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Propriedade intelectual para a economia

23 Oct. 2017 Opinião

Os países em vias de desenvolvimento estão cada vez mais contra o regime de propriedade intelectual imposto nos últimos 30 anos pelas economias mais desenvolvidas. Têm toda a razão em fazê-lo, porque o importante não é apenas a produção de conhecimento, mas também a forma como é utilizado, de modo a colocar a saúde e o bem-estar das pessoas à frente dos lucros empresariais.

Quando, em 1997, o governo sul-africano tentou alterar as suas leis, de forma a beneficiar de medicamentos genéricos acessíveis para o tratamento do VIH/SIDA, toda a força jurídica da indústria farmacêutica global caiu sobre o país, atrasando a sua implementação e provocando elevados custos humanos. A África do Sul acabou por ganhar o processo, mas o seu governo aprendeu a lição: não voltou a tentar melhorar a saúde e o bem-estar dos seus cidadãos desafiando o regime convencional da propriedade intelectual (PI) global.

Até agora, o governo sul-africano está a preparar-se para finalizar uma política de PI que promete expandir substancialmente o acesso aos medicamentos. A África do Sul irá agora certamente enfrentar todo o tipo de pressões bilaterais e multilaterais, provenientes dos países mais ricos. Mas o governo tem razão, e os seus passos deveriam ser seguidos por outras economias emergentes e em vias de desenvolvimento.

Nas últimas duas décadas, o mundo em desenvolvimento tem resistido seriamente ao regime actual de PI. Em grande parte, tal acontece porque os países mais ricos têm procurado impor um modelo uniforme para todo o mundo, influenciando o processo de regulamentação na Organização Mundial do Comércio (OMC) e impondo a sua vontade através de acordos comerciais.

As normas de PI que os países mais desenvolvidos normalmente defendem são concebidas não para maximizar a inovação e o progresso científico, mas sim para maximizar os lucros das grandes empresas farmacêuticas e de outras empresas capazes de influenciar as negociações comerciais. Por isso, não surpreende que o contra-ataque esteja a ser liderado por grandes nações em vias de desenvolvimento com sectores industriais relevantes – como a África do Sul, a Índia, e o Brasil.

Estes países visam principalmente a manifestação mais visível da injustiça da PI: a acessibilidade dos medicamentos essenciais. Na Índia, uma alteração de 2005 criou um mecanismo único para restaurar o equilíbrio e a justiça às normas de concessão de patentes, salvaguardando desse modo o seu acesso. Depois de superar diversas contestações em processos nacionais e internacionais, a lei foi considerada conforme as normas da OMC. No Brasil, a acção atempada do governo em tratar pessoas com o VIH/SIDA resultou em várias negociações bem-sucedidas, que fizeram baixar consideravelmente os preços dos medicamentos. Estes países têm toda a legitimidade em opor-se a um regime de PI que não é equitativo nem eficiente. Num novo artigo, analisamos os argumentos sobre o papel da propriedade intelectual no processo de desenvolvimento. Mostramos que a preponderância das provas teóricas e empíricas indica que as instituições económicas e as leis que protegem o conhecimento nas economias actuais mais avançadas são cada vez mais insuficientes para gerir a actividade económica global, e são pouco adequadas para responder às necessidades dos países em vias de desenvolvimento e dos mercados emergentes. Na verdade, são contrárias à satisfação de necessidades humanas básicas, como a prestação de cuidados de saúde adequados.

O problema fulcral é que o conhecimento é um bem público (global), tanto do ponto de vista técnico, já que o custo marginal da sua utilização por alguém é zero, como numa perspectiva mais geral, porque um aumento no conhecimento pode aumentar globalmente o bem-estar. Perante isto, a preocupação é que o mercado não forneça conhecimento suficiente, e que a investigação não seja adequadamente incentivada.

Nos últimos anos do século XX, a sabedoria convencional defendia que esta ineficiência do mercado poderia ajustar-se da melhor maneira, através da introdução de uma outra ineficiência: os monopólios privados, criados através de patentes restritivas e impostas de forma rígida. Mas a protecção da PI privada é apenas uma das vias para resolver o problema do encorajamento e financiamento da investigação, e tem causado mais problemas do que alguém poderia prever, mesmo aos países mais desenvolvidos. Um “matagal de patentes” cada vez mais denso, num mundo de produtos que precisam de milhares de patentes, asfixia por vezes a inovação, havendo casos em que se gastou mais com advogados do que com investigadores. E a investigação é frequentemente direccionada, não para a produção de novos produtos, mas para a extensão, alargamento e alavancagem do poder monopolista concedido pela patente.

A decisão tomada em 2013 pelo Supremo Tribunal dos EUA, de que os genes que ocorram na natureza não podem ser patenteados, constituiu um teste para saber se as patentes estimulam a investigação e a inovação, como afirmam os seus defensores, ou as dificultam, restringindo o acesso ao conhecimento. Os resultados são inequívocos: a inovação foi acelerada, levando a melhores testes de diagnóstico (para a presença, por exemplo, dos genes BRCA relacionados com o cancro da mama) a custos muito inferiores. Existem pelo menos três alternativas para financiar e incentivar a investigação. Uma consiste em depender de mecanismos centralizados para apoio directo à investigação, como o Instituto Nacional de Saúde e a Fundação Nacional de Ciência, nos Estados Unidos. Outra consiste em descentralizar o financiamento directo, por exemplo através de créditos fiscais. Finalmente, um órgão governamental, uma fundação privada ou uma instituição de investigação podem atribuir prémios a inovações bem-sucedidas (ou a outras actividades criativas).

O sistema de patentes pode ser encarado como um prémio que é atribuído. Mas este prémio impede o fluxo do conhecimento, reduz os benefícios que dele se podem extrair, e distorce a economia. Em compensação, a alternativa final a este sistema maximiza o fluxo do conhecimento, ao manter uma colectividade criativa, exemplificada pelo software de código aberto.

As economias em vias de desenvolvimento deveriam usar todas estas abordagens para promover a aprendizagem e a inovação. Afinal, há décadas que os economistas reconheceram que a determinante mais importante do crescimento (e, consequentemente, dos ganhos em desenvolvimento e bem-estar humanos) é a mudança tecnológica, e o conhecimento que a mesma implica.

Aquilo que separa os países em vias de desenvolvimento dos países mais desenvolvidos é tanto um fosso de conhecimento como um fosso de recursos. Para maximizar o bem-estar social global, os legisladores deveriam encorajar fortemente a difusão do conhecimento dos países mais desenvolvidos para os países em vias de desenvolvimento.

Mas embora a defesa teórica de um sistema mais aberto seja forte, o mundo tem avançado na direcção oposta. Nos últimos 30 anos, o regime predominante de PI criou mais barreiras à utilização do conhecimento, provocando frequentemente o alargamento do fosso entre os rendimentos sociais da inovação e os rendimentos privados. Os poderosos lóbis das economias mais avançadas que moldaram este regime colocaram claramente os últimos em primeiro lugar, como reflecte a sua oposição a provisões de reconhecimento de direitos de propriedade intelectual associados ao conhecimento tradicional ou à biodiversidade.

A adopção generalizada da protecção meticulosa de que a PI é hoje alvo também é historicamente inédita. Mesmo entre as economias que se industrializaram em primeiro lugar, a protecção da PI apareceu muito tarde, e foi várias vezes deliberadamente evitada para permitir uma industrialização e um crescimento mais rápidos.

O regime actual da PI não é sustentável. A economia global do século XXI diferirá da do século XX em pelo menos dois aspectos críticos. Primeiro, o peso económico de economias como a África do Sul, a Índia e o Brasil será consideravelmente maior. Segundo, a “economia leve” – a economia das ideias, do conhecimento, e da informação – será responsável por uma parcela crescente da produção, tanto nas economias mais desenvolvidas como nas economias em vias de desenvolvimento.

As regras relativas à “governação” do conhecimento global devem alterar-se para reflectir estas novas realidades. Um regime de PI imposto pelos países mais avançados há mais de um quarto de século, em resposta às pressões políticas de alguns dos seus sectores, faz pouco sentido no mundo actual. A maximização dos lucros para alguns, em vez do desenvolvimento e do bem-estar globais para muitos, também não fazia muito sentido na altura – excepto no que diz respeito às dinâmicas de poder de então.

Essas dinâmicas estão a mudar, e as economias emergentes deveriam liderar a criação de um sistema de PI equilibrado, que reconheça a importância do conhecimento para o desenvolvimento, o crescimento, e o bem-estar. O que importa não é apenas a produção do conhecimento, mas também que este seja utilizado de modo a que a saúde e o bem-estar das pessoas fiquem à frente dos lucros empresariais. A potencial decisão da África do Sul em conceder acesso aos medicamentos poderá ser um marco importante no caminho para essa meta.

 

 Joseph E. Stiglitz Prémio Nobel de Ciências Económicas em 2001

Dean Baker Co-director do Centro de Pesquisa Económica e Política em Washington, DC.

Arjun Jayadev Professor de economia na Universidade Azim Premji e economista sénior do Instituto para o Novo Pensamento Económico.