ANGOLA GROWING
REGULAÇÃO DA IMPORTAÇÃO, EXPORTAÇÃO E REEXPORTAÇÃO

Incumprimento de Decreto permite sangria de divisas

09 May. 2016 Geralda Embaló De Jure

REGULAÇÃO. O decreto presidencial 265/10 visava o domínio do comércio no país com a criação e implementação de uma plataforma integrada que faria o controle de todos os circuitos contado com a intervenção do BNA e das Alfândegas sob supervisão do Ministério do Comércio. Seis anos mais tarde, e criada a plataforma, ainda não existe a integração sistemática entre os órgãos. O BNA continua a não fazer uso e a autorizar pagamentos ao exterior indevidos com divisa nacional.

 

O “objectivo da sobre-facturação é a exportação de capital, e saem do país milhões de dólares todos os meses há décadas por esta via”, ouviu o VALOR de um ex-quadro sénior envolvido no processo que levou à aprovação do Decreto de Lei que criava a plataforma SICOEX e que, passados seis anos, ainda não é cumprido na totalidade, apesar da operacionalidade da plataforma tecnológica.

O objectivo do decreto presidencial 265/10, promulgado pelo Presidente da República em 2010, era possibilitar a fiscalização dos processos de importação, exportação e reexportação de forma eficiente, sistematizada e automatizada de modo a impedir transgressões aduaneiras, proteger a política cambial e assegurar a segurança alimentar através do controlo de stocks e da prestação de informação vital aos produtores nacionais sobre eventuais lacunas no mercado.

A então ministra do Comércio, Idalina Valente, “terá notado uma gigante discrepância (de vários milhões de dólares) entre as intenções de importação e os registos de entrada de mercadorias nas alfândegas e daí partiram as investidas contra o fenómeno”, afirmaram duas fontes conhecedoras do processo e que acompanhavam as reuniões periódicas de fecho da balança comercial à época. Reuniões que incluíam membros do Ministério do Comércio (MINCO), das Alfândegas e do Banco Nacional de Angola (BNA). Contactada pelo VALOR, em diferentes ocasiões, a ex-ministra e actual deputada à Assembleia Nacional mostrou-se indisponível para falar ao VALOR.

Essa discrepância denunciava segundo outra fonte ligada ao BNA na altura, que existiria “exportação de capitais ilegal a uma escala só comparável aos níveis de importação, um crime económico”. De acordo com fonte do MINCO, sem um controlo sistematizado era permitido não apenas a exportação ilícita de divisas, como o branqueamento de capitais, porque o dinheiro recebido pelo banco comercial e transferido para fora podia entrar então no circuito internacional sem que houvesse controlo da sua origem.

A solução que o MINCO, ainda sob gestão de Idalina Valente, encontrou foi procurar o Ministério da Tecnologia em busca de uma ferramenta de controle que processasse automaticamente a informação prestada pelo importador ao MINCO, aquando do pedido de licenciamento de uma factura, cruzada com a informação do respectivo pagamento ao exterior autorizado pelo BNA e informação posterior da entrada da mercadoria pelas Alfândegas. Este ciclo virtuoso de informação iria travar a exportação ilícita e a fuga de capitais por via da importação de mercadorias, daria conhecimento ao MINCO de toda a mercadoria que dá entrada no país e permitiria ao BNA o controle sobre a efectivação das importações dos respectivos pagamentos ao exterior autorizados.

Em 2012 foi lançada a plataforma online SICOEX que iria fazer esta triangulação da informação das três entidades envolvidas nos processos (MINCO, BNA e Alfândegas) e permitir um controle da balança comercial de acordo com as normas da Organização Mundial do Comércio de que Angola se tornou membro.

A introdução da plataforma teve resultados, mas, “como num jogo do gato e do rato”, quem cometia infracções e estava habituado a fazer muito dinheiro exportando divisa ao câmbio do BNA e importando mercadoria com um valor muito inferior que também era vendida podendo ainda expatriar lucros, foi tentando arranjar outros modos de fugir à rede de controlo do SICOEX. Uma das soluções foi o investimento em empresas de consultoria que, porque se tratam de serviços, não estão cabimentados no SICOEX e não são mesuráveis pelas Alfândegas e demais autoridades reguladoras. “Não é surpresa nenhuma quando ouvimos que o país paga muito mais em serviços do que em qualquer outra mercadoria”.

O VALOR sabe de documentos oficiosos que são pagos uma média de 23,5 mil milhões em serviços todos os anos, um número mais de sete vezes superior ao que se importa em comida, o que dificulta sobejamente a fiscalização da politica cambial.

A exoneração da ministra que liderou o processo), ajudou a confinar a acção do SICOEX ao MINCO. O Decreto ficou então a meio do cumprimento porque a plataforma até hoje não cruza de modo automático a informação aí disponibilizada sobre licenciamento (por parte do MINCO) com a informação de pagamentos do BNA e com a entrada de mercadorias como previsto no Decreto Presidencial. O protocolo FTP (file transfer) que permite a partilha de informações entre as instituições que licenciam facturas e o BNA e as Alfândegas funciona, mas não consegue fechar o círculo de forma automática, sendo consultado essencialmente em caso de suspeita de transgressão e ficando aquém do projectado para o SICOEX que levantaria ‘bandeiras vermelhas’ em casos de irregularidades, poupando recursos humanos que os reguladores não têm, e direccionando as acções de fiscalização. O BNA segundo fontes muitas vezes não consulta a informação do licenciamento e chega a pagar facturas ao exterior não licenciadas pelo MINCO.

Sendo que o SICOEX e o Decreto que deu origem à sua criação só se focavam nas mercadorias, sendo que o país paga ao exterior várias vezes mais em serviços, e sendo que não existe qualquer rede de protecção focada neste peso da balança comercial, o potencial para infracções neste capítulo é varias vezes superior e mais difícil de calcular. Muitos transgressores mudaram o foco das mercadorias para os serviços para continuarem as operações de exportação de divisa minimizando as fiscalizações dos reguladores. O BNA que devia de proteger as divisas no âmbito da sua política cambial é quem mais vê a sua actividade reguladora fintada.

 

Infracções mil num ‘jogo de gato e rato’

O VALOR ouviu de vários intervenientes e conhecedores deste dossier exemplos de esquemas de fuga aos impostos, exportação ilegal de capitais, de branqueamento, de sobre e de subfacturação.

“Começou com os estrangeiros que eram os grandes importadores de bens essenciais nos anos 90”. Estes licenciavam facturas sobrevalorizadas, que vinham muitas vezes das suas empresas nos seus países, entretanto licenciavam facturas de valor mais baixo e que apresentavam na altura do processo de desalfandegamento. Ganhavam com a lavagem de dinheiro, com o câmbio do banco central, depois com a fuga aos impostos da mercadoria já subfacturada e ainda com a venda da mercadoria que dava lucro também ele exportado para os seus países de origem. Mais tarde os empresários nacionais “abriram o olho e passaram a fazer o mesmo principalmente com Portugal”, a fazer poupanças de divisa lá fora, “sendo que era dessa forma que pagavam casas e vidas de muito luxo no exterior”. “Eu, importador criava uma empresa em Portugal que faria as compras e passava facturas com valores exorbitantes que licenciava no MINCO. O BNA autorizava a transferência e o dinheiro chegava seguro à Europa. Depois era só ir buscar outra factura mais baixa ao MINCO e usá-la para desalfandegamento”, explica um importador.

O fecho de balança, que noutrora era trimestral, passou a ser mensal e actualmente é realizado todas as semanas, tal é a crescente necessidade de ajustamento ao ritmo das transgressões detectadas. O MINCO e as Alfândegas têm o trabalho de conferir a consonância dos valores submetidos nos pedidos de licenciamento com os valores das mercadorias nos mercados internacionais. No entanto há casos em que a mercadoria importada não tem o valor publicado, como por exemplo as peças para equipamento do sector petrolífero, que dificultam sobejamente o controlo. Mesmo que algo que custe 5 mil dólares venha com um pedido de licenciamento de 500 mil, o sistema autoriza por falta de paralelos comparáveis, explicam técnicos do MINCO que anunciam também actualizações importantes ao sistema para que o controle se torne mais eficiente.

As reuniões entre reguladores permitiram reduzir as transgressões e passou a ser usada só uma factura com um número que teria de ser o mesmo para o desalfandegamento. Em resposta, os transgressores então passaram a usar outro truque, contam ao VALOR funcionários seniores. Usavam a mesma factura para diferentes pagamentos em diferentes bancos porque o BNA não verificava quantas vezes tinha autorizado o pagamento da mesma factura. “Isto no tempo das vacas gordas não era preocupação, não havia grande necessidade de poupar e fiscalizar divisas”.

A partir de dezembro último, segundo funcionários do MINCO, ficou instituído o mecanismo de ‘pagamento único’ que obriga à discrição da entidade bancária que fará a transferência e que impede o BNA de autorizar a mesma factura mais do que uma vez. No entanto “o maior estrago já está feito porque foram anos destes truques que sangraram as divisas que agora não temos”. Porque os controles de mercadorias se tornaram bem mais apertados, os useiros e vezeiros destas transgressões passaram a importar mesmo já antecipando impossibilidade de desalfandegamento. Os embarques parciais, que levam à porrogação de licenças, são outro método muito usado para dificultar a fiscalização do MINCO.

Muitas vezes quando se ouve falar de uma destruição de ovos ou de medicamentos que já entraram estragados nos portos nacionais, isso acontece porque o importador queria exportar divisa e não se preocupa com o lucro da venda. Acontecem casos em que são recebidos pelas Alfândegas pedidos de desalfandegamento absurdos como contentores de fardo que não poderiam ultrapassar os 40 mil virem com factura de 750. O importador até pode calcular que o risco de não poder desalfandegar é elevado mas as divisas já fizeram o pagamento dos 750 mil dólares no exterior. Numa altura em que o dolár nas ruas se tornou muito escasso e caro, vale a pena mandar vir qualquer coisa que possa justificar uma transferência elevada porque as pessoas andam desesperadas para por divisa lá fora, enquanto outras fazem fortunas recebendo em kwanza com taxas exorbitantes. Os importadores são muitas vezes aliciados por funcionários dos bancos que, quando tomam conhecimento da possibilidade de pagamento ao exterior, propõem negócios em que ganham todos uma percentagem da transferência efectuada para o exterior. Vale tudo para ludibriar a fiscalização do Estado. Estes esquemas enfraquecem o tecido produtivo nacional porque o incentivo da importação é bem maior.