“Não devemos só deixar que os outros façam”
ENTREVISTA. Líder empresarial, accionista da Vidrul, deputada e esposa do primeiro primeiro-ministro de Angola, Lopo do Nascimento. Em entrevista ao VALOR, defende a inserção dos angolanos na vida empresarial, critica a vitimização da mulher, elogia o processo de diversificação e declara existirem, em Angola, mulheres aptas para dirigir o país.
A controvérsia da discriminação está, normalmente, presente sempre que se aborda a inserção da mulher na sociedade, de forma geral. A senhora está nos negócios. Alguma vez foi discriminada por ser mulher?
A primeira vez que senti pessoalmente que as mulheres eram postas de lado foi quando criámos a Associação de Mulheres de Negócios de Luanda, a ASSOMEL em 1990, porque não havia nenhuma associação do género. Constatámos, a partir de alguns seminários, que algumas mulheres tinham negócios e ninguém os conhecia. Nesta altura, sentimos alguma discriminação, porque alguns homens não percebiam. Às vezes, diziam frases como: “A ASSOMEL só tem mel lá dentro”. E nós respondíamos que não tinha nem mel nem fel, apenas mulheres a trabalhar no que gostavam e sabiam fazer. Foi nessa altura que houve polémicas e percebi que os homens, às vezes, não gostam de ver a mulher a sobressair. Criámos a associação independentemente disso, com mais de 200 mulheres.
Passaram-se vários anos. Hoje está mais satisfeita?
Em parte sim, sobretudo se recuarmos ao tempo colonial. Naquela altura, tudo em Angola pertencia à força colonizadora. Não havia angolano com escritórios e empresas. O primeiro passo foi dado. Já foram criadas muitas leis em benefício das mulheres, como o instrumento sobre as trabalhadoras domésticas, contra a violência doméstica, o código da família, a lei sobre a maternidade, entre outros.
O que pensa sobre a igualdade salarial?
Sempre defendi a igualdade salarial. Para trabalho igual, salário igual.
A associação tem recebido queixas de desigualdade salarial?
Sim. O que fazemos é dar formação e aconselhamento em reuniões com as associadas.
Tem referências do número de empreendedoras em Angola?
Temos muitas empreendedoras e não sei dizer qual é a percentagem das mulheres. Não sei dizer por causa do número de mulheres no mercado informal, que é muito grande. A federação, com as associações provinciais, está a fazer um trabalho no sentido de pôr as mulheres do sector informal nas associações para aconselhá-las a formalizarem os negócios. É um trabalho um pouco difícil, porque o formal tem mais custos em relação ao informal. Quando vendem no mercado, pagam o espaço da bancada, mas se formalizarem vão pagar os trabalhadores e os impostos. É um trabalho que estamos a fazer e não se faz rapidamente.
Mas a formalização passa também pelo acesso a certas facilidades. Há muitas reclamações de empreendedoras em relação ao acesso ao crédito. É por serem mulheres?
Não creio que a dificuldade de obtenção de crédito tenha que ver com o facto de se ser mulher ou homem. Até porque várias instituições já comprovaram por estudos que as mulheres cumprem mais e melhor os seus compromissos em relação aos homens. A dificuldade é a falta de garantias bancárias. A maior parte das mulheres não tem património porque, às vezes, até a casa onde vivem não lhes pertence, é do marido. O banco faz exigências que as mulheres não estão em condições de cumprir. É possível que, num caso ou noutro, se dê preferência ao homem em detrimento da mulher, por amizades e conhecimentos no banco.
E o que a Associação faz para apoiar? Tem parcerias com bancos?
Temos parcerias com dois bancos. Este ano, vamos rever as nossas parcerias. Temos uma parceria com o Millennium Atlântico e outra com o Sol, através das quais as associadas podem ter acesso a créditos não muito altos. Não vão acima dos 20 mil dólares, mas ajudam a desenvolver pequenos negócios. No Milennium Atlântico, se a associada tiver um projecto dentro desses programas governamentais, os bancos são capazes de dar valores superiores, desde que tenham garantias. As mulheres devem deixar de ver as questões nesse prisma.
Parece-lhe haver alguma vitimização da própria mulher?
Sim. Às vezes, tornamo-nos vítimas e queremos misturar as coisas. As mulheres devem primeiro vivenciar a situação e depois reclamar se não forem tratadas em ‘pé’ de igualdade.
Mas também há exemplos noutro extremo. A maior empresa pública do país, por exemplo, é liderada por uma mulher. Que avaliação faz da prestação de Isabel dos Santos?
Eu não a vejo como mulher, mas como profissional. Ela tem estado a desempenhar o seu trabalho como deve ser e como pode. Para exercer essas actividades, também há condicionalismos. Uma pessoa não chega só a mandar e fazer. Os trabalhos não são só dela, são de uma equipa. Ela trabalha com uma equipa.
É possível a mulher ‘sonhar’ mais alto, como, por exemplo, atingir a liderança do país, numa altura em que caminhamos para as eleições?
Vamos chegar lá. Podemos chegar lá em 20 anos ou menos.
Conhece alguma mulher apta para dirigir o país?
Sim, conheço. Não vou dizer os nomes delas, mas conheço sim. Mas também é preciso coragem. Voltemos aos negócios.
Que avaliação faz do processo de criação de negócios?
A situação económica e financeira hoje em dia não é das melhores, por causa da dependência do petróleo. O problema é a burocracia. Já foi pior, mas, graças ao trabalho que os empresários, de um modo geral, têm feito, já melhorou bastante. E como se pode tornar o processo menos burocrático? Agora está menos moroso. Desde que foi criado o Guiché Único e outros instrumentos para facilitar os empresários, o processo já é menos moroso. À medida que forem surgindo funcionários mais bem formados e houver melhor capacidade, a burocracia vai sendo reduzida.
O problema de base está ligado aos profissionais que lidam com o processo de criação de empresas?
Sim. Também. Está tudo relacionado.
Angola é o 10.º pior país para se fazer negócios no mundo, segundo o ranking ‘Doing Business’ do Banco Mundial. Concorda?
Eu não avaliava assim. Essas instituições, às vezes, têm os seus métodos e dão a sua opinião. Quando podemos, mostramos que não é como dizem. Há países muito piores que Angola. Muito piores.
Que políticas deviam ser criadas para a aclamada diversificação da economia?
Para esse processo, foram criados vários instrumentos. Mas devemos perceber que não é um processo de curto prazo, mas de longo prazo. Por exemplo, na agricultura, quando deitamos semente à terra, não brota numa semana ou num mês. Leva tempo.
Concorda com o caminho que se tem seguido?
Sim. Estamos já a comprar bananas, legumes, frutas nacionais e muitos outros produtos. Temos empresárias que participam constantemente da Feira da Banana no Bengo. Ainda não é suficiente, mas já podemos comprar.
Não andámos a dormir à sombra do petróleo?
Dormimos um pouco e tivemos culpa. Como o petróleo nos dava dinheiro e estabilidade, adormecemos um pouco. Mas despertamos e já demos passos importantes. Não fizemos o suficiente, mas já demos passos significativos.
Há alguma política que o Governo devia seguir?
A política dos cambiais. Este ano é um ano mau para isso. É um ano de eleições e isso gasta muito dinheiro e temos de ter contenção. Mas as coisas vão melhorar e isto passará por melhorar o acesso às divisas aos empresários para poderem comprar aquilo que o país não produz.
“NUNCA TIVE PRIVILÉGIO, DESPRESTÍGIO”
Trabalhou na Angola colonial, socialista e multipartidária. Destas três fases, que recordações guarda?
Tenho boas recordações. Aprendi muito, criei muitas amizades. Aprender é sempre bom e, quando trabalhamos com outras pessoas de outras gerações, aprendemos sempre muito. Casei com um ex-preso politico, que é o Lopo de Nascimento, que foi o primeiro primeiro-ministro de Angola pós-independente. Tive dois filhos. E depois fugi de Angola para integrar o MPLA no exterior.
E como foi ser esposa do primeiro-ministro, logo no primeiro governo da Angola pós-colonial?
No princípio, foi um pouco difícil. Fiquei preocupada em saber como me comportar, mas, pela educação de base e pelo trabalho clandestino, não tive grandes dificuldades na adaptação. Antes de o meu marido ser primeiro-ministro, saímos de Angola e fomos para o Congo. Estivemos os primeiros meses na Argélia. Em Brazzaville, fui locutora do programa ‘Angola combatente’. Era um programa que dava informações sobre o MPLA, sobre o que o partido fazia. Na época em que fazia o programa já era uma fase de transição, estávamos em 1973. O programa chamava a atenção também das represálias que os portugueses poderiam fazer por causa do aproximar da independência.
Que exigências teve de cumprir na altura em que foi esposa do primeiro-ministro?
O protocolo exigia que não pudesse trabalhar. Tive de deixar de trabalhar, mesmo estando muito habituada a trabalhar. Era difícil ficar em casa. Depois, fui trabalhar para o partido nas relações exteriores e mais tarde o meu marido foi para a Etiópia como secretário-geral adjunto da comissão económica para África. Tive mais uma vez de deixar tudo para ir ter com ele.
Interrompeu sempre os seus trabalhos em benefício do marido?
Do marido e dos filhos.
Teve algum privilégio por ser a mulher de quem era?
Nunca tive privilégio, nem desprestígio. Nunca me senti como a mulher do ‘fulano’. Nunca tive muito esses problemas. Sempre fui cidadã e mãe. Numa determinada altura, comuniquei ao meu marido que a vida estava difícil, só de viver com o que o partido dava. E enveredei pela área empresarial. Muita gente não gostou da atitude. Na altura, em 1980, mesmo camaradas do partido diziam que as regras do partido não permitiam. Mas, mesmo assim, levei adiante as minhas ideias. Comecei com uma boutique, uma loja. Pedi ao Governo que me cedesse uma loja que estivesse desactivada e abri-a oficialmente no São Paulo. Hoje sou accionista da fábrica de vidros, a Vidrul, estou ligada ao conselho de administração da empresa.
O seu marido alguma vez pôs alguma barreira na sua carreira empresarial?
Nunca. Pelo contrário, quando o aconselhei a fazermos parte da Vidrul, não hesitou. O país é nosso e devemos também ter empreendimentos. Não devemos só deixar que os outros façam.
PERFIL
Maria do Carmo Nascimento: começou a trabalhar aos 18 anos, ainda no tempo colonial. Esteve, durante 15 anos, na administração colonial, ao mesmo tempo que fazia trabalhos ‘clandestinos’, a ajudar os presos políticos. Lidera uma federação empresarial com cinco mil membros e que já submeteu às autoridades a candidatura para instituição de utilidade pública. Mãe de dois filhos, terminou o 5.º ano liceal, na era colonial. É deputada e empresária, com acções na maior vidreira de Angola, a Vidrul.
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