“Não podemos manter os jovens na ociosidade”
Na semana em que se celebra o ‘Dia de África’, Adebayo Vunge apela a que os líderes do continente privilegiem uma governação que beneficie os interesses do povo. A aposta na mulher, a valorização da juventude e uma maior interacção entre os estados africanos constam entre os conselhos deste comunicólogo, que lamenta que a diplomacia angolana seja “demasiado reservada”.
Em 1977, Agostinho Neto afirmou: “África parece um corpo inerte em que cada abutre vem debicar o seu pedaço”. Mais de 40 anos depois, continuamos inertes?
Não. O continente está em movimento e em dinâmica de transformação. Temos uma geração diferente, com uma motivação maior no sentido de trabalhar em prol da melhoria. É um processo com avanços e recuos, mas assinalável, na medida em que notamos essa tendência de inversão do paradigma. Foi bom, por exemplo, a União Africana (UA) decidir não reconhecer líderes que viessem de golpes de Estado.
Exemplificando com o caso da Líbia de Khaddafi, há quem critique a UA por alegada passividade. Concorda?
A UA está num processo de amadurecimento e afirmação. No caso em concreto da Líbia, de facto, o papel da UA foi inexpressivo. Mas é necessário olharmos para a geopolítica e o contexto internacional e percebermos que o peso das organizações também depende dos actores e da capacidade que estas organizações têm de influenciar numa dimensão supranacional. Naquela altura [2011, ano em que MuammarKhaddafi foi morto], a UA tinha menos influência do que hoje. Actualmente, a organização está a viver uma reestruturação, no sentido de jogar um papel mais pleno não apenas do ponto de vista dos desafios de defesa e segurança, mas sobretudo do económico. É importante que nós, os africanos, assumamos o protagonismo pelo processo de melhoria e transformação do continente.
O que isso implica?
Que as lideranças estejam comprometidas com os países. Que haja um projecto sobre o qual todos nos possamos engajar e trabalhar. É necessário haver o sentido republicano da liderança, de modo a que quem está no poder perceba que está para servir a colectividade e não para o seu enriquecimento, como foi a governação do presidente Mobutu no Zaíre, um processo catastrófico, com consequências até hoje para a estabilidade da RDC.
Mas Joseph Kabila, de uma geração diferente de Mobutu, também vai sendo contestado…
Daí eu ter dito que os líderes têm de servir os interesses da colectividade e ter noção clara do tempo e espaço históricos. O mandato do presidente Kabila esgotou. Agora, é necessário que os congoleses tenham oportunidade de escolher nova liderança.
Qual pode ser o papel de Angola nesse processo?
Mais do que ingerência de terceiros no problema dos congoleses, é necessário que as próprias lideranças assumam postura diferente em relação à noção do poder na governação e nas oposições. O mesmo mal que criticamos em alguns presidentes, que se mantiveram no poder com uma longevidade grande, também o encontramos em alguns segmentos da oposição. É essa cultura de sentido de dever de que precisamos ir nos apropriando. Mas também se coloca o conceito de democracia vs bem-estar. Isso não serve para legitimar autoritarismo, mas serve para reflectirmos em relação ao papel e tipo de democracia que queremos. Dou o exemplo do presidente Paul Kagame, que liderou todo o processo de transformação do Ruanda, mas permanece no poder após uma alteração constitucional. São questões como estas que nos devemos colocar para perceber não só o que é a democracia em África como também para percebermos a noção que as lideranças africanas devem ter sobre governar ao serviço do povo.
Está a dizer que a democracia aplicada em Portugal, por exemplo, não servirá para um país africano?
Há traços obviamente comuns da democracia, como o respeito da vitória das maiorias, a questão eleitoral e dos vários poderes que devem agir dentro da república: o político, legislativo e judicial, todos eles com legitimação, por força daquilo que resulta da Constituição. Tudo isso servirá de baliza para aquilo que será ou não esse conceito de democracia africana. Mas, quando falo do exemplo do Ruanda, é no sentido de notarmos que havia um quadro constitucional estabelecido. E aqui questionamos: que interesse maior devemos salvaguardar por si só? O quadro rígido do conceito de democracia ou a estabilidade e o progresso social?
Em 2001, criou-se a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD) para relançar a economia, erradicar a guerra, pobreza e as pandemias do continente até 2015, mas estes problemas ainda se vivem até hoje…
É verdade! A NEPAD teve um sério constrangimento de ordem financeira. O projecto era ambicioso, mas caiu. Hoje, está no processo de reformas que a UA está a sofrer e prevê-se uma abordagem diferente à NEPAD para se promover uma integração mais efectiva do ponto de vista económico, com o lançamento da chamada zona de comércio livre.
No livro ‘Pensar África’, escreve que precisamos de pensar o continente “na lógica do desenvolvimento e das democracias, considerando os factores demográficos e políticos”. O que isso quer dizer?
A lógica do desenvolvimento deve assentar nas pessoas e o Estado deve procurar salvaguardar-lhes a qualidade de vida. Mais de metade da população em África é jovem e, a esse nível, colocam-se vários desafios. Por outro lado, ainda do ponto de vista social, há um papel que deve ser reservado à mulher, mas a estrutura formal do Estado, em África, ainda não captou o potencial que as mulheres representam no processo de transformação.
Por que diz isso?
No discurso, assumimos que as mulheres são importantes, mas não lhe damos o peso devido nas políticas públicas. O Estado não potencia esse poder que as mulheres revelam no sentido de serem também integradas no processo de desenvolvimento. O desafio de transformação do continente tem de assentar, por um lado, nos jovens, na sua capacidade empreendedora e de realização, sendo integrados para dinamizarem as economias. Não podemos manter os jovens na ociosidade. É só lembramos que a ‘Primavera Árabe’ foi precipitada principalmente pelo desemprego. Olhando para a realidade tunisina daquela altura, o desemprego atingia cerca de 80 por cento da população jovem.O desemprego é um problema social que afecta a estabilidade do próprio Estado.
Os governantes africanos não sabem disso?
Há um ditado que diz: “Saber é fazer.”
Não sabem ou sabem, mas não o fazem…
África melhorou as políticas públicas, mas, ainda assim, tem um caminho a percorrer e deve acelerar esta transformação. Os níveis de crescimento da população africana são assinaláveis e, se os Estados não os acompanharem com políticas públicas correctas e adequadas à melhoria, teremos problemas.
Um relatório do Banco Mundial, referente a 2018, diz que a educação mundial está em crise, sendo África o caso mais preocupante, com governos que criam sistemas educativos fracos e burocráticos com vista a permanecerem no poder…
Em alguns países, o investimento na educação não está a acompanhar o crescimento da população. Já há compromissos como os Acordos de Dakar, que estabelecem uma quota para a qual os países africanos devem investir na educação nos próximos anos, mas isso precisa de ser materializado. Países como a Coreia do Sul evoluíram devido ao investimento massivo feito na educação. Lá, os problemas da educação despertam o debate público. No nosso caso, quanto tempo os partidos políticos dedicam ao debate sobre as autarquias comparativamente ao debate sobre a Reforma Educativa, por exemplo?
Em que medida a cultura pode contribuir para a coesão dos africanos?
Em África, nem sempre se olhou para a dimensão cultural como um factor de unidade. Ignorou-se mesmo.
Diplomacia reservada
Que avaliação faz à actuação da diplomacia angolana no continente?
A nossa diplomacia tem sido prudente, às vezes, até demasiado reservada nesta abordagem com os outros países africanos. Reclamamos um certo estatuto em África e teremos espaço para isso, mas precisamos de promover nós próprios, enquanto angolanos, uma maior integração em África.
O que devíamos fazer?
Foi fantástica a aproximação feita com a África do Sul. Mas é necessário potenciar isso. Fora do contexto multilateral, como será a zona de comércio livre, acho interessante que estreitemos os laços, por exemplo, com Moçambique e com a Zâmbia, que está muito perto de nós.
O que Angola ganharia com a Zâmbia?
Quer do ponto de vista comercial, quer do ponto de vista cultural, dada a proximidade, dever-se-ia privilegiar a cooperação com os países da SADC em detrimento de alguns países europeus.
Não é um ‘chauvinismo africano’?
Não, não. Coloco a questão nos seguintes termos: o principal vendedor de petróleo para a África do Sul é a Arábia Saudita. Porque não é Angola?
Pode ser preferência dos sul-africanos. Talvez até esteja a levantar um problema que nem é de Angola…
Ok, mas porque é que as nossas trocas comerciais são mais intensas com Portugal do que com a África do Sul? Porque é que temos de comprar maçã a Portugal e não compramos na África do Sul?
O que está na base disso?
Há vários factores. Devemos rever o nosso relacionamento estratégico com certos parceiros e, para o caso angolano, será importante avançarmos para uma cooperação mais efectiva com a África do Sul do que com outros ‘players’.
Do jornalismo ao sector público
Antigo jornalista, Adebayo Vunge é docente universitário em Ciências da Comunicação, desempenhando igualmente a função de responsável pelo Gabinete de Comunicação Institucional e Imprensa do Ministério das Finanças. Com passagem em funções diplomáticas na Embaixada de Angola em França, Adebayo Vunge é autor de três livros: ‘Dos mass media em Angola (2006)’, ‘A credibilidade dos media em Angola (2010)’ e ‘Pensar África (2017)’.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...