RODERICK NEHONE, ESCRITOR

“Não fiquemos ?a ouvir o barulho das multidões”

LITERATURA. Em meio ao corre-corre do lançamento de mais um livro, o escritor Roderick Nehone não deixou de explicar ao VALOR por que razão não concorda que a literatura angolana esteja a decair. E como entende ser “cada vez maior o nível de instrução e de cultura da nossa população”.

Quando passou de Frederico Manuel dos Santos e Silva Cardoso para ‘Roderick Nehone’?

No dia em que decidi publicar a minha primeira obra, em 1996. Os editores perguntaram-me se queria dar-me a conhecer com o meu nome próprio ou com pseudónimo. Decidi distinguir o cidadão e jurista do escritor.

Como concilia as funções de secretário do Conselho de Ministro e a de escritor?

É fácil. O importante é estar talhado para saber gerir cada uma delas. Felizmente, tenho conseguido gerir. É verdade que tenho cargos de alguma relevância no Estado, mas sei quais são as minhas obrigações enquanto cidadão e alto funcionário. Sei dos meus deveres e sei que tempo reservar para a literatura.

Em 1996, ganhou o prémio ‘António Jacinto’. No mesmo ano e em 1998, venceu o ‘Sonangol de Literatura’. Que impacto tiveram na sua afirmação enquanto escritor?

Reforçaram o meu compromisso com os leitores. Permitiram-me perceber que tinha alguma qualidade. Porque, até então, escrevia para mim apenas, para o meu deleite intelectual. Mas, ao dar a conhecer-me aos outros, fui reconhecido e premiado, isso aumentou o meu compromisso com a qualidade estética e das minhas leituras.

É por via dos concursos literários que os jovens escritores devem começar?

Não. Os prémios são uma casualidade. Para um indivíduo aspirante a escritor, concorre e não sabe se vai ganhar. No meu caso, como tive a felicidade de receber três prémios num intervalo de três anos, percebi que havia uma actividade intelectual que devia encarar com um sentido de responsabilidade.

Em ‘Catrapus’, um dos seus contos mais conhecidos, descreve uma cidade caótica em que as pessoas, em vez de viaturas, são transportadas em carros de mão. É uma crítica a Luanda de hoje?

A literatura é feita com base numa recriação da realidade à qual se junta a imaginação de quem escreve. Há aspectos daquele conto que produzem na mente um paralelismo relativamente ao que a gente vive. Há uma aproximação, ainda que metafórica, ainda que no domínio ficcional.

E abandona o conto sem dar esperanças de melhorias...

Se continuasse a levar as pessoas puxadas pela mão, teríamos um romance e não um conto. Como queria mesmo ter apenas um conto, tinha de ver como sair do conto. Para não convertê-lo em romance.

O que se pode esperar d‘A carteira Luísa Dylon e outros contos’?

É um livro bom de se ler. Vai chamar a atenção para a nossa vida, as nossas aspirações, os nosso sonhos e atitudes face às contrariedades da vida. Os desafios que nos colocamos, as cambalhotas que damos para triunfarmos na vida, cada um à sua maneira, usando os recursos de que disponham, sejam eles intelectuais ou materiais. É um livro que vai suscitar nas pessoas alguma reflexão sobre os aspectos éticos e filosóficos da vida. Sobre a antologia da vida. Recomendo que leiam.

Os cinco últimos livros variaram entre o romance e o infanto-juvenil. Porque aposta nos contos?

Escrevo sempre, com alguma regularidade, contos. Neste livro que acabo de publicar, o primeiro dos contos foi escrito em 2010 e o último em 2014. Quer dizer que há um intervalo de quatro anos de contos que fui escrevendo à vontade. Não me estabeleço datas rigorosas para terminar as obras. Vou escrevendo e chega o momento em que me apercebo “bem, devo concluir já isso”.

Em que género se sente à vontade?

Na prosa. Porque tenho uma maior liberdade de me aprofundar na reflexão sobre questões filosóficas que têm a ver com a vida e ética. A prosa dá-me a riqueza da descrição dos cenários, contextos e do estado de ânimo das personagens. Dá-me a força dos diálogos. As pessoas dialogam, exprimindo pontos de vista e a sua visão sobre a vida. Isto dá-me um prazer muito grande.

Será por isso que alguns se referem aos que escrevem poemas como poetas apenas, e consideram os contistas e romancistas escritores?

Nunca aproximei a minha percepção destas denominações a esta visão. As pessoas são livres de o fazer. Nunca me agarrei a esta visão da escrita ou da literatura.

Há quem diga que a literatura angolana tem vindo a decair. Concorda?

Não, não concordo.

Porquê?

Todos os anos há novos valores. Não importa aqui falar do quanto se publica de gente nova que esteja a escrever. Temos é de ter a percepção de que, todos os anos, há jovens a amadurecer neste país. Há adultos que aprofundam a maturidade que têm. Então, todos os anos, vamos ter obras com qualidade. Os homens vivem e não param a toda hora para fazer um balanço das suas vidas. Vivemos a voragem da vida. Este tipo de acepções de natureza analítica tem muito que ver com os momentos em que as pessoas param para olhar para o passado e para o presente. Às vezes, as pessoas perdem, nestas reflexões, a noção do muito que está a acontecer. E procuram encaixar a realidade nos axiomas predeterminados e predefinidos.

Com qualidade?

Estamos a procurar a qualidade. A qualidade não se alcança de um dia para o outro. A qualidade faz-se. E a qualidade só se faz com gente com qualidade. E, na justa medida em que aumentarem as pessoas e os formadores com qualidade, vai aumentar a qualidade dos formandos. Ainda que tenhamos de os contratar fora. É todo um processo. O país não se faz em duas, em três, nem em dez décadas. O país vai-se fazendo. Somos muito exigentes connosco mesmos, e isso acontece em todas as gerações. Temos é que fazer estas nossas análises sem entusiamos, com muita frieza. E pensar que está em curso um processo com as suas fortalezas e com as suas fraquezas.

O que tem feito para passar o que aprendeu, no domínio da literatura, aos jovens?

Escrevo. Tenho escrito.

É o suficiente?

A disponibilidade para palestras, por exemplo, depende da agenda de cada um e do que se faz. Já estive em palestras, na escola, já fui a escolas oferecer livros, conversar com estudantes. Mas não tenho sempre disponibilidade para fazer tanto quanto gostaria, porque já disse que não vivo da literatura. Tenho outras ocupações, mas isso é uma questão que pode ser casuisticamente organizada. Tem a ver com quem nos convida, com o nível de preparação do evento. O tempo é uma das raras coisas que não se empresta nem se dá. O tempo ou se investe ou se perde. E quando me envolvo em assuntos desta natureza, sou demasiado exigente. As pessoas também que estiverem envolvidas têm que se dedicar e se preparar convenientemente para que tiremos proveito da disponibilidade dos estudantes e da disponibilidade do escritor.

Publicar um livro em Angola ainda é muito caro…

Isso tem a ver com quem edita. O meu papel é escrever. Nunca lhes perguntei quanto custou. Não faço estas perguntas. Desde que me queiram editar…

Dirá isso porque é conceituado. E os que querem também publicar?

Vai chegar a hora deles também. Isso leva tempo. Não há barreiras. A mola impulsionadora é a persistência, a dedicação, o esforço e a preocupação permanente com a qualidade. No dia em que você tiver qualidade, os outros terão de se resignar a reconhecer. Você não vai fazer favor a ninguém quando apresentar o seu trabalho com qualidade, e não lhe vão fazer favor quando publicarem. Isso nos dá autoridade para falarmos à vontade e nos dá o privilégio de dizer “não quero publicar consigo”. Não fiquemos a ouvir o barulho das multidões, os boatos ou os comentários às vezes pouco abonatórios relativamente aos jovens que começam a escrever. Não se perturbem com isso. Concentrem-se no melhoramento da qualidade do vosso trabalho.

Como é que se consegue este “melhoramento da qualidade”?

Lendo. Aprendendo a ler. Tem de se ler para se escrever melhor. Tem de se ler permanentemente.

Quais são as suas referências?

Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Luandino Vieira. No domínio da poesia, Agostinho Neto. Podem parecer comuns, mas são as referências. Internacionalmente? Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, Honoré de Balzac, Victor Hugo, Paulo Coelho.

 

PERFIL

Roderick Nehone é pseudónimo de Frederico Cardoso. Nasceu em Luanda, em Março de 1965 e licenciou-se em Direito pela Universidade Central de Las Villas, Cuba. Foi docente na Universidade Agostinho Neto entre 1991 e 2004. Membro da Ordem do Advogados de Angola e recém-eleito presidente da mesa da assembleia geral da União dos Escritores Angolanos. Além de ‘O Ano do Cão’, sua obra mais conhecida, tem publicados mais de dez livros, alguns dos quais traduzidos em várias línguas. O seu último livro, lançado na semana passada, em Luanda, intitula-se ‘A Carteira Luísa Dylon e outros contos’. É, actualmente, secretário do Conselho de Ministros.