E agora pergunto eu...
Numa semana em que África se aproxima dos oito milhões de recuperados do covid-19 apesar de um aumento de 3% nos contágios, e enquanto a Europa mergulha em quartas e quintas vagas que colocam o velho continente no epicentro da pandemia com um aumento de infecções de 8%, notícias a marcar a actualidade entre nós foram os anúncios animados das Finanças. O Governo pagou e vai continuar a pagar salários em atraso; o Governo promete um aumento salarial na função pública; o Governo vai implementar um conjunto de medidas de natureza fiscal flexíveis “que visam conceder alívio económico às empresas e às famílias”. A ministra acrescentou ainda que o programa de investimentos públicos vai absorver, no próximo ano, mais quase 350 mil milhões de kwanzas em grandes projectos do sector como hospitais, transportes, estradas, centralidades, energia e água...Tão bonito... tão benevolente, tão esforçado e preocupado com o cidadão e as famílias se tornou ultimamente o Governo. Porque será, querido leitor? Estas promessas, juntando à febre das inaugurações e cortes de fita que já começam a infectar os nossos governantes (na semana que passou correram fotos de uma inauguração de uma estrada de terra batida e esta semana correm outras de uma ponte já com aspecto de ferrugem), cheira a eleições, não cheira?
Mas, e agora pergunto eu, será que estas medidas eleitoralistas não “aumentam a raiva” do eleitor? A sensação de que o Governo está a fazer o que devia ter feito há muito tempo e está a usar obras e salários em atraso que são devidos, e cujo atraso certamente já poderá ter provocado danos, para se promover? Então, até aqui “era crise” e agora, que faltam meses para as eleições, são “aumentos salariais”?
Na semana que passou, saiu também a lista do FT dos melhores livros de 2021. E, entre os livros de geopolítica que costumeiramente populam a lista, os que há anos vêm prevendo como a geopolítica e, consequentemente, a economia mundial se vai comportar, muito focados na dinâmica China/EUA, sobretudo, sem deixar de fora a Rússia e este ano o Brasil, há uma entrada em particular que toca aos africanos e da qual já falei aqui neste espaço quando o andava a ler. O livro da jornalista de investigação Michaela Wrong ‘Do not disturb’ (que, em português, significa “não incomodar”) sobre o assassinato de um ex-chefe da inteligência do Ruanda num hotel na África do Sul e sobre o que ela descreve como “o descarrilar de um regime africano”. Diz o FT que o livro é uma pesquisa aturada sobre um dos líderes mais aplaudidos de África: Paul Kagame, que é acusado de orquestrar assassinatos dentro e fora do país, sendo questiona também o seu papel no genocídio que marcou aquele país. O Financial Times descreve o livro como “notável, arrepiante e devido há muito tempo”. Confirmo o arrepio. E uma das alegações mais interessantes é o que descreve como sendo manipulação dos registos económicos (e que lembra as queixas quanto à manipulação de estatísticas em Angola) que são componente essencial para que o regime siga não sancionado, apesar das evidências graves de crimes cometidos dentro e fora do país e, sobretudo, de uma brutal repressão de qualquer crítica da opinião pública.
No mês passado, uma ‘utuber’ foi condenada a 15 anos de prisão por fazer um vídeo online em que parecia tentar exorcizar o chefe de Estado. Antes disso, foi condenado a 25 anos de prisão o herói do filme Hotel Ruanda, Paul Rusesabagina (o gerente do hotel que deu refúgio a mais de três mil Tutsis para os salvar do genocídio em 1994), uma das vozes críticas de Kagame. Há uma entrevista em que, a propósito do esquema que usou para desviar Paul Rusesabagina para o Ruanda para ser preso, Kagame pergunta aos jornalistas “qual é o problema de se enganar um terrorista?”. Deixa claro que mover mundos e fundos, justiça e meios financeiros para prender um crítico não é problemático na mente do presidente. Diz muito sobre o seu caracter. A ministra belga Sophie Wilmes, que se pronunciou sobre o caso porque Rusesabagina era refugiado na Bélgica, afirmou que “a presunção de inocência não foi respeitada e que o julgamento não foi justo ou equitativo, pondo em causa o julgamento e a sentença”. É sem surpresa que os líderes mundiais se vão furtando a aparecer na foto com Kagame que costumava ser o exemplo de liderança em África”.
Na semana que passou, outro ‘utuber’ foi condenado no Ruanda a sete anos de prisão sob a acusação de “humilhação de funcionários do Estado” – uma figura que lembra o “ultraje à figura do Estado” que temos no nosso ordenamento jurídico e que se presta a estes atropelos (para além do famoso artigo 333 que, de forma velada, ameaça a liberdade de expressão).
Mas, e agora pergunto eu, porque é que vão para a vida política – uma vida intrinsecamente pública, exposta ao escrutínio do público, exposta a diferentes perspectivas – estes perfis que não admitem critica, não convivem bem com a liberdade de opinião alheia, não conseguem respeitar esse direito fundamental e não o compreendem? Perfis que não aguentam estiga? Perfis que mostram a cada oportunidade, como mimosos que são, que não gostaram disto ou daquilo? Perfis que não se coíbem de rotular como maus os que criticam e como bons os que aplaudem? Estes perfis que, com poder em mãos, atropelam a separação de poderes, infringem direitos, restringem liberdades fundamentais dos que consideram alvos a abater?
Há uma frase famosa que se dizia ser do filosofo francês Voltaire, mas que parece ser, na verdade, da escritora inglesa Eveline Hall, que devia ser gravada na cabeça dos políticos que nos governam e que diz o seguinte: “discordo do que você diz, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo”.
Liberdade de expressão é um princípio basilar, e mais no caso dos políticos que nos governam. A crítica faz também parte do processo de desenvolvimento tanto individual como colectivo, devendo, por isso, no que toca à gestão da coisa pública, ser mesmo incentivada.
O Ruanda anda longe desses conceitos e, com isso, parece ter arrefecido particularmente a abertura dos EUA para com o seu presidente outrora no top dos mais queridos. Angola, com os seus atropelos à liberdade de expressão, repressão de manifestações, fecho ou nacionalização de meios de comunicação social, criminalizações de jornalismo, segue também o caminho contrário do das democracias em desenvolvimento e vai recebendo cada vez mais avisos das instituições internacionais que zelam pelos direitos universais.
Recentemente, registou-se o fim de um dos programas de rádio com maior audiência do país precisamente pela ausência dessa aura perniciosa de censura. Uma aura instalada e que tirou do ar tantojornalistas catedráticos e instrumentais como Carlos Rosado de Carvalho, como jovens promessas como Israel Campos – cujo valor foi agora reconhecido com um lugar na BBC World News – entre muitos outros que vão vendo o espaço mediático reduzir-se a manchetes como “viagem de João Lourenço a Roma pode servir de bênção para o povo angolano”...
Os perfis de liderança que não convivem bem com a crítica, que estimam o uníssono da bajulação oca, tendem a atropelos de liberdades essenciais. Bênção, bênção seria que não os tivéssemos a governar países.
BCI fica com edifício do Big One por ordem do Tribunal de...