E agora pergunto eu...
Seja bem-vindo, querido leitor, a este seu espaço onde convém lembrar: perguntar não ofende – depois de uma semana em que a actualidade foi marcada a ferros quentes, como se marca o gado, pelo congresso dos ‘Camaradas’. Marcada a ferros quentes porque quem quer que tenha decidido pela exagerada cobertura mediática do congresso pelos mesmos meios de comunicação públicos que ignoraram completamente a realização do congresso do maior partido na oposição uns dias antes, trata o público definitivamente como o seu rebanho, o seu gado pessoal e irracional.
Sobre o Congresso foi possível ler um pouco de tudo graças à tão preciosa diversidade de perspectivas que os media independentes, que sobrevivem online e as redes sociais possibilitam, infelizmente, a apenas 23 em cada 100 angolanos que têm acesso à internet.
Os media públicos anunciaram o mérito da renovação do partido com a entrada de jovens para o núcleo decisor e o facto de o comité central do partido ter atingido a paridade entre o número de homens e de mulheres. Facto que a socióloga e jornalista Luzia Moniz descreveu como “quantidade de género” quando comentava “não há igualdade de género sem liberdade, o resto é quantidade de género” – vale acrescentar que todos sabemos que quantidade esta longe de se equiparar à qualidade.
Foi possível ler ainda o comentário do jornalista José Gama, que lembrava que as quase 700 almas que integram o comité central do MPLA colocam o partido a ultrapassar o do partido comunista chinês, que tem cerca de 200 membros, o partido que governa o país mais populoso do mundo. Também a jornalista Amélia Aguiar escreveu sobre a funcionalidade do ‘menos/melhor’, exemplificando com o governo alemão que tomou posse também na semana que passou e que é composto por apenas 16 ministros (o nosso presidente tomou posse com 30, e benefícios da gestão dessa gente toda? Benefícios de governação? – Oh, perguntas de difícil resposta).
Esta lógica de ‘menos/melhor’, que os media públicos ignoraram na cobertura que dedicou ao Congresso dos Camaradas, leva a perguntar se estará irremediavelmente perdida a necessidade de disfarçar a parcialidade, o partidarismo nas instituições públicas?
E agora pergunto eu, podem restar dúvidas sobre a necessidade de despartidarização da esfera pública quando vemos colocados ao serviço do congresso os media públicos e afiliados, os meios públicos – as filas intermináveis de autocarros desviados das rotas para servir o congresso chocaram os luandenses que as filmaram; os hotéis reservados para receber os participantes, como estampava o Novo Jornal na capa? É possível ignorar a necessidade de despartidarização quando vemos os tribunais ao serviço do partido? O Tribunal Constitucional a deixar bem claro, e bem a tempo do congresso, que ‘este não é o congresso da UNITA e no congresso dos ‘Camaradas’ os diferendos são tratados internamente’, dois pesos e duas medidas nas mãos de uma justiça que, longe de ser cega como devia, é bastante ‘viju’. A forma como foi tratado o engenheiro Venâncio, que queria concurso interno transparente à chefia do MPLA, espelha bem qual é a noção de democracia do partido no poder e torna-se mais uma oportunidade falhada pelo MPLA de demonstrar que compreende o conceito.
É possível em democracia ignorar a necessidade de despartidarização, ou tão pouco acreditar que o partido no poder tem capacidade para a levar a cabo, quando a polícia nacional reage contra manifestantes- que não sejam do partido no poder - com violência que chega a custar vidas?
E, a propósito de democracia, outra grande marca na actualidade da semana que passou foi a cimeira americana sobre esse mesmo tema. E o ‘chefe’ disse ao presidente americano que fizemos progressos nos últimos cinco anos. Se há coisa pela qual os americanos são famosos é pelo acesso à informação, por isso não deve ser difícil aferir esses progressos de que falava o Presidente João Lourenço... Nos media, que são um pilar central das democracias então, esses progressos são verdadeiramente magníficos! A Angola de João Lourenço não tem hoje um único canal de TV independente. O Governo confiscou, nacionalizou, fechou, enfim…, tratou de se livrar de todos – temos apenas TPA 1, 2, 3. Os Estados Unidos têm cerca de duas mil cadeias de TV privadas. Os jornais em Angola sobrevivem online com dificuldades extremas, com a exceção de dois ou três títulos. Rádios vão sendo abocanhadas de modo que os fóruns de discussão pública, de análise, de crítica social, se juntem todos, em uníssono, a aplaudir os progressos de que fala o nosso chefe ao presidente americano Joe Biden.
Houve muita crítica à escolha dos americanos das cerca de 100 presenças na cimeira que ia discutir a democracia, o combate à corrupção, a promoção dos direitos humanos e o combate ao autoritarismo. E alguma dessa crítica foi naturalmente dirigida à presença de Angola, um dos 16 estados africanos convidados que, não é segredo para ninguém – tem uma democracia incipiente se existente um combate à corrupção enviusado e pessoalizado, sendo que o respeito pelos direitos humanos, como o acesso à informação ou o direito à manifestação coloca o país em todas as ‘listas negras’ das instituições que zelam por esses direitos. Não faltou gente a perguntar o que fazia Angola numa cimeira de democracia. AULA caro leitor, AULA! E aula com teste até à próxima cúpula. Se não fosse aula com teste, e a presença de Angola fosse, como é o caso de uma Noruega, ou aqui mais próximo, o caso de Cabo Verde, presente por ser exemplo de democracia em África, certamente os nossos media públicos teriam feito um alarido ainda mais barulhento do que fez com o congresso dos ‘Camaradas’.
Os americanos sabem que este é um período pré-eleitoral e incluíram Angola na cimeira (provavelmente, em parte, para incomodar a China, dona da nossa maior dívida), mas também para lembrar “estamos atentos ao respeito pelos valores democráticos em Angola e os valores a respeitar são democráticos: o combate sério e idóneo à corrupção, o respeito pelos direitos humanos, por isso não a vale prender ou matar manifestantes e o combate ao autoritarismo, que significa que não vale tudo para batotar as eleições.
Vamos ver como se sai o Governo no teste, porque, até agora, é mesmo o ‘burro da classe’, aquele que só passa vergonha quando é chamado ao quadro... Com esperança de que, de facto, esse respeito aos valores democráticos saia do vazio dos discursos dirigentes para a realidade, querido leitor, marcamos encontro aqui e na sua Rádio Essencial.
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