ANGOLA GROWING

Justiça Salarial: O catalisador da corrupção em Angola

23 Sep. 2020 Opinião

Numa empresa de petróleos privada, tive uma funcionária mediana que decidiu falar comigo porque deveria ganhar muito mais para ficar ao nível das colegas nas outras empresas. Era uma secretária eficiente, embora tivesse dificuldades muito sérias em exprimir-se em inglês, o que numa empresa americana é fundamental. Ganhava mais de cinquenta vezes o salário mínimo nacional e era paga em dólares americanos.

As empresas privadas em Angola há muito que lutam por profissionais de alta qualidade, o que não abunda no mercado nacional. Quando identificam as pessoas que lhes interessam, tentam agarrá-las pagando bem. Exageradamente bem. Regra geral, pagando muito mais do que essas pessoas valem no mercado internacional. Outra razão para “pagarem bem” é a garantia da cumplicidade que necessitam. Afinal de contas, o salário chorudo compra confidencialidade e, quiçás, lealdade. Para além disso, no caso da indústria de petróleos, as companhias recuperam tudo o que gastam e ainda por cima com o amaldiçoado “uplift” que nos arromba por todos os lados. É caso para dizer que as companhias lucram desavergonhadamente ao pagarem exageradamente bem os seus funcionários, sacrificando o ambiente de trabalho nacional e provocando especulação salarial. Talvez, corrupção social, via salários.

Para além disso, é necessário justificar os salários obesos dos expatriados. Afinal de contas qualquer trabalhadorestrangeiro ganha em Angola pelo menos três vezes mais do que ganha no Texas ou em Oklahoma,exercendo as mesmas funções e, normalmente, com melhor desempenho (na verdade o desempenho dos expatriados em Angola não é, muitas vezes, o que se espera). Daí que os expatriados da indústria de petróleos adoram vir trabalhar para Angola. Não é porque gostem muito do nosso subdesenvolvimento e ainda por cima longe da família. É por causa do “money”.

Com a especulação de salários feita pelas empresas de petróleo privadas a operar em Angola, a Sonangol seguiu-lhes a pegada. Sem margem para dúvidas, os funcionários da Sonangol criaram para si próprios um ninho de conforto salarial astronómico e invejável, sobretudo se os compararmos com os da restante função pública. E é com a função pública em geral que temos que comparar uma vez que a Sonangol pertence ao Estado.

Afinal de contas quanto ganha um administrador da Sonangol? Neste momento, calculo que ganhe cerca de15 milhões de kwanzas. Este montante é pelo menos15 vezes mais do que ganha um ministro de Estado. Quanto ganha um chefe de departamento da Sonangol? Cerca de 5 milhões. Quanto ganha o director nacional de Agricultura? Menos de15% deste montante. Este é o problemas que temos que seriamente encarar se queremos combater a corrupção. Podemos até afirmar que esta diferenciação é o catalisador da corrupção no nosso país. Precisamos urgentemente de introduzir, na equação, justiça salarial: funções e educação semelhantes requerem benefícios salariais semelhantes.

Há um grupo de amigos meus que, nesta altura da leitura deste texto, está a chamar-me nomes feios. Se calhar, porque até sabem que, durante muitos anos, eu fazia parte desse grupo de mais bem pagos. Mas eu não trabalhava para a função pública. Noutras palavras, eu falo daqueles que, trabalhando para o Estado, beneficiam irracionalmente de privilégios muito maiores do que os outros. O meu argumento é justiça salarial.

Isso não altera o facto de que há sectores onde se requer mais do que noutros, embora o significado nacional seja sempre o mesmo. É neste sentido que é preciso corrigir o que está mal. A corrupção salarial precisa de ser debatida, mesmo que para alguns se venha a reduzir o dito salário gordo. Assim sendo, eu arrisco-me a sugerir aos nossos deputados a aprovação duma tabela salarial única para toda a função pública, incluindo para as empresas que pertençam ao Estado. E isso seria feito através de bandas salariais.

Não entrando em choque com o que está estruturado e legislado sobre os salários da função pública, eu sou de opinião que nenhum funcionário do Estado, incluindo a Sonangol, AGT, Taag e outras como tal, deve auferir salários superiores ao do chefe de Estado. O funcionário mais bem pago tem de ser o Presidente da República.

Muito próximo do chefe do Estado (quiçá 95% do que aufere o Presidente da República), estariam os juízes dos supremos tribunais, reitores das universidades, cientistas, médicos especializados, comandos militares e de polícia.

De seguida, os quadros superiores e técnicos especializados e os professores com mais de 30 anos de experiência, independentemente do cargo que ocupam.

Pelos cargos que se ocupam, poder-se-ão criar subsídios ou bónus de sucesso e/ou rendimento. Por exemplo, a direcção dos serviços de identificação, ao acabar com os bilhetes pendentes, teriam direito a um bónus a ser proposto pelo Presidente da República após uma auditoria adequada à circunstância. E assim sucessivamente.

Nesta perspectiva, ao estabelecermos um tecto, nenhum funcionário público deveria ganhar menos do que 50% do salário do Presidente da República. Com a distribuição salarial (de uma forma geral) dentro desta banda, traria à função pública uma justiça salarial o que faria com que a corrupção viesse a diminuir. É de extrema importância que todos os servidores do Estado se sintam tratados com justiça e sem justiça salarial esse sentimento não existe. É por isso que a justiça salarial é o catalisador da corrupção em Angola.

A situação actual deve-se ao parto difícil que o Estado teve de enfrentar em 1975. Com o desaparecimento dos quadros da função pública colonial, houve necessidade de preencher o espaço deixado com o que houvesse a mão de semear. Foi assim que se perdeu o respeito pela função pública, uma vez que o Executivo preencheu esse vazio não com funcionários capazes ou conhecedores da função, mas com os seus simpatizantes e militantes, na maioria dos casos incompetentes e como tal fácil de se corromperem. A corrupção aparece na função pública ao resolver antes de mais os problemas dos camaradas. Aliás, o que se verifica ainda hoje é que, nas empresas do Estado onde se pagam salários pornográficos, estão principalmente as crias dos executivos anteriores e demais tentáculos do partido no poder.

Contrariamente ao que se pratica, os deputados não devem auferir quaisquer salários uma vez que são candidatos voluntários em missão de serviço temporário. Os deputados não são funcionários públicos nem foram admitidos por concurso público. Quiçás, são funcionários do partido que representam.Os deputados poderão eventualmente beneficiar de prémios de presença e assiduidade e provavelmente de bónus de desempenho a serem distribuídos directamente pelo presidente do Tribunal Supremo. A menos que passem a ser funcionários públicos com perfil específico e curriculum adequado às funções que desempenharem, comprometendo-se a não terem quaisquer negócios por fora.

Só assim, iremos corrigir o que está mal e melhorar o que está bem. E quem ganhará é o povo. O futuro promete.

António  Vieira

António Vieira

Ex-director da Cobalt Angola