“Enquanto os salários forem baixos, a corrupção vai continuar”
Logo que assumiu o cargo no extinto Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN), tratou de chamar a Multitel para instalar a Internet. ‘Dinho’ Chingunji trouxe a experiência dos países anglófonos, onde estudou: quis ver os subordinados globalizados e a trabalhar melhor, mas foi logo mal interpretado. O antigo titular da Hotelaria e Turismo elogia a postura de João Lourenço, mas adverte que ainda há um longo caminho a percorrer no combate à corrupção.
Que avaliação faz da actual situação económica?
O país estava a caminhar para um estado de falência.
Porquê?
Por causa do saque ao erário. Dinheiro que, se fosse aplicado, Angola seria um dos melhores países do continente. E as razões são simples: somos um país com muita riqueza e pouca população. Somos cerca de 30 milhões de habitantes. Então, era só uma questão de encetar uma boa gestão da coisa pública e não como correu com benefícios para uma minoria, que exibia riqueza alheia através deles próprios e dos filhos.
O que falhou para travar o acumular dessa riqueza?
Não é preciso recorrer a técnicos de outras latitudes para nos darem lições. Todos sabemos que o Estado falhou na fiscalização. Se um funcionário público, com um salário de miséria, de repente, exibe um palácio de oito milhões de dólares, ou um carro topo de gama de 200 a 500 mil dólares isso deve levantar suspeitas. Logo, estariam em acção os órgãos de fiscalização para apurar a origem desse património. Por exemplo, muitos angolanos que compraram casas na África do Sul perderam-nas a favor do Estado porque não tiveram como justificar a origem do dinheiro. É assim que as coisas ocorrem nos países organizados.
Estão correctas as políticas do MPLA quanto ao combate à corrupção?
O Estado funciona como uma empresa do povo, onde cada um tem a sua quota. Sendo uma entidade de todos, se alguém retira dinheiro, que é propriedade colectiva, deve devolvê-lo. Dizer apenas que o importante é devolver o dinheiro e perdoar não basta. Mas também tudo isso ocorreu por causa da desorganização do Estado. E as pessoas indiciadas aplicaram o dinheiro onde mais achavam que era rentável, sendo esse também um incentivo ao roubo.
Mas esse combate está ganho ou há ainda um longo percurso?
Gostei quando o Presidente João Lourenço disse, em entrevista, que esse combate é um processo contínuo e não de um dia para outro. Tem razão. Vai levar tempo porque as mentalidades precisam de ser arejadas. Fui há tempos a uma repartição pública em que, depois de retirar a senha para ser atendido, apareceu um europeu com um grupo de pessoas a quem instruí sobre os procedimentos, mas este acabaria por ser atendido em primeiro lugar sob pretexto de que já lá tinha estado no dia anterior. Isso significa que ainda está tudo na mesma, mas é preciso mudar.
Como acha que se pode mudar esse quadro?
Há coisas básicas que devemos reconhecer. Enquanto os salários, sobretudo no sector público, forem de miséria, teremos sempre problemas da ‘micha’ e da ‘gasosa’. O vício para a sobrevivência vai continuar e daí para a alta corrupção é só mais um passo.
Como elevar o salário se o país não produz e a inflação cresce em flecha?
Angola produz petróleo, tem diamantes, entre outras riquezas. O que não existe é o pensamento sério do que é prioritário para a nossa vida. Na República Democrática do Congo (RDC), vive-se com o equivalente a 100 dólares por mês. Não sou economista, mas prefiro soluções práticas. Porque razão não vamos à RDC, à Zâmbia ou à Namíbia aprender com esses países, muitos deles encravados, que importam e não produzem nada?
Mas nesses países que citou o dinheiro circula, quando nós temos o problema da falta de divisas...
Tente explicar-me a razão.
Gostaria de a ouvir de si.
Tornamos Angola numa ‘lavandaria’ de dinheiro e isso está a penalizar-nos em termos de acesso às divisas. Os nossos bancos perderam prestígio, não são respeitados no sistema financeiro internacional, porque pertencem a pessoas envolvidas na corrupção. Fomos sendo avisados sobre as consequências dessa ‘lavagem’ de dinheiro e não cumprimos, por arrogância, e ainda nos gabamos que éramos um país rico e que seria sempre desejado. Mas, como hoje estamos num mundo globalizado - e, na realidade, somos um país ‘miúdo’ que não se deve confrontar com gigantes como os EUA - perdemos e fecharam-nos as portas: os dólares tornaram-se numa miragem e estamos a vê-los pelo ‘canudo’.
Mas ainda é possível credibilizar o sistema financeiro, concorda?
Enquanto o sistema estiver ligado às pessoas que fizeram parte dessa desgraça, o mundo não nos vai aceitar de ânimo leve.
Está a falar em ‘acabar’ com os governantes milionários…
É exactamente isso o que queria dizer. É preciso mudar o sistema de governação. Se um alto governante se torna milionário e não sabe justificar a origem dessa fortuna, ou do banco que lidera, quando se sabe que tudo veio à boleia do dinheiro da Sonangol, que é um ente público, é porque não há seriedade. Logo, esses bancos são do Estado. Lá fora, não é aceite a criação de um banco com dinheiro do Estado. Aliás, muitos dos nossos bancários recusavam participar em fóruns internacionais, porque ali seriam confrontados com várias questões sobre o funcionamento e constituição dessas entidades financeiras.
Poder bem entregue
Como olha para o processo de transição política em si?
De uma forma diferente, a desgraça do Presidente João Lourenço é também a sua sorte. O ex-Presidente José Eduardo dos Santos acertou na escolha, porque João Lourenço está a empreender algumas mudanças positivas, já que o país estava a ficar saturado. Não é milagre: uma pessoa que sabe que se aproveitou do sistema não conseguiria aplicar nada. Estaria logo de início condenado ao fracasso. Mas, seja como for, tem ainda muito caminho por desbravar.
Um “caminho” em que sentido?
Como é que países encravados e que importam têm preços mais acessíveis e nós, com o mar, temos um mercado com custos muito elevados? A economia está refém dos ditos empresários-governantes que bloqueiam pessoas com talento de operar mudanças económicas.
Enquanto ministro da Hotelaria e Turismo no extinto GURN, que marca deixou no ‘palácio do vidro’?
Não gosto de falar de mim. Esta é tarefa que delego aos outros, sobretudo às pessoas com quem trabalhei durante quatro anos. Sou uma pessoa que acredita no balanço e na contabilidade.
Tem saudades do tempo no Governo?
Não sou pessoa de saudades, mas gostei de trabalhar na função pública para saber como funciona a ‘máquina’. Digo, porém, que devemos dignificar as pessoas que, por vezes, ficam sem tempo para a família.
Deixou o Ministério conforme o encontrou?
No dia em que entrei, nada sabia e nem mesmo havia alguém a dar orientações de trabalho. Nunca tinha feito despachos na minha vida e, por isso, tinha medo de ser humilhado.
Então, porque aceitou o cargo?
No seio familiar, fomos educados com o sentido de servir Angola. Assim que assumi o cargo, olhei para as condições de trabalho num ministério com um ‘magro’ orçamento. Aliás, o papel do Ministério da Hotelaria e Turismo é de atrair investimentos, mas era necessário primeiro potenciar o funcionário, acomodá-lo em termos laborais. Mandei a Multitel instalar o serviço de internet, pelo menos, para responsáveis que deviam estar ligados ao mundo e houve ainda alguma resistência de pessoas a pensar que era uma empresa em que tinha interesses. Isso nunca me passou pela cabeça.
Mas as suas decisões eram tidas pelo Presidente da República. Teve espaço para trabalhar?
Nunca despachei directamente com o Presidente José Eduardo dos Santos, mas todas as minhas ideias que chegavam ao seu gabinete tinham sempre o seu parecer favorável. Os programas eram bons, mas encontravam barreiras na aplicação. Portanto, havia bloqueios.
Como olha hoje para o turismo?
O Governo não investe no turismo, apenas cria incentivos para impulsionar quer o turismo quer os serviços de restauração e hospedagem.
Como o do projecto Okavango-Zambeze?
Sim, traçámos as linhas de acção, amadurecemos o projecto com parceiros dos países-membros, como o Zimbabué e Botswana, mas, se os outros estão adiantados, da nossa parte os atrasos na implementação derivam da burocracia e de uma série de obstáculos.
Okavango-Zambeze está atrasado da parte angolana?
Nunca mais fui chamado nem mesmo para um seminário sobre o projecto Okavango-Zambeze, quando sou um dos precursores. Está a promover-se uma noção que nada tem que ver com o projecto. As mesmas pessoas aproveitadoras estão a pensar que o Governo vai novamente ‘despejar’ biliões nestes empresários para fazerem acontecer esta iniciativa fronteiriça. Nada mais errado.
Então, qual é o papel do Governo nesse projecto?
O Governo deve apenas investir nas infra-estruturas, como água, estradas, energia eléctrica e desminagem. Mas, quando se pensa em infra-estruturas, as pessoas começam a seleccionar as empresas e depois criam barreiras que desencorajam outros investidores como alemães e os dos Emirados Árabes Unidos que queriam destinar avultados fundos para o andamento do projecto. É uma pena.
O projecto está atrasado ou parado?
Quando sai do GURN, decidi dedicar-me à construção civil e ao imobiliário, que são as minhas paixões. E deu-se bem como construtor de casas sociais? Não, porque alguns contratos acabaram desviados por pessoas que não quero citar. Mas tratava-se de um projecto de construção de casas acessíveis a funcionários públicos e ao cidadão comum.
Quais eram os custos?
Fizemos um estudo de viabilidade e chegámos à conclusão que uma casa de três quartos com todas as infra-estruturas básicas devia custar, pelo menos, entre 28 mil e 32 mil dólares. Temos inclusive uma casa-modelo em Benguela que teve boa nota até mesmo de parceiros internacionais. Contas feitas, com mil casas, teríamos uma margem de lucro de cinco milhões de dólares. Mas, quando o projecto chegou às mãos de algumas figuras aproveitadoras do Governo, foi imediatamente ‘chumbado’, porque achavam os custos extremamente baixos. Tudo isso por causa da parte de ‘leão’ que gostariam de ‘abocanhar’ no negócio. É isso que infelizmente dificulta o Estado de arrancar, com maior rapidez, para satisfazer as necessidades de habitação da população.
Mas essas barreiras já vão sendo removidas pela nova governação?
É por isso que se deve mudar sempre de liderança. Hoje, o cenário parece mais favorável, tendo sido já resolvida a questão da supressão de vistos com alguns países, como com a África do Sul, só para citar esse exemplo, que, embora não faça parte do projecto Okavango-Zambeze, é uma referência em termos turísticos com cerca de 10 milhões de visitas anuais, quando nós não passamos dos 200 mil turistas.
Como olha para o facto de haver potencialidades turísticas subaproveitadas e, ao mesmo tempo, os preços de hotéis e restaurantes, genericamente, serem considerados altos?
Certa vez, disse-me um especialista que Angola corria o risco de ser invadida por mafiosos sul-africanos. Mas o mafioso vai hospedar-se e comer aonde com esses preços tão inflacionados? Só se for um grande milionário! Portanto, isso não incentiva a vinda nem de mafiosos nem de turistas no bom sentido.
Qual é o factor crítico para a redução dos preços?
Por falta de concorrência, não há cultura de desconto. Por outro lado, o angolano anda habituado a esses preços. Prefere manter o hotel vazio a reduzir a tarifa e ter maior número de ingressos. Isso é incrível. De resto, não temos investimentos no sentido de impulsionar o turismo interno, acabando as pessoas, aos fins-de-semana, por se contentarem em assar um churrasco e ter bebedeiras debaixo das árvores e nas ‘janelas abertas’, porque não há por onde escolher entre as poucas opções que custam caro.
Ao que disse, não terá conseguido impôr-se como empresário. O ‘escape’ será a política?
Sou optimista. Poderemos retomar os projectos de construção de casas quando o ambiente for mais favorável. Quanto à política, a ideia é antiga e surgiu depois de terminar a guerra em 2002. Estava no estrangeiro e nada mais tinha lá a fazer. Então, em 2003, decidi voltar definitivamente ao país para ajudar na reconstrução e a democracia. Foi assim que nasceu o Jango, uma formação política de centro-direita que, embora ainda não tenha sido legalizada, já trabalha em quase todo o país na adesão de militantes. Queremos uma nova geração que tenha, na política, um instrumento de justiça social.
Perfil
Eduardo Jonatão Samuel Chingunji (‘Dinho’ Chinguni) nasceu em 1964 no Lubango (Huíla) e estudou engenharia civil em Londres. É hoje o mais velho da martirizada família Chingunji, cujo patriarca foi um dos fundadores da Unita e teve em ‘Tito’ Chingunji um dos mais famosos dirigentes do movimento de Jonas Savimbi e que acabaria por ser assassinado por ordem do líder. ‘Dinho’ Chingunji, depois de abandonar o GURN, tentou criar um ambicioso projecto de construção em Benguela. Como diz, foi a forma que encontrou para ajudar o Governo a resolver o problema da habitação que, no entanto, explica, não andou por falta de vontade dos governantes-empresários ávidos de comissões. Criou um partido e prepara-se para o legalizar a tempo de participar nas próximas eleições autárquicas, previstas para 2020.
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