E agora pergunto eu...

02 Feb. 2022 Geralda Embaló Opinião

O Financial Times publicou uma daquelas reportagens que chega a dar inveja dos problemas dos outros. Há muitas assim, com esse efeito ‘invejoso do mal alheio’, como quando lemos sobre as quedas de exportações portuguesas ou sobre quedas de produção industrial nos EUA que tinha sido notícia na semana anterior. Estamos tão longe de ter exportação significativa ou produção industrial capaz de nos dar de comer, que quando os outros se queixam da sua má sorte quando as estatísticas baixam, a nós só nos dá para pensarmos ‘quem nos dera ter esses problemas em vez dos bastante mais básicos que temos’. Quando os outros discutem, por exemplo, direitos dos animais, em Portugal discute-se imenso as touradas, nós aqui ainda temos muito que discutir sobre direitos humanos, que são consistentemente atropelados antes de chegarmos aos direitos dos animais... Na semana passada, uma vigília para a libertação de activistas que foram presos por altura da greve dos taxistas levou a mais detenções, inclusive de jornalistas... a inveja dos problemas dos outros deve-se à constatação de que estamos tão atrasados que o pior dos outros seria avanço para nós. Outro exemplo vindo da Metrópole e que coincide com temas da nossa actualidade refere-se às lamúrias por terras lusas quanto ao salário mínimo, por ser o 13.º mais baixo do espaço europeu com 823 euros, cerca de 485 mil kwanzas. Por aqui, o Presidente João Lourenço fez lançar manchetes festivas de aumento do salário mínimo em 50%... E não faltam perguntas... Porquê agora? Fez o anúncio como Presidente da República (e com o melhor interesse do país em mente) ou nas vestes de pr. do seu partido (com olho nas eleições, o que justificaria a medida sendo que acontecem dentro de poucos meses)? Se o fez com olho na propaganda eleitoral, terá isso efeito positivo ou será mais um motivo de irritação para os eleitores, sendo que, para além de ter tido quatro anos para aumentar o salário sem o fazer, este aumento, na prática, é tão irrisório que não serve para cobrir a desvalorização que os salários/moeda sofreram nos últimos anos? Salário mínimo passar de pouco mais de 33 mil kwanzas para perto de 50 mil quando um quilo de fuba que alimenta famílias geralmente numerosas ronda os 400 kwanzas? É isso que serve de propaganda política eleitoral? Até da inteligência das máquinas políticas alheias dá inveja... em qualquer país normal, o governo aumentava sem alarido, aqui o ratinho é parido das mais altas montanhas e com pompa e fanfarra a acompanhar o evento. 

E agora pergunto eu...

Voltando ao texto do Financial Times, a inveja vem do ultraje que causou na semana passada uma viagem feita pela ministra das Relações Exteriores do Reino Unido à Austrália, a ministra Liz Truss, foi para a Austrália a trabalho num voo privado em vez de ir num voo comercial que seria bastante mais barato. O jornal ‘The Independent’ e a Bloomberg diziam que o custo do avião privado para os contribuintes foi de meio milhão de libras esterlinas, o equivalente a 670 mil dólares, quando, se voasse em business class em um dos voos diários para a Austrália, a digna representante pública iria poupar aos contribuintes cerca de 660 mil dólares. Na assembleia, a ministra foi confrontada com a despesa. Houve vários deputados a exigirem contas. Uma disse que, quando viaja em trabalho, voa pela EasyJet às seis da manhã, e os jornalistas questionaram a ministra, perguntando essencialmente se considerava que gastou o dinheiro público de forma racional e se o conforto pessoal justificava a despesa com o dinheiro de todos... Inveja. Em Setembro, o PR de uma Angola com 54,3% da população em pobreza extrema aprovou, por decreto, a despesa adicional de mais de quatro milhões de dólares para uma semana de representação do país nos EUA. Sem questionamentos. Para a mesma viagem, o Presidente da Zâmbia foi em voo comercial e com uma equipa enxuta de só dois ministros para dar o exemplo e demonstrar responsabilidade com o dinheiro público. Inveja porque a nós, não só nos calhou uma presidência voadora, que, apesar de ter avião presidencial, voa frequentemente em voos privados alugados por verdadeiras fortunas, como todo o questionamento a que é sujeita uma servidora pública por causa de um gasto supérfluo no mundo desenvolvido para nós é uma miragem absoluta – lembrança do atraso. Os nossos servidores públicos não sentem qualquer necessidade de justificar publicamente despesas pagas pelo erário.

Como a inveja é um sentimento feio e inútil, vale mais olhar para soluções para os problemas que temos. E a solução para os gastos supérfluos dos nossos servidores públicos, bem como a solução para todos os problemas do nosso serviço público e os variados atropelos que comete – são instituições fortes. Instituições que cumpram regras claras e que sejam transparentes.

Na Inglaterra, há questionamentos aos servidores públicos porque as despesas com dinheiro público são do domínio público. E claro, porque os media cumprem o seu papel e dão a conhecer ao público como o dinheiro de todos é gasto, o que, mais do que criar escândalos, cria é uma cultura de responsabilização e de cidadania, em que os servidores públicos são lembrados constantemente de que servem o público e não estão acima dele, e que devem essa prestação de contas.

Com instituições fortes, são colocados a funcionar automatismos processuais que previnem e evitam desvios. Com instituições fortes, a independência institucional funciona de tal maneira que umas instituições vigiam a actuação das outras de modo a que todas tentem funcionar no seu melhor. Com uma Assembleia forte, por exemplo, os representantes do povo dão voz às diferentes preocupações das populações que representam em vez de andarem a votar em carneirada na direcção que manda quem manda. Com instituições fortes, os abusos de poder são purgados naturalmente porque as instituições se regem por códigos claros a que todos obedecem. A nossa polícia, por exemplo, não se torna mais forte por por cada cidadão que perde a vida às mãos de agentes, e na semana passada voltou a acontecer em duas províncias, vir dizer que a bala fez ricochete ou que a população estava a fazer arruaça, insinuando, de alguma forma, que alguém mereceu a morte. Pelo contrário, essas justificações enfraquecem a instituição policial porque deixam claro que a instituição não reconhece o problema que tem em mãos, da falta de valorização da vida dos cidadãos que juraram proteger pelos efectivos, e que, por não reconhecer o problema, o problema vai continuar.

O médico Silvio Dala morreu, depois de detido por não ter máscara sozinho no carro em 2020. Até agora, ninguém se pronunciou a respeito de resultados de qualquer investigação séria, sendo que a primeira reacção da polícia foi dizer que o homem caiu sozinho...

O argumento para instituições fortes é também político porque, se tivermos instituições fortes, o partido que lidera o governo, seja ele qual for, tem de se adaptar às instituições em vez adaptar as instituições a si. Quando um partido sai do governo e é substituído por outro, a transferência ocorre com normalidade institucional porque as instituições obedecem às suas próprias logicas e não a quem manda. E o reforço das instituições faz-se, não com medidas pontuais de acordo com interesses pessoais, mas com o futuro em mente. Se a declaração de bens, que o PR diz que é devassa da vida privada e castigo, fosse instituída, criava-se um automatismo institucional que iria prevenir que os governantes vão para o governo para enriquecer, independentemente de que partido está no poder. Instituições fortes fazem a diferença em termos redução da captura do Estado que é, sem dúvida, um dos maiores desafios ao desenvolvimento que o país enfrenta.

Geralda Embaló

Geralda Embaló

Directora-geral adjunta do Valor Económico