E agora pergunto eu...
Esta semana, em vez do olhar superficial para a actualidade, talvez impressionada pelo livro que estou a ler agora e que recomendo por servir de bom lembrete que as “aparências aparudem”, vamos fazer diferente. O livro que estou a ler e que foi publicado este ano pela jornalista Michaela Wrong sobre um regime africano que correu mal, e que se desenrola em torno do assassinato do ex-chefe das secretas do Ruanda, só é um mau companheiro de cabeceira, porque efectivamente causa pesadelos... Os livros que têm essa capacidade quase mágica de sair da folha do papel, da tinta de impressão directamente para a nossa psique, para influenciar mentes muitas vezes décadas depois de terem sido escritos, os livros que têm essa capacidade de impressionar de marcar, seja positiva ou negativamente o nosso raciocínio são absolutamente um dos maiores prazeres reservados à humanidade.
Uma das imagens que mais me chocou naquela miséria que vimos recentemente na Africa do Sul, em que vimos a populaça em força roubar e assaltar, a destruír ecossistemas económicos inteiros, escudada num pretexto político qualquer - uma das imagens mais descritivas da miséria mental colectiva era a imagem de uma livraria intacta, num centro comercial cujas lojas tinham sido todas assaltadas. Havia também imagens com o mesmo nível de ironia social, imagens de sofás de luxo metidos em quintais de casas abarracadas que não cabiam dentro, havia eletrodomésticos novos em casebres sem electricidade, mas a imagem de uma livraria intocada ao lado de várias lojas, de roupa, de eletrodomésticos, de sapatos, completamente destruídas faz nos pensar no tanto que está mal de raiz com os sistemas de governação que temos e que geram estas populações. E não podemos deixar de pensar que temos entre nós o mesmo tipo de sistema.
Não é que em países como os EUA não aconteçam motins, acontecem, mas em bolsas em regiões mais desfavorecidas. Em países nórdicos do continente europeu em que as sociedades são mais igualitárias com níveis educacionais mais elevados, os motins com o intuito de roubar como o que vimos na ‘Sothi’ não acontecem porque as pessoas desprezam a noção de se tornarem ladras, associam o acto de roubar a um rebaixamento da sua própria condição. É essa estrutura de pensamento que nos faz falta, porque entre nós vigora a “lei d’ o mundo é dos espertos”, mesmo quando vemos que o “espero só almoça não janta” como diz a nossa sabedoria popular. Nos países que olham para a esperteza imediatista com desprezo, as cadeias estão a fechar por falta de inquilinos, e esses devem ser o exemplo a seguir. E, claro, exemplos a seguir a outros níveis... sendo que um deles talvez, um dos mais importantes é a também o desprezo pela disciplina de pensamento. E esta disciplina que pode ter outros nomes mais ou menos poéticos como: pensamento único; ideologia colectiva; ou simplesmente ‘carneirada’, significa apenas que um grupo impõe uma opinião a todos os seus membros e que não permite dissonância de discurso.
Esta descrição é a cartilha dos nossos partidos políticos. Mais evidente no partido no poder, em que o chefe se dá ao luxo de dizer publicamente que “mais nenhum membro do partido se pronuncia” sobre algum assunto e em que os membros do partido, pelo simples facto de o serem perdem a voz, e com ela muitas vezes até a capacidade crítica ao ponto de sufocarem a sua individualidade, mas não é mal exclusivo do partido no poder. Os partidos genericamente odeiam a individualidade porque sobrevivem de grupos, de “vivas” - da colectividade, mais do que da capacidade de pensar de cada um dos seus membros. E isso resulta em termos grandes figuras a fazer ‘figuras toscas’, em repetição de mantras partidários e vivaaas que destoam tanto com o seu nível de intelectualidade quanto os sofás de luxo nos quintais dos bairros de lata da Sothi... Entre nós, esse ódio do colectivo à capacidade crítica, esse sufoco da individualidade em prol do grupo é tão, tão visível, quanto são visíveis os seus danos ao tecido social. Temos como resultado uma sociedade em que esse repúdio ao pensamento individual é de tal ordem, que a camada intelectual, que devia ‘pensar país’, dinamizar políticas, criar soluções, anda amordaçada pelas lógicas de grupo partidário. Pensar pela própria cabeça, e dizer o que se pensou é tornar-se alvo de ataques e só a carneirada é recompensada.
O Valor Económico da semana passada escreveu sobre as consequências nefastas para a produção de conhecimento de um decreto que dita que os centros de estudo universitários passam a ter de receber autorização do ministério para funcionar, passam a ser subalternos ao ministério, que por sua vez é regido por um partido (desses de pensamento único). E penso não estar a cometer nenhuma inconfidência, se disser ao querido leitor que - apesar de não faltarem intelectuais contra essa medida - poucos foram os que quiseram fazer ouvir a sua voz de autoridade académica. E agora pergunto eu... como foi que mesmo para as cabeças mais pensantes que temos se tornou quase um acto de bravura o simple venturar de uma opinião contrária ao que quer que dite o partido, ainda que o ditado seja visivelmente idiota? Por que processos o espírito colectivo conseguiu amordaçar desta maneira a voz do pensamento critico que académicos se furtam a falar da sua própria área de domínio subjugados ao poder politico?
Três académicos de proa falaram sobre a subalternização dos centros de investigação das universidades. Raúl Araújo, Alves da Rocha e Jonuel Gonsalves. Três possivelmente de vinte que poderiam ter falado, porque temos muitos académicos conscientes de que centros de investigação têm de estar o mais distante possível de partidarismos para poderem produzir conteúdo minimamente independente e de valor, se não só para manterem a higiene intelectual. Muitos desses académicos amordaçados sentem verdadeira repulsa pela ideia da interferência politica na esfera da produção de saber (que deve ser o único intuito das universidades e particularmente dos centros de pesquisa). A ideia da interferência política nas esferas do saber é de facto repulsiva e a mesma que por exemplo torna uma instituição produtora de estatísticas - que servem de base de trabalho do mesmo governo que desenha as politicas que nos governam - numa piada sem graça e que não granjeia respeito cientifico nenhum.
Esta mordaça partidária faz com que por exemplo se vejam líderes políticos de proa do MPLA serem ofendidos e ridicularizados pelo seu próprio partido quando este se propõe combater o líder da oposição fazendo recurso primeiro às duplas nacionalidades - que tantos membros do governo têm - e depois à claridade da pele como argumento de “falta de angolanidade”. Um posicionamento verdadeiramente asqueroso e que os membros amordaçados do partido, muitos mais claros que o líder da oposição, tiveram de engolir calados, em nome da colectividade partidária que abomina a individualidade critica. Não se ouviram membros de proa do partido condenarem aquela imundície de comunicado que o partido validou para atacar Adalberto da Costa Júnior.
É certo que este fenómeno infeliz é mais visível no grupo partidário no poder, mas pergunto-me se será capaz a nova oposição, a promessa que é a coligação dos partidos da oposição, de pôr um fim a esta lógica de colectivo que esmaga o pensamento crítico e tem os intelectuais amordaçados com medo de represálias por expressarem uma opinião contrária sobre qualquer tema de verdadeira importância para o país que seja.
É um desafio enorme à espera de ser assumido.
O perigo desta carneirada de pensamento, é o de dogmas de pensamento único servirem para justificar o injustificável - atropelamentos das regras democráticas e até atrocidades.
Voltando ao livro que estou a ler, na passagem que me ficou a assombrar, o ex-chefe das secretas diz mecanicamente o seguinte para justificar um assassinato que o governo do Ruanda encomendou: - “não podíamos arriscar uma guerra popular civil popular então tínhamos de cortar-lhe a cabeça. A ideia era, em antecipação, decapitar aquela liderança com base na doutrina de que esse ataque tem de ser em preemptivo”. O ex-chefe de inteligência que estava a justificar um assassinato com a manutenção de uma liderança política, foi depois assassinado por essa liderança, exactamente com base no mesmo dogma.
E nós, que temos um país marcado pelas feridas profundas do 27 de Maio, que essencialmente generalizou essa ideia de que o pensamento dissonante é para abater sem perda de tempo e sem justiça, devíamos repelir qualquer mordaça partidária seja de que partido for... E agora pergunto eu, será que aprendemos com a história?
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