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Arménio Lopes, empresário das pescas

“A veda não se justifica porque o mar tem sempre peixe”

25 Dec. 2019 Grande Entrevista

Tem sido contra os períodos de interdição das capturas em Luanda, mas abrandou o discurso, por considerar que, “com a nova titular das Pescas, tem havido alguma inversão nos constrangimentos”. Um dos maiores armadores do país com um património que roça os 30 milhões de dólares, nunca recorreu à banca, “por causa dos juros incomportáveis”, e aconselha o Governo a não embaraçar os empresários com fundos.

“A veda não se justifica porque o mar tem sempre peixe”
D.R.

 

O que mudou no sector nos últimos anos?

Desde que está na direcção uma nova ministra, tem havido um bom trabalho.  Porém, para se atingir a excelência, ainda vai durar um bocado.

Mas aumentam as queixas pela suposta demora na atribuição de licenças…

Sim, porque organizar um trabalho que já vinha há muitos anos desorganizado não é de um dia para o outro. Os novos quadros que foram para o Ministério das Pescas desconhecem um bocado a actividade. Logo, os mais abalizados devem passar o conhecimento para que não haja outra vez os problemas anteriores.

Há quem diga que a pesca descontrolada está a reduzir os recursos marinhos. Concorda?

Não é aquilo que dizem, o peixe existe. Há muito peixe no mar, só que as condições climáticas é que não têm possibilitado trabalhar.

Não se justificam os períodos de veda?

Os períodos de veda de dois meses devem continuar, apesar de que nem sempre se justificam, porque a reprodução do peixe é contínua, não tem época. A interdição é só para o carapau, mas há outras espécies de superfície que podemos capturar.

E a pirataria está ultrapassada?

Acho que reduziu bastante.

Mas ainda há queixas de pescadores, como por exemplo da povoação do Buraco, a Sul de Luanda?

Havia muitos barcos sem licença a pescar. Alguns já foram retirados, o que significa que já há um maior controlo sobre as embarcações que se fazem ao mar.

Porque rejeitou o barco que lhe foi atribuído pelo ministério?

Não tinha condições de ser lançado ao mar. Sou profissional, tenho formação técnica, sou engenheiro e também construo barcos. Então preferi rejeitar a ficar com um ‘monstro’ que não iria dar resultados.

Faz  investimentos com recurso à banca?

Nunca recorri à banca.

Porquê?

Vou trabalhando com aquilo que tenho em poupanças, porque os bancos impõem condições muitas vezes absurdas e juros imcomportáveis.

A crise não impactou na actividade da sua empresa, a Coapescas?

Os trabalhadores continuam nos seus postos e fui fazendo cada vez mais novos enquadramentos. Hoje, o volume já é enorme. Aliás, deve ser das empresas do sector que mais emprega.

Quantos trabalhadores?

Dirctamente andam à volta de 300 trabalhadores, mas a contar com os indirectos, considerando pouco mais de 100 peixeiras e se cada uma tiver dois a três trabalhadores, podemos falar em mais 500 ou 600 empregos indirectos.

Tem a fama de recrutar força de trabalho apenas originária do Ebo Cuanza Sul. Qual é a vantagem?

Não, são angolanos. Nunca assumi o recrutamento de pessoas originárias da minha terra nata. Mas eles aparecem e dou preferência para não ficarem no desemprego e amanhã não andarem por aí a roubar. Fazem um tempo e depois regressam à origem.

Já se recuperou da perda dos sete milhões de dólares na fábrica de congelação, transformada em cinzas?

Penso que, em 2020, será realizado o sonho de reconstruir a mesma fábrica e provavelmente também inaugurar uma nova peixaria principalmente para os fins-de-semana.

E a ideia da exportação?

No passado, tentei fazer o sistema para exportar filetes de pescado e produzir conserva de peixe. O projecto não foi aprovado pelo Ministério das Pescas, ficou pelo caminho, mas é um sonho que penso concretizar.

A antiga ministra das Pescas e do Mar está a ser apontada num caso de corrupção que envolve governantes namibianos. Quer comentar?

Quando fazia parte da liga de formação com outros colegas do sector chamámos atenção para uma série de coisas e nunca fomos tidos nem achados.

Porque abandonou a direcção da Associação de Pescas de Luanda?

Havia colegas cuja intenção era diferente do traçado por nós. Por isso é que formámos uma nova associação, a dos ‘armadores de pesca de cerco’. Uma nova entidade que, pensamos, venha a dar cartas no futuro em benefício do desenvolvimento do sector.

Está satisfeito com o rumo do país?

O Presidente João Lourenço está a fazer a sua política de melhorar o que está bem e corrigir o que está mal. Vamos aguardar, porque sou militar e por isso não gosto muito de avançar nesses detalhes.

Mesmo com o contínuo endividamento, primeiro com a China e agora com o FMI?

O FMI talvez venha resolver problemas de quem está no poder. A mim talvez afecte porque estamos a pagar custos que não devíamos pagar. Mas quem mais vai sofrer com isso são os meus filhos e netos.

Refere-se à deterioração dos rendimentos em decorrência da crise?

Se há apertos, eu não sei. Por exemplo, nas pescas, e falo apenas do meu sector, nada alterou. O valor da comercialização não mudou muito. Há uma diminuição do produto, mas Luanda aumentou muito e, neste momento, somos nós, Coapescas,  e alguns operadores que estamos a tentar equilibrar, em certa medida, a dieta alimentar da população.

Não há nada a fazer em relação às pescas, portanto...?

O peixe mantém-se. Logo, o que o Governo deve fazer é criar liberdade para que quem tem dinheiro o coloque ao serviço da criação de postos de revenda para que o produto não passe por várias etapas.

Ou seja...

Ou seja, às vezes, o produto chega caro ao consumidor, não por culpa do fornecedor. Nós que capturamos o peixe, se fornecêssemos directamente às peixarias, não teríamos preços tão elevados no consumidor. Hoje, o pescado passa pela peixeira que recebe a embarcação do grossista e esta revende a outros e são esses intermediários que acabam por encarecer o produto.

E como resolver isso?

Tem de haver mais peixarias. Cada município deve ter três a cinco peixarias que deviam ser os nossos clientes preferenciais. É preciso dar oportunidade a quem tenha possibilidade de abrir uma peixaria.

“A veda não se justifica porque o mar tem sempre peixe”

Qual é a capacidade de captura da sua frota?

É incerta, depende. Aliás, o mar não é como semear batatas ou cebolas e ter uma estimativa em função dos hectares. Depende muito das mudanças climáticas, havendo momentos de elevada captura e outras de baixa produção. Mas, como disse, de uma ou outra forma, há sempre peixe na água.

E a capacidade de congelação?

São 50 toneladas diárias de congelação, mas faço vendas directas porque as embarcações têm sistema de frio. Abasteço muita população que vem de Viana e de vários pontos de Luanda. Quem não conhece o porto pesqueiro que chamam da Mabunda, mas que é do Selvagem, não conhece Luanda.

Pelo que diz, pode depreender-se que não há risco de falências de empresas do sector das pescas?

Não. Neste sector, que até é rentável, o mais importante é a capacidade de gestão. Não quero entrar em mais detalhes, porque gosto mais de estar focado no meu trabalho do que falar dos outros.

Mas apenas seis das suas 11 embarcações estão a pescar...

Só a tutela é que sabe. Licenciaram seis e cinco estão em terra. Assim são cerca de 200 empregos à espera, calculando que cada embarcação pode ter entre 30 e 40 trabalhadores.

Quanto vai investir para recuperar a fábrica que ficou reduzida a cinzas, a tal em que perdeu sete milhões de dólares?

Vou começar do zero como nada existisse. O meu financiador, que não vou anunciar agora, está a propor uma estrutura nova. Estou a avaliar.

O que tem, além da pesca?

A Coapescas é mesmo apenas um segmento de pesca. O seu proprietário é que tem outros negócios.

E o estaleiro Santa Teresinha, na Ilha de Luanda?

É ali onde foi construída a minha frota de 11 barcos e continua a fazer reparações para embarcações da empresa. De resto, tenho hoje uma aldeia com 60 vivendas no bairro Benfica e vai ser inaugurada dentro de alguns meses.

Em quanto ficou orçado esse condomínio?

Prefiro mesmo tratá-lo por aldeia que está a ser erguida tijolo a tijolo. É a ‘aldeia do Selvagem’, cujo investimento prefiro avançar apenas no fim do projecto. É alguma coisa que fica, porque passamos pela vida e temos que deixar história para as gerações vindouras.

O que mais o futuro lhe reserva, além da incursão ao imobiliário?

Penso corrigir o que está mal e melhorar o que está bem, como é o lema do Presidente.

E o que acha que está mal?

Se estivesse mal de todo, já tinha falido, como muitos. Precisamos de corrigir algumas coisas, fazer com que haja mais postos de trabalho. Em 2020, penso avançar com a aquicultura nos rios. Temos muita água, mas o Estado tem de ceder espaços a quem tenha capacidade de trabalhar e não a pessoas que estão à espera que ainda o Estado lhes dê dinheiro.

Não o incomoda a ideia do Governo de construir uma estrada que poderá pôr em causa o seu negócio?

Quando o Governo pensou nisso, já tinha o estaleiro. Já percorri alguns países como a Noruega em que, dentro de cidades, que não são como a de Luanda, as embarcações descarregam pescado. Aqui os arquitectos fazem muita confusão para se fazer um programa.

Já foi notificado pelo Governo?

O Governo nada me disse. Logo, nada tenho a ver com isso. Eles é que sabem. Aliás, se quiserem acabar com esses postos de trabalho e matar essa população à fome, fica ao critério deles. Mas eu só saio se me derem o dinheiro que aqui gasto. E note que, em Luanda, sou dos armadores que possui ponte de descarga e a única fábrica de congelação em espiral que, mesmo em África, são muito poucas unidades. Portanto, são números que os contabilistas terão de calcular desde 1992.

O que significa congelação em espiral?

É um sistema em que o peixe entra e depois de 30 minutos já está congelado e pronto para ser embalado e encaminhado para os pontos de distribuição e venda. As outras pescarias fazem-no em 24 horas.

PERFIL

Formado em Engenharia Mecânica, na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, hoje Rússia), Arménio Lopes, muito conhecido pelo seu nome de guerra ‘Selvagem’, nasceu há 68 anos no município do Ebo (Cuanza-Sul). É um general das forças armadas que decidiu de ‘motu proprio’ abandonar a farda e abraçar os negócios. “Comecei pela pesca desportiva, e daí para a empresarial foi um passo. Em 1992 construí o primeiro barco e já não parei”, conta o empresário que não dispensa “um bom fungi de milho com calulu da banda”. Além de investimentos em Luanda, Selvagem pensa um dia voltar à sua terra natal, apostando na agricultura e ali viver a reforma “longe do stress” da capital. A sua ‘batalha’ foi reconhecida no último conselho consultivo das Pescas, mas prefere não falar disso porque “o foco é o trabalho”.