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Verdade e destrumpficação

10 Nov. 2020 Opinião

Entre os democratas e muitos republicanos, há uma tentação enorme de descartar o governo do presidente norte-americano, Donald Trump, como uma aberração. Do mesmo modo que os republicanos podem tentar culpar Trump pelas diversas transgressões dos últimos quatro anos, torcendo para o papel de facilitador que desempenharam seja esquecido, os democratas podem querer fazer 'tábua rasa' sobre o cumprimento das normas democráticas, graciosamente abstendo-se de contestar o passado. Neste caso, é improvável que Trump e o seu governo sejam responsabilizados pelo seu notório histórico de corrupção, crueldade e violações dos princípios básicos constitucionais.

Muito além dos cálculos políticos, diversos observadores – desde o ex-candidato democrata à presidência Andrew Yang a renomados juristas e historiadores  – têm dito que só ditadores de republiquetas perseguem oponentes derrotados. Com motivações próprias bastante óbvias, o procurador-geral norte-americano, Bill Bar, também tem dito que os “vencedores políticos perseguirem ritualmente os derrotados políticos não é o tipo de coisa de uma democracia madura”. No entanto, estas generalizações são um tanto precipitadas. O 'slogan' de 'prendamela' de Trump, dirigido a Hillary Clinton em 2016, não devia ter como resposta “prendam-no”; No entanto, “perdoar e esquecer” não é a única alternativa.

Os norte-americanos precisam de distinguir entre três problemas: os crimes que Trump pode ter cometido antes de assumir a presidência; a corrupção e crueldade cometidas por ele e os seus compadres quando ocupou o cargo; e o comportamento que tem exposto fraquezas estruturais dentro do sistema político dos EUA. Cada um exige uma resposta diferente.

Historicamente, as transições de vários outros países do autoritarismo – ou o regresso de uma degradação democrática – foram marcadas por uma disposição de deixar impunes os antigos donos do poder. Como observa a cientista política Erica Frantz, 59% dos líderes autoritários afastados do poder simplesmente “avançaram com as suas vidas normalmente”. Mesmo assim, nos casos em que democracias novas ou restauradas não processaram as autoridades anteriores, geralmente estabeleceram comissões da verdade, oferecendo amnistia em troca de informações verosímeis e confissões dos autores dos crimes. Esta abordagem ficou célebre na África do Sul pós-apartheid.

A peculiaridade da actual situação norte-americana é que Trump já está sob investigação por possíveis crimes não relacionados com o seu governo. Tanto o promotor público de Manhattan quanto o advogado-geral de Nova Iorque investigam a Trump Organization por vários tipos de fraude. Embora aparentemente apolíticas, as práticas de negócios de Trump anteciparam – e ofuscaram – o favorecimento descarado e a corrupção do seu governo. Mesmo que ele não consiga transformar os EUA num Estado mafioso nos moldes da Hungria de Viktor Orbán, este não é, nem de longe, o principal problema.

Além disso, se as investigações na Trump Organization fossem simplesmente descartadas, perante a saída dele da presidência, a acusação de que eram apenas armadilhas políticas pareceria justificada, especialmente levando-se em conta que as autoridades judiciais são democratas. Por outro lado, se as investigações resultassem na prisão de um ex-presidente, é possível que os apoiantes armados de Trump decidissem fazer justiça com as próprias mãos; no mínimo, as divisões políticas do país se aprofundariam ainda mais.

Tendo estes riscos em mente, em princípio, não há motivo para que uma liderança política não possa ser punida de modo adequado por um crime que cometeu. Muitos líderes têm sido e alguns até voltaram à vida política. O ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi foi forçado a prestar serviço comunitário após uma condenação por fraude tributária (a idade valeu-lhe uma sentença mais branda). Hoje, está no Parlamento europeu, o que dificulta para qualquer um dizer que os juízes liberais só queriam silenciar o 'Cavaliere'. Porém, o ponto de cumprir a lei foi dar um recado claro de que a estratégia de Berlusconi de entrar na política para ter imunidade e desviar o foco dos seus negócios duvidosos não se tornaria um precedente.

Há ainda a questão do próprio histórico de Trump no cargo. Pode-se encontrar diversas políticas profundamente questionáveis, mas seria um erro abandonar o que o presidente Thomas Jefferson, ao suceder ao seu arqui-rival John Adams em 1801, chamou de “segurança com a qual erros de opinião podem ser tolerados onde a razão for livre para combatê-los”.

Não se pode dizer o mesmo sobre a corrupção e crueldade sistemática que o governo Trump exibiu em resposta à crise da covid-19 e ao separar pais e filhos na fronteira. Como sugeriu Mark Tushnet, professor de direito de Harvard, uma comissão de inquérito deveria ser criada para investigar políticas e actos que "foram além da incompetência e rumo ao território da malevolência motivada". É crucial que estabeleçamos um registo apropriado destes eventos, talvez oferecendo leniência em troca de relatos sinceros. Estes poderiam ajudar-nos a pensar em reformas estruturais, tornando no mínimo menos prováveis a corrupção em troca de favores e de abusos de direitos humanos.

Finalmente, Trump rompeu diversas regras presidenciais informais, das relativamente banais – como ofender pessoas no Twitter – às sérias: esconder as declarações de imposto de renda. Como muitos juristas norte-americanos têm defendido, uma resposta prudente seria criar uma comissão à parte para estudar as vulnerabilidades estruturais da presidência. Tal investigação pode identificar que muitas regras informais – da transparência financeira às relações com o Departamento de Justiça – devem ser formalizadas. Não haveria nada de vingativo nesta abordagem particular. Após o episódio de Watergate, o Congresso implementou diversas leis éticas importantes, que os dois partidos aceitaram.

Esta abordagem tripla não precisa de desviar o foco das tarefas de governação mais urgentes. Embora talvez seja necessário gastar algum capital político, os custos da inércia ou de 'seguir em frente' de modo descontraído poderiam ser ainda maiores, como, sem dúvida, aconteceu após o perdão concedido por Gerald Ford a Richard Nixon (que jamais admitiu qualquer culpa), e a leniência demonstrada após o escândalo Irão-Contras e o vasto uso de tortura pelo governo George W. Bush na campanha de 'guerra global contra o terror'.

Sem dúvida, vários republicanos podem lutar com unhas e dentes contra os esforços para estabelecer a verdade. Porém, outros poderiam tirar proveito de uma comissão pública focada em melhorar as instituições norte-americanas para se distanciar de Trump.