E agora pergunto eu...
A semana que passou foi de discurso sobre o Estado da Nação e, como era expectável, só um moroso desconversar de alto nível poderia distrair do tal estado do Estado. Sobretudo um desconversar que mascare a facilidade com que num país que vai na sexta recessão – cuja economia é refém de um desemprego galopante, que enfrenta uma seca violenta, muita fome que já não se restringe às regiões afectadas pela seca mas que se espalha por todo o país, um país que tem uma falta crónica de infra-estruturas de saneamento que desincentivam o investimento, que não fornece àgua, ou energia de forma sustentada – só um desconversar de alto nível pode tentar mascarar decisões de alocar vários milhões de dólares a supérfluos como compras de instalações para ministérios, ou apartamentos e Lexus para o sector da justiça que se quer manter manietado. E agora pergunto eu, com tanta apreensão de prédios instalações e afins, ainda é preciso comprar apartamentos e escritórios para servidores públicos? Mas o que raio se passa que o Governo anda tão dissociado da realidade depauperada do país e até do seu próprio discurso de sucesso? Se o combate à corrupção em quatro anos tem registo de sucesso, milhões apreendidos, porque não é visível o benefício para os cofres públicos que ainda é preciso nesta altura comprar instalações para servidores públicos?
A semana passou também animada pelos mujimbos de candidaturas ao MPLA, que habituado que está a candidaturas únicas e indicações sem escrutínio, conseguiram marcar a actualidade pelo menos com alguma esperança de democracia interna que possa então resvalar e servir de exemplo para o país...
Ouviram-se os nomes de candidatos, como o engenheiro Venâncio, que assumiu a sua candidatura, Boavida Neto, que publicamente já desfez a ilusão citando “gente má” e Irene Neto, que supostamente terá feito o mesmo outro nome foi o de Higino Carneiro, um dos que volta e meia é intimidado com textos sobre investigações provavelmente pela tal justiça manietada (dos apartamentos e Lexus)... Um inédito no seio dos camaradas, mas que fez pouco por mascarar a real preocupação do partido, e a real preocupação do partido não é quem o encabeça, mas com como se manter no poder face ao desgaste das décadas de gestão contínua e face a uma oposição mais organizada. E esta preocupação torna-se tão mais evidente, quanto mais se ataca a oposição. Chamam-lhes arruaceiros, desorganizados, belicistas e o discurso faz mais ricochete à medida que não vão tendo resposta do outro lado que parece andar preocupado em falar com o povo, deixando o maioritário basicamente a discutir sozinho.
E é vê-los discutir horas a fio, discorrer sobre aspectos mais ou menos irrelevantes da vida do partido alheio nos meios públicos, é vê-los conjecturar quem vai fazer sombra a quem entre Adalberto e Abel, se a plataforma é o quê formalmente (para se saber como atacar e tornar ilegal), enfim – toda a estratégia de reeleição do MPLA parece reduzida a um infantil “eles são pior que nós”. E é perturbador que um partido ao fim de 46 anos no poder só tenha como argumento de reeleição um “eles são pior que nós”. Não conseguiu melhorar o que estava bom e menos ainda corrigir o que estava mal. Antes pelo contrário, tratou de usar muito do que estava mal, principalmente com o açambarcamento de poderes, para reforçar o seu próprio poder. E findos mais quatro anos, em cima das mais de quatro décadas que já levava, o M não tem melhor argumento do que “a oposição é arruaceira e desorganizada” – que soa a “nós sabemos que não prestamos, mas eles podem ser piores”. Um fraco – fraquinho argumento de reeleição baseado em medos e fantasmas, pálido de provas de bom trabalho feito ou de esperança de futuro, particularmente incapacitante num contexto de mudança geracional e em que a opinião pública está farta do status quo, farta do poder nas mesmas mãos há tanto tempo, farta a ponto de provavelmente preferir gerida por um bando de galos desorganizados a continuar a insistir no que cada vez mais se demonstra um erro que leva quase meio século...
Aqui chegados, perguntas não faltam.
Qual é o argumento objectivo para a manutenção do poder pelo MPLA – fora os medos do que a oposição possa trazer? Qual é a obra feita de tal ordem positiva que justifique uma reeleição que vai levar a mais de meio século de poder? (Obra feita de preferência nos últimos quatro anos porque a obra feita antes disso foi inutilizada pelo líder que fez questão de tirar o anterior das notas e de lhe dar o título de insecto).
É que até para se ser ditador e assumir que um sistema democrático não serve é preciso ter obra feita – melhorias na qualidade de vida nas pessoas nos indicadores socioeconómicos que em Angola teimam em piorar tornando todas as promessas vazias de sentido... A China retirou 850 milhões de pessoas da linha da pobreza em 30 anos, passou de uma taxa de urbanização de 19,3% em 1978 para 60,3% em 2019. O nosso partido no poder há mais de 30 anos tem uma taxa de pobreza acima dos 40% para mostrar... O que pode justificar sequer a manutenção de um mesmo partido nestas condições 50 anos em contexto democrático? São os libertadores? O que dirá essa mensagem à nova geração votante e que não tem memória nem de colonialismo, nem de guerra? E há mais perguntas. Meio século de poder pode senão traduzir-se em captura do Estado? É sequer possível que um partido há meio século no poder saiba distinguir o que é partido do que é Estado que sirva todos? É sequer expectável que queira saber? É alguma surpresa que não sabendo delimitar fronteiras entre partido e Estado o partido escolha manietar cada vez mais os outros poderes, os media, a justiça? É surpresa que escolha fugir de processos democratizantes como as autarquias?
Até aonde o discurso do “eles são pior que nós’ poderá carregar o partido no poder?
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