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A cooperação internacional exige valores partilhados?

02 Jul. 2018 Ngaire Woods Opinião

Entre a escalada de disputas comerciais e as divisões no G7, há um aparente colapso da governação global. Não se pode continuar a acreditar que os EUA mantenham, muito menos reforcem, regras, e não se pode presumir que os países concordem, muito menos adiram, a um conjunto comum de normas. Isso significa que a ordem mundial baseada em regras está condenada?

Nas últimas sete décadas, os valores democráticos sustentaram os esforços, liderados pelos EUA e pela Europa, para aprofundar a cooperação internacional. Desde o fim da Guerra Fria, quando o Ocidente reivindicou vitória da democracia liberal, líderes norte-americanos e europeus frequentemente citaram “valores partilhados” na NATO e no G7 (conhecido como G8 até a Rússia ser suspensa em 2014 por violar esses valores na Ucrânia).

Mas o mundo mudou. A Rússia não precisa de fazer parte do clube dos ‘vencedores’ da Guerra Fria para promover interesses geoestratégicos. A China nunca foi membro e, no entanto, alcançou o ‘status’ de grande potência mundial. Esses países, junto com outras grandes economias emergentes, desafiam cada vez mais o domínio geopolítico que o Ocidente pensava ter assegurado.

Ainda mais potente, no entanto, é o desafio que vem de dentro do próprio Ocidente, onde forças políticas ‘anti-establishment’ nos EUA e na Europa vão ganhando terreno ao contestar valores e formas de cooperação.

Apesar do Brexit, no Reino Unido, e da diplomacia unilateral e das tarifas comerciais dos EUA de Donald Trump, o Ocidente não abandonou a noção de valores partilhados. Depois de Trump ter tentado impedir que cidadãos de sete países de maioria muçulmana entrassem nos EUA, a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que “não havia justificação política” para isso. E disse-o ao lado do primeiro-ministro sueco Stefan Löfven, que considerou “profundamente lamentável” a decisão dos EUA. Löfven observou que a Suécia e a Alemanha “partilham valores fundamentais” e enfatizou o “importante papel da União Europeia nos valores e direitos humanos”. Mas é loucura as potências europeias acreditarem que podem confiar em valores partilhados para alcançar a cooperação internacional, assim como era loucura o Ocidente acreditar que a adesão à Organização Mundial do Comércio iria de alguma forma transformar a China numa democracia liberal. É improvável que os países europeus persuadam a China, a Rússia ou a administração Trump a adoptar a sua visão de mundo.

Isso não significa que a cooperação internacional se tenha tornado impossível, muito menos que os países não tenham escolha a não ser preparar-se para uma era vindoura de alianças disfuncionais, conflitos ou mesmo a guerra. A cooperação deve estar ancorada, não em valores partilhados, mas em interesses estratégicos partilhados de longo prazo. O imperativo dos países agora é determinar quais são esses interesses e como se sobrepõem (ou não) com os dos outros. E que sistemas de acomodação mútua poderiam ajudar a promovê-los.

O comércio é uma área óbvia de preocupação. A imposição de tarifas por Trump sobre as importações de aço e alumínio é, sem dúvida, popular em parte dos seus apoiantes, mas enfureceu os aliados mais próximos, que já começaram a retaliar.

Economistas prevêem que as tarifas do governo Trump poderão causar mais de 400 mil perdas de emprego nos EUA - o que significa 16 perdas para cada emprego poupado em aço e alumínio. Essa abordagem claramente não está nos interesses estratégicos de longo prazo de ninguém, mesmo que ofereça benefícios políticos de curto prazo.

A consideração dos países sobre interesses estratégicos também deve concentrar-se na tecnologia. Google e Alibaba agora competem para ter os melhores engenheiros de computação do mundo, muitos dos quais europeus, para ganhar a corrida para controlar os dados, desenvolver computação quântica (na qual a próxima geração de criptografia dependerá) e para criar aplicativos mais lucrativos de inteligência artificial.

Os europeus tornaram-se dependentes dessas empresas, todas baseadas na China ou na América. No entanto, a Europa concentrou-se mais em impor valores partilhados na tecnologia - ou seja, fortalecendo os regulamentos de privacidade de dados - do que em desenvolver uma estratégia de longo prazo para se tornar competitiva. A definição de tal estratégia poderia ajudar a Europa a identificar áreas de acomodação mútua. Uma terceira área com potencial de cooperação estratégica é a ajuda ao desenvolvimento e o investimento nos estados mais pobres e mais frágeis do mundo. Essa cooperação é essencial para combater o terrorismo, o tráfico de seres humanos e a migração. Mas também aqui os países agem contra os seus próprios interesses, com os EUA e a Europa a cortar orçamentos de ajuda e a tentar travar a imigração.

Enquanto isso, a China faz grandes investimentos em países mais pobres. Enquanto os EUA e a Europa abordam o desenvolvimento do ponto de vista da redução da pobreza e da boa governação, a China atribui maior prioridade ao apoio ao desenvolvimento de infra-estruturas como parte de uma política industrial. Chegou mesmo a adquirir infra-estruturas em países da Zona Euro em dificuldades, como Portugal e Grécia.

Mas nenhuma dessas abordagens terá sucesso sem uma acomodação mútua. Num movimento promissor, em direcção à acomodação estratégica, a China estabeleceu uma Agência de Cooperação Internacional. O novo órgão permitirá que a ajuda “desempenhe um importante papel na diplomacia das grandes potências”. Os EUA e a Europa precisam agora de fazer mais para desenvolver os seus objectivos estratégicos de longo prazo e trazer novas formas de cooperação internacional.

Sistemas de acomodação mútua que facilitem a realização de interesses partilhados são possíveis. Se as organizações internacionais já não são suficientemente confiáveis para desempenhar essa função, os EUA e a Europa podem precisar de novos arranjos domésticos. Por exemplo, o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, propôs um escritório permanente dentro da Casa Branca para gerir as relações com a China. À medida que a governação global, baseada em valores, continua a deteriorar-se, a necessidade de tais mecanismos de interacção contínua não poderia ser mais urgente.

Fundadora da Escola de Governação de Blavatnik, da Universidade de Oxford.