“Sabemos a diferença entre um processo judicial e um assalto do Estado”
Entrevista. A faltarem menos 48 horas da data marcada para o início do julgamento de Carlos São Vicente, o seu advogado tem uma mão cheia de reclamações. Em respostas, por email, ao Valor Económico, queixa-se do “curto prazo” entre a notificação e o arranque do julgamento. Critica o “assalto” aos bens do seu constituinte por obra do Estado e não tem dúvidas de que toda a actuação das autoridades, até ao momento, representa uma condenação antecipada. Contudo, mantém a crença na imparcialidade dos juízes.
Cconfirma o início do julgamento para 26 de Janeiro?
Foi, de facto, recebida uma notificação formal no dia 11 de Janeiro pela equipa de defesa de Carlos São Vicente. Francamente, este é um prazo razoável? Como pode um acusado preparar a sua defesa de forma eficaz em tais condições? Consideramos que este curto prazo concedido pelas autoridades angolanas para a preparação deste complexo julgamento demonstra, mais uma vez, as violações dos direitos de defesa de Carlos São Vicente. O arguido foi notificado apenas no dia 18 de Janeiro de 2022. Carlos São Vicente ainda continua preso em Viana, apesar de a prisão preventiva ter terminado em 22 de Novembro de 2021. Devia ter sido solto, mas continua ilegalmente preso. Preparar um julgamento com o arguido é um processo difícil por estamos sujeitos a muitas limitações de tempo, de local, de privacidade e de acesso à informação.
Qual é o estado de saúde e psicológico de Carlos São Vicente?
Apesar da sua saúde frágil, devido à detenção ilegal e injustificada que sofre há mais de um ano, e das condições extremamente difíceis na prisão de Viana (em particular, falta de acesso a cuidados médicos apesar de graves problemas de saúde), São Vicente impressiona com o seu espírito de lutador. Ele espera que os juízes que decidirão o seu caso reconheçam as graves e sistemáticas irregularidades cometidas pelas autoridades que anteriormente trataram do caso e cheguem à única conclusão possível, ou seja, de que ele é inocente. São Vicente padece de três doenças crónicas. Já esteve internado na clínica duas vezes. A segunda vez foi salvo da morte por um triz, chegou à clínica em estado crítico. Na prisão, tem tido várias crises hipertensivas que afectaram gravemente a sua saúde.
Apresentaram uma queixa contra o Estado angolano à ONU. O que esperam desta queixa, considerando que grande parte das pessoas acredita que não passa de uma queixa simbólica?
A queixa às Nações Unidas não é, de forma alguma, simbólica. Em várias ocasiões, o Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária constatou violações de direitos fundamentais de indivíduos e condenou os Estados relevantes, incluindo países muito "poderosos". É uma instituição altamente respeitada no mundo e as suas opiniões são muito influentes porque são emitidas por especialistas reconhecidos e não por políticos. Não temos dúvidas de que esta instituição chegará à mesma conclusão em relação à detenção de São Vicente e ao procedimento ilegal e manipulado que está a sofrer. Mas, além da situação de São Vicente, este procedimento perante a ONU vai ajudar todos aqueles que esperam justiça em Angola, aqueles que nunca são ouvidos e cujos direitos são violados todos os dias por um governo que coloca Angola à margem do comunidade internacional.
Que julgamento espera uma vez que a defesa, inúmeras vezes, afirmou que “São Vicente é vítima de diversas violações da presunção de inocência, do direito a um processo justo ou ainda do direito a uma defesa efectiva”?
Queremos acreditar que os juízes que agora terão de lidar com o caso terão a coragem de se distanciar da abordagem das autoridades que os precederam e poderão olhar objectivamente para os factos do caso. Se assim não for, São Vicente e a equipa de defesa não deixarão de denunciar perante as autoridades competentes as violações dos princípios fundamentais do julgamento justo, da presunção de inocência e do direito a uma defesa eficaz, seja em Angola, no estrangeiro, seja internacionalmente. Em particular, estamos certos de que a Suíça não aceitará cooperar com as autoridades angolanas em tal cenário.
Pode revelar alguns argumentos de defesa que estão preparados?
A prova dos autos demonstra que tanto a atribuição do mercado segurador e ressegurador das actividades petrolíferas como as actividades exercidas há mais de 20 anos com dedicação e profissionalismo por São Vicente são inteiramente legais. Vários elementos demonstram isso, tal como as decisões oficiais e públicas que permitiram o desenvolvimento dessas actividades, os relatórios financeiros das diferentes entidades envolvidas, auditados por renomadas empresas internacionais, e os depoimentos de várias testemunhas credíveis e informadas. O caso da acusação é baseado em apenas um documento, um relatório que não é datado nem assinado. Nenhuma investigação séria pode considerar este elemento como credível, especialmente quando se trata de condenar um empresário que tanto fez pelo seu país e investiu na sua economia.
O histórico do processo dá conta que, solicitada através de uma carta rogatória das autoridades suíças, a PGR respondeu, a 7 de Agosto de 2020, que não existiam “indícios de prática de crimes de corrupção, branqueamento de capitais, participação económica em negócios ou qualquer outro crime em conexão com os factos constantes da carta rogatória”. No entanto, a 8 Setembro, a mesma PGR, depois de notícias, manda apreender activos do arguido e, a 22 de Setembro, é decretada a prisão. O que terá mudado que motivou a alteração do posicionamento da PGR?
A PGR, apesar de inúmeras perguntas nesse sentido, nunca conseguiu explicar com credibilidade o que poderia ter justificado esta mudança de posicionamento. Todas as informações sobre o processo suíço e as actividades de São Vicente já estavam nas mãos desta autoridade no momento da sua resposta em Agosto de 2020. Além disso, não houve investigação adicional entre esta resposta e a detenção de São Vicente apenas um mês depois, o que poderia ter justificado esta súbita mudança de posição. A PGR tentou explicar-se nos meios de comunicação social angolanos dizendo ter recebido novas informações da Suíça durante o encontro entre a Sra. Eduarda Rodrigues e as autoridades Suíças. Isso simplesmente não é verdade, pois a Suíça não pode transmitir nenhuma informação fora dos procedimentos formais de assistência mútua e após uma decisão formal e final que ainda não foi emitida. O desenrolar dos acontecimentos em Setembro de 2020 e a cronologia mostram, pelo contrário, que a abertura do processo contra São Vicente e a sua prisão foram motivadas pela violenta campanha mediática que o atingiu após a divulgação pública do processo suíço e das quantias de dinheiro apreendidas naquele país. Estamos convictos de que se trata de uma decisão política, pois a PGR está legalmente obrigada a seguir as instruções do governo (como os tribunais espanhóis notaram recentemente noutro caso, quando se recusaram a extraditar uma pessoa para Angola por essa mesma razão). A acusação de São Vicente é um meio de campanha política do Governo, para desviar a atenção da população e tentar apaziguar uma população cada vez mais crítica às suas acções e à catastrófica situação económica e social do país.
Enquanto advogado, consegue explicar em que circunstâncias o arguido se tornou accionista maioritário da seguradora AAA, quando a empresa foi criada pela Sonangol?
A decisão de privatizar o sector segurador e ressegurador das actividades petrolíferas foi tomada desde a criação da estrutura, tal como aconteceu noutros sectores da economia angolana e no resto do mundo. Assim, mesmo que as empresas AAA tenham sido inicialmente constituídas pela Sonangol por razões de conveniência, foi decidido desde o início que as acções seriam atribuídas a entidades privadas o mais rapidamente possível. A transferência de propriedade à medida que a estrutura evoluiu foi resultado de decisões formais tomadas pelos vários conselhos de administração e accionistas devidamente autorizados. Cada passo foi tornado público através de publicações oficiais acessíveis a todos. A própria Sonangol confirmou que não tem reclamações a este respeito em duas declarações oficiais apresentadas às autoridades suíças. É simplesmente inconcebível sustentar, mais de 20 anos após os factos, que essa transferência de propriedade era ilegal quando era conhecida por todos os interessados e pelo público sem levantar a menor objecção.
Apesar de o caso ainda não ter sido julgado, alguns dos activos das AAA, com destaque para os edifícios, já passaram para a esfera do Estado. Que leitura a defesa faz dessa decisão das autoridades angolanas?
Sabemos a diferença entre um processo judicial e um assalto do Estado! Esses elementos são uma confirmação factual objectiva e indiscutível da violação da presunção de inocência do nosso cliente. Num Estado de Direito, tal atribuição só pode ocorrer após uma decisão final de condenação e confisco por um tribunal independente. No nosso caso, São Vicente não foi condenado e deve beneficiar da presunção de inocência. Ao apropriarem-se dos seus bens, as autoridades angolanas estão a demonstrar que já o consideram culpado, mesmo antes de ter tido um julgamento justo. Essa atribuição nada mais é do que uma extorsão do Estado que poderia explicar, além das motivações políticas acima mencionadas, as razões da abertura do processo. Que investidor confiará num Estado capaz de tais acções? É contra os interesses económicos e a reputação do país. Estas acções geram insegurança jurídica e incerteza entre os investidores. Além de afugentar e repelir investidores, tais acções podem levar também outros investidores a desinvestir e a adiar investimentos planeados.
Será a crónica de uma condenação anunciada?
Correcto. Podemos até acrescentar que isso provavelmente demonstra que as autoridades judiciárias receberam instruções nesse sentido. Esperamos, no entanto, que os juízes que em breve irão conhecer o caso tenham a coragem de denunciar estas práticas e de provar a inocência de São Vicente.
O Governo, em 2018, entretanto, aprovou a compra de alguns destes edifícios. Sabe se este negócio se concretizou?
É correcto que o Governo adquiriu edifícios AAA em todas as províncias de Angola, ainda antes de 2018, para os usar para fins públicos.
JLo do lado errado da história