Despartidarização do Estado, Desmilitarização das Mentes

05 Aug. 2024 Opinião

Ao fim de mais destes 48 anos de Estado Independente, estamos numa encruzilhada sobre a qual nem sequer sabemos como nos “desenvencilhar”. Há alguns anos não muito longínquos, os males dos nossos antecessores andavam à volta do reumatismo e demais mazelas de carácter físico. Nos dias de hoje, temos que acrescentar os Parkinson e Alzheimer para além do Covid. Apesar de tudo isso, vamos mantendo o nosso estilo de vida pese o facto que sem a mobilidade de há alguns anos. Considerando tudo isto como normal, o anormal é não sabermos qual é o legado sobre o nosso estado que iremos deixar a nossa sociedade, aos que nos substituirão.

Despartidarização do Estado, Desmilitarização das Mentes

E falando sobre e em nome da minha geração, a que começou a trabalhar no início dos anos setenta sem nunca ter pensado que um dia iria ter que deixar de trabalhar, deixar de agradar ao partido, que um dia iríamos ter o direito de viver sem ter que trabalhar e ainda por cima teríamos uma pensão. Não estamos assim tão mal, afinal de contas poderia ser pior, mas temos a obrigação e o dever de sublinhar que deveríamos estar todos muito melhor. Afinal de contas o que falhou? Porque falhou? Como falhou? Afinal de contas eu só estou bem até onde o meu cartão do BPC me permite. E isso quando funciona. Só que a maioria não está aí, nem sequer beneficia disso, a menos que pertença ao ‘partido’. Que viva umbilicalmente conectado ao ‘partido’. É sempre o ‘partido’. Viveu-se para o ‘partido’, com o ‘partido’, a custa das benesses do ‘partido’.

Tudo começou em 1975 quando o partido se assenhoreou do poder e, fazendo uso do aprendizado da ditadura salazarista, recrutou para todos os  postos e posições de responsabilidade nos serviços a nível do Estado militantes, e para trabalhadores a grande massa de simpatizantes. “Era preciso gente de confiança.” Camaradas. Partidarizou-se o aparelho de Estado. O ‘partido’ ganhou raízes e, com o crescer do tronco desta árvore que se tornou gigante, até os frutos passaram a ser do ‘partido’. A nível de chefia e ou responsabilidade, não existe ainda hoje no aparelho de Estado em Angola alguém que não seja do ‘partido’. Por isso é que a função pública é deficiente e amorfa, tal qual o ‘partido’. Por isso é que o Estado não funciona para o bem comum, servindo acima de tudo as gentes do ‘partido’. Por isso é que está tudo muito mal, está tudo partido.

É assim necessário que se faça a despartidarização (ou desparasitação?) do aparelho de Estado. É necessário que se faça a supressão da influência e controlo do partido (MPLA) sobre o aparelho do Estado. A influência política tem que ser retirada para que o terreno se torne propício a uma boa gestão em benefício de todos os angolanos. Temos que saber afastar a política da nossa burocracia de modos a que os verdadeiros burocratas brilhem por mérito próprio e não pela simpatia da cor partidária, a cor do cartão que temos no ‘kafukolo’. Temos no serviço público dezenas de indivíduos velhos e ultrapassados muito mais os incompetentes que os válidos, a nossa herança do pós 75. Temos que reformá-los a todos para melhorar a qualidade do serviço e, desta maneira, contratando qualidade, melhorar a qualidade de vida desses mesmos cidadãos. Há que dar lugar aos jovens que fomos treinando, respeitando a educação e introduzindo meritocracia, desenvolvendo um código de ética que será o pilar do nosso futuro. É nossa obrigação reformar a presença do ‘partido’ na função pública. É preciso despartidarizar o Estado, o exercício da burocracia do nosso dia-a-dia.

E, apesar de já há mais de 20 anos vivermos sem guerra, temos também de desmilitarizar as mentes. O nosso ‘modus vivendi’ desde a nascença turbulenta do nosso país (sem esquecer a luta pela independência) fez de nós vítimas da violência psicológica de origem militar. O nosso sistema governativo firmou-se como um militarismo altruísta, numa forma de governo em que predominavam os militares sem qualquer preparação para governar. A ingerência do corpo militar na vida política e social agravou-se após a morte de Agostinho Neto quando governar o país se tornou defender o país. Sem saber de quem, o importante, dizia-se, era defender o país.

Os militares são normalmente o corpo social treinado para, em nome da pátria, viver em prontidão para o combate. Por outras palavras, o militar é altamente treinado para receber e cumprir ordens para matar, não para salvar vidas como o fazem os médicos. Ou para melhorar a qualidade de vida como o fazem os engenheiros. Ou ainda para equilibrarem a razão e a justiça como são treinados para o fazer os advogados. Os militares são treinados para o exercício da força e da violência. Já alguém ouviu falar dum golpe de Estado protagonizado por médicos, professores, engenheiros ou advogados? 

Infelizmente, esses executores da força para assegurar a defesa do país saíram dos seus limites e parasitismo e, misturando-se com as cores do partido que sempre representaram, apoderaram-se do poder político. Saltaram dos quartéis e subiram ao palácio. Uma vez mais o ‘partido’ abandonou os ideais de bem estar dos angolanos e deu oportunidade aos homens das armas para aparecerem na função de gestão pública para a qual não estão preparados e de onde não se querem afastar. Os militares são treinados para seguir ordens, não são qualificados para gerir quaisquer bens públicos. Não foi esse o propósito de ‘treinar’ os pioneiros da OPA ao colocá-los com armas de faz de conta nas mãos para as sua brincadeiras de infância? Não foi para adestrar os adultos de hoje de modo a que sigam de forma fiel e “disciplinada” as ordens militaristas que lhes forem dadas?

Infelizmente, a distinção cívica entre militares e políticos não é visível aos olhos da nossa população. Ainda hoje se olha para os militares como os ‘heróis’ que não são e grande parte da população dobra-se perante os ‘generais’. Tratam-nos como deuses que não são. Porque enriqueceram. Porque, na sua passagem pelo palácio, se apoderaram dos dinheiro e demais bens públicos, o que lhes permite comprar a mente dos nossos concidadãos. O que lhes permite intimidar toda a sociedade de tal maneira que o cidadão comum nunca entra em desacordo com as gentes dos quartéis. Só assim, numa assentada oportunista, os militares graduados se puderam assenhorar de mais de cinquenta por cento das terras hoje privadas do país, despojando os autóctones dessas terras com tanta ou mais violência que a utilizada pelo colono. A fúria da apropriação deixou marcas de norte a sul do país. “Os militares são donos de quase tudo”, ouve-se da boca do povo.

É urgente reconhecermos as funções de todos os organismos sobre os quais assenta a nossa soberania. Os militares que fiquem pelos quartéis, consumindo uma fatia gorda dos OGE e que deixem de uma vez por todas os corredores do palácio e da Assembleia Nacional. Que esses corredores sejam preenchidos por cidadãos civis, cumpridores da lei e treinados para tão difícil labuta. Somos maioritariamente civis e temos o direito de ser governados por civis, por gente de paz. Basta de interferência militar, de homens de farda, de gentes que só estão treinados para fazer guerra. O povo que não merece essa calamidade e que a tem aturado, o povo que luta todos os dias contra tudo e contra todos, agradecer-lhes-á o bom senso, o regresso a paz dos quartéis. Só assim, iremos criar oportunidades para corrigir o que está mal e melhorar o que está bem. E quem ganhará é o povo. O futuro promete.

 

 

 

 

 

 

António  Vieira

António Vieira

Ex-director da Cobalt Angola