E agora pergunto eu...
Na semana que passou, o Orçamento Geral de Estado (OGE) foi aprovado sem qualquer surpresa por causa da maioria absoluta do partido que governa e que pode sempre passar qualquer coisa (mesmo que sem sentido) desde que venha de quem manda. Mas, sobre o OGE, valeram as questões levantadas pelo deputado da Casa-CE Leonel Gomes, que fazem um bom resumo das que pairam entre governados quando apontam para a “frustração de 47 anos deste exercício de aprovação do orçamento” que pouco ou nada serve efectivamente os interesses da nação. “47 anos é demajéééé” – dizia o deputado, que perguntava também o que foi feito da Califórnia prometida, lembrando que o documento ora aprovado segue, como em anos anteriores, cheio de despesas não especificadas “que vão servir para encher as panças insaciáveis porque os vícios continuam os mesmos”.
Sobre estas despesas e outras que são aprovadas à margem do OGE pelo Presidente, esta semana foi divulgado (oficiosamente) um documento em que a ministra das Finanças apresentava preocupações com as recorrentes contratações simplificadas e emergenciais que contrariam a Lei das Contratações Públicas e que são feitas sem consulta com o Ministério das Finanças, sem o parecer prévio que era de procedimento antes de 2018, dando a entender que estas despesas só aparecem sem qualquer aval de quem devia gerir o orçamento (a ministra a assustar e já está)... O documento corre pelos media e pelas redes sociais e ainda não foi alvo de qualquer desmentido, mas caso se confirme ser original, não traz qualquer novidade, senão o facto de a ministra poder estar cansada de ver o seu nome, a sua carreira e competência arrastada para o lamaçal pantanoso que é a governação do partido no poder. Se for esse o caso – bom para ela e para nós, porque o país precisa de cabeças que pensem por si e de pessoas com coragem, porque é bom deixar claro que, apesar do uso constante do adjectivo para caracterizar o Presidente (muitas vezes, em modo auto-elogio), coragem mesmo é fazer frente ao poder, fazer frente a quem já o não tem é o preciso oposto de coragem.
Voltado ao orçamento, uma das questões que o deputado também focou, para além do facto de a maior fatia continuar a ir para o pagamento de dívida para permitir ir buscar mais dívida, foi o facto surreal de, parafraseando: – “o orçamento vir também satisfazer o ego de pessoas da família presidencial em detrimento, claro, de programas de saúde”. O deputado referia-se ao programa ‘Nascer Para Brilhar’ da primeira-dama, Ana Dias Lourenço, que tem como objectivo a redução da transmissão vertical do vírus da sida e que dá assistência a mais de 3 mil mulheres e que terá uma dotação orçamental de 5,5 mil milhões de kwanzas no OGE. Um valor perturbador perto do orçamento de 1,3 mil milhões de kwanzas dedicados ao combate à malária, que continua a ser a principal causa de morte em Angola. O Sindicato dos Médicos já havia alertado que esse programa tinha um orçamento superior ao do combate à malaria, à tuberculose, às doenças crónicas, à lepra – combinados, isto sendo que o orçamento para o combate à malnutrição é de 1.5...
Bom, é bom lembrar que o facto de, depois de décadas de primeira-dama Ana Paula dedicada a concursos de misses, termos uma primeira-dama dedicada a programas de saúde vários é um avanço civilizacional indiscutível, porque os exemplos que vêm de cima são para seguir e são mesmo seguidos. Mas e agora pergunto eu, porque é que os fundos para esses programas hão-de sair do OGE? O facto de os fundos para esses programas – válidos que são – saírem do OGE não é apenas questionável como é – ainda por cima em valores superiores aos de programas vitais – um novo motivo de vergonha. Os programas da primeira-dama para apoio à saúde recebem, e devem continuar a receber, apoios do sector privado: das petrolíferas, dos bancos das grandes empresas. Não é do OGE que devem sair fundos para programas da primeira-dama que não é ministra da Saúde não tem de gerir orçamento público, particularmente num quadro em que as prioridades são fenomenais.
Os médicos estavam em greve há semanas e o que descrevem do sector é uma falta de básicos que os obriga a testemunhar impotentes mortes desnecessárias nos hospitais do país. Médicos mal pagos, sem luvas, sem soros, muitas vezes sem luz, sem água e a trabalharem em condições miseráveis com salários da ordem dos 300 mil kwanzas. Isto num país em que os supervisores de limpeza da Sonangol ganhavam meio milhão de kwanzas segundo uma tabela salarial que circulou no ano passado.
E não só o Ministério da Saúde dedicou toda a sua atenção e foco para uma covid-19 que, em Angola (felizmente), mata pouco, como a gestão da greve válida dos médicos foi feita com recurso a contratações de emergência e a outras ‘gestões espertas’ que visavam fazer demonstrações de força em vez de reconhecer a necessidade de acatar às negociações com a classe reconhecendo que vem sendo exposta à miséria e maltratada há décadas. As denúncias como a que o chefe da pediatria fez-castigadas com despromoções. O regresso do Dr. Adriano Manuel ao serviço depois de uma suspensão foi apenas o inicio da reposição que o Governo deve à classe.
Quando se gaba de investimentos na saúde, o poder refere-se geralmente às construções de hospitais, a cimento, à compra de equipamentos, esquecendo que são sempre precisas as pessoas para os fazer funcionar e que são essas que não temos ou que não valorizamos. Os enfermeiros já estão também em greve... e as imagens que continuam a chegar de dentro dos hospitais seguem, sendo tenebrosas enquanto o Governo aplaude a performance no combate à covid-19.
Temos uma governação permanentemente dissociada da realidade dos governados.
E, claro, a marcar a semana que passou estiveram também declarações que só podem ser descritas como alguma forma de ‘Tourette política’ com laivos de incontinência verbal. “Os nossos adversários acordam de manhã, à noite a cantar fome, fome, fome – a fome é sempre relativa – se quisermos ser mais precisos, o que falta é poder de compra”. Que necessidade pode explicar este tipo de declarações? A fome relativizada a críticas e ataques de adversários?
O Presidente de todos os angolanos, quando ovacionado pelos seus ‘militontos’ que o encorajam a ir dizendo cada vez mais impropérios, comete gaffes que desafiam qualquer lógica. E a sua aversão à assumpção de que no país que governa se passa fome, não só não é de hoje, como parece vir piorando.
Só no Sul do país, o programa das Nações Unidas contra a fome identificou no mês passado 114 mil crianças com menos de cinco anos com malnutrição AGUDA e são crianças que pertencem a famílias e a mães que só as deixam passar fome porque também elas passam fome. Estas declarações abjectas, insensíveis, amorais vindas de um Presidente que, mais uma vez, fala para a sua corte sem qualquer sentido de Estado (porque Estado inclui quem passa fome) são prova dessa dissociação governativa da realidade. A palavra fome que soa a ‘música relativa de adversários’ soa assim porque é um atestado da absoluta (e nada relativa) incompetência da governação do partido que dirige.
Com esperança teimosa que obriga a tapar os ouvidos à falta de empatia e de respeito pelo sofrimento de quem se devia representar, querido leitor, marcamos aqui encontro e na sua Rádio Essencial.
JLo do lado errado da história