evoluir? ‘Peões’ confortáveis com não saber para onde o futuro do país caminha... Uma herança que este presidente preservou e o resultado dessa cultura de homens fortes em vez de instituições fortes que nos torna a todos peças de jogo de alguém no poder.
Uma dessas peças deste dito jogo são, sem dúvida, os media, o que vem bem a propósito também da actualidade da semana que passou, porque o dia 8 de Setembro assinalou o Dia Internacional do Jornalista uma efeméride que marca a execução de Július Fucik, um jornalista checo às mãos do regime nazi em 1943.
Os regimes, o poder sempre teve uma relação de amor ódio com o jornalismo. Ama-o porque precisa de o usar para se manter no poder – odeia-o pela sua necessidade intrínseca de questionar, essencialmente porque o poder é alérgico a questionamentos, e quanto mais poderoso – mais alérgico se torna.
De 1943 para cá, os meios que o poder adoptou para controlo dos media são mais sofisticados do que o assassinato de jornalistas. No entanto em 2020 pelo menos 32 jornalistas foram assassinados por causa do seu trabalho mais do dobro do que em 2019. O México e o Afeganistão foram os líderes em assassinatos de jornalistas sendo que o Afeganistão este ano, com a tomada do poder pelos Talibans, vai certamente regredir em termos de jornalismo, de informação e de liberdade de imprensa. Decorre neste momento um absoluto êxodo de jornalistas do país que temem pela vida se não saírem com rapidez. E mulheres nos media – é impensável.
Felizmente entre nós o cenário de segurança física é de muito longe melhor, apesar de termos um histórico mal resolvido de assassinatos e tentativas de assassinato de jornalistas que não foram investigados e que por isso seguem impunes. O cenário de violência física contra jornalistas é de tal ordem melhor que empurrões e ameaças se tornam para jornalistas da media pública e tornada pública “tamanhas agressões que ultrapassam as regras básicas da convivência (...) golpes ao enunciado da paz, da independência e do Estado de Direito”. Pergunto-me como ilustrariam estes poetas agressões físicas (verdadeiras) a cassetetes e detenções por mais de quatro dias, como foram alvo os jornalistas do Valor Económico e da Rádio Essencial no ano passado e o jornalista da Rádio Despertar Jorge Manuel, para citar alguns...
Apesar de a nossa media pública aqui se estar a comportar como o filho do àrbitro no jogo a atirar-se para o chão e fingir que lhe partiram a perna ao menor toque à espera do penalti que não merece, toda e qualquer ameaça aos jornalistas em trabalho é absoluta e inequivocamente condenável. Os jornalistas devem poder cumprir com o seu papel de informar sem medo de qualquer tipo de represália, seja de meio forem.
Voltando à segurança física que permite estes luxos a alguns, essa evolução para longe do assassinato físico, substituiu o assassinato de jornalistas pelo assassinato de meios de comunicação, de jornais de rádios e até de televisões, enfim o assassinato essencialmente da imprensa livre, um dos pressupostos basilares das democracias.
E esse assassinato de meios de comunicação social entre nós tem sido feito cada vez com mais descaramento, mais sobranceria e mais arrogância. Esse assassinato sem derramamento de sangue, acontece por via dos instrutivos que procuram - e se não encontram inventam - expedientes administrativos para fechar órgãos de comunicação e assim controlarem as narrativas que chegam à opinião pública. Esta semana a actualidade confirma isso mesmo com o anúncio de mais um despedimento colectivo devido à suspensão de canais de TV, e a posição conjunta dos canais públicos de blackout assumido às actividades da UNITA (que passaram agora de não receberem cobertura, para receberem ainda menos cobertura).
De seis canais privados de TV quase todos com produção de notícias diversas, o país está agora reduzido a nenhum, os que não foram suspensos pertencem agora ao Estado, e o panorama nos jornais é ainda mais negro com dezenas de títulos a desaparecerem das mãos dos ardinas.
Mas esse assassinato da imprensa livre acontece muito mais por via dos instrutivos oficiosos, que são bem mais ardilosos, e que buscam secar as fontes de alimentação, de sobrevivência dos meios de comunicação social, buscam pôr jornalistas no desemprego, desincentivar a imprensa livre que depende desses jornalistas cuja efeméride foi celebrada esta semana. Esse assassinato mais premeditado, mais calculista, ocorre por via das ameaças veladas a empresas que publicitam os seus serviços em meios que fazem jornalismo que resista ao enaltecimento cego do poder e dos seus jogos (de xadrez, de damas ou garrafinha), que, num cenário de miséria social e económica são jogos que todos os dias se tornam mais despropositados e entediantes. Jogos que entretêm para nos distrair do que de facto deveria ser notícia como a continuada morte de pessoas à fome no país, que vai desaparecendo da agenda mediática, não só porque já dura há muito tempo, mas porque os meios livres que sobram vão tendo cada vez mais bloqueios, menos vida, vítimas do tal assassinato ardiloso e premeditado que visa controlar a informação.
Às empresas anunciantes, leitores, ouvintes e meios que mantém a resistência a esses assassinatos que o poder e os seus jogos atentam contra a imprensa livre, aqui fica um humilde, mas sincero obrigada, com esperança de que cada vez tenhamos mais.
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