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O coeficiente do caos nas eleições dos EUA

04 Nov. 2020 Nouriel Roubini Opinião

As pesquisas de opinião nos EUA há muito apontam para a grande possibilidade de vitória do Partido Democrata nas eleições de 3 de Novembro, com Joe Biden a conquistar a presidência e os democratas a assumirem o controlo do Senado e mantendo a Câmara dos Representantes, pondo fim a um governo dividido.

Mas se a eleição acabar por ser principalmente um referendo ao presidente dos EUA, Donald Trump, os democratas podem ganhar apenas a Casa Branca, mas não conseguirem retomar o Senado.  E não se pode descartar a possibilidade de Trump percorrer um tortuoso caminho para uma vitória do Colégio Eleitoral e de os republicanos manterem o Senado, reproduzindo assim a situação actual.

Mais ameaçadora é a perspectiva de um resultado há muito contestado, com ambos os lados a recusarem ceder, enquanto travam terríveis batalhas legais e políticas nos tribunais, na comunicação social e nas ruas. Na contestada eleição de 2000, demorou até 12 de Dezembro daquele ano para que a questão fosse decidida: o Supremo decidiu a favor de George W. Bush e o seu opositor, o democrata Al Gore, graciosamente, cedeu.  Abalada pela incerteza política, a bolsa de valores nesse período caiu mais de 7%.  Agora, a incerteza pode durar muito mais tempo – talvez meses – implicando sérios riscos para os mercados.

Este cenário de pesadelo deve ser levado a sério, mesmo que actualmente pareça improvável.  Embora Joe Biden tenha consistentemente liderado as pesquisas, Hillary Clinton também liderou até, à véspera da eleição em 2016. Resta saber se haverá um ligeiro aumento de eleitores 'tímidos' entre os indecisos eleitores de Trump que não estão dispostos a revelar as suas verdadeiras preferências aos pesquisadores.

Além disso, tal como em 2016, maciças campanhas de desinformação (externa e interna) estão em andamento. As autoridades norte-americanas alertaram que Rússia, China, Irão e outras potências estrangeiras hostis estão activamente a tentar influenciar a eleição e a lançar dúvidas sobre a legitimidade do processo de votação. 'Trols' e robôs inundam as redes sociais com teorias da conspiração, notícias falsas,  'deepfakes' e muita desinformação. Trump e alguns dos seus colegas republicanos têm adoptado lunáticas teorias da conspiração como QAnon, e sinalizado o seu tácito apoio a grupos de supremacia branca. Em muitos Estados, controlados pelos republicanos, governadores e outros funcionários públicos estão abertamente a utilizar golpes baixos para promover a abstenção de eleitores de grupos de tendência democrata.

Além de tudo isso, Trump, repetida e falsamente, afirmou que os votos enviados pelo correio não são confiáveis, porque está convencido de que os democratas representarão uma parcela desproporcional daquelas pessoas que não votaram pessoalmente (medida de precaução por causa da pandemia). Trump tem também recusado a dizer se vai largar o poder se perder. Em vez disso, deu uma 'piscadela' e acenou com a cabeça para as milícias de direita ("recuem e aguardem") que já estão a semear o caos nas ruas e planear actos de terrorismo doméstico. Se Trump perder e afirmar que a eleição foi fraudulenta, podem ocorrer conflitos civis e violência.

De facto, se os resultados iniciais divulgados na noite da eleição não indicarem imediatamente uma esmagadora vitória para os democratas, Donald Trump quase certamente irá declarar vitória nos Estados críticos antes da contagem final de todos os boletins de voto enviados pelo correio. Agentes republicanos já têm planos de suspender a contagem em Estados-chave, desafiando a validade desses boletins. Pretendem travar essas batalhas jurídicas em capitais estaduais controladas pelos republicanos, tribunais locais e federais, todos com juízes nomeados por Trump, um Supremo com uma maioria conservadora de 6-3 e uma Câmara dos Representantes onde, no caso de empate do Colégio Eleitoral, os republicanos detêm a maioria das delegações estaduais.

Ao mesmo tempo, todas as milícias armadas brancas que actualmente estão “de prontidão” podem tomar as ruas para fomentar violência e caos. O objectivo seria provocar a contra violência de esquerda, dando a Trump um pretexto para invocar a Lei da Insurreição e convocar a polícia federal ou o exército dos EUA para restaurar a 'lei e a ordem' (como ele já ameaçou fazer). Com este fim de jogo aparentemente em mente, a administração Trump já qualificou várias grandes cidades, lideradas pelos democratas, como “centros anarquistas” que precisam de ser derrubados. Por outras palavras, Trump e os seus aliados deixaram claro que podem usar todos os meios necessários para usurpar a eleição; e, dada a ampla gama de ferramentas à disposição do poder executivo, poderiam ter sucesso se os resultados das eleições antecipadas ficassem apertados, em vez de apontar para uma vitória esmagadora de Joe Biden.

Por certo, se os primeiros resultados na noite da eleição mostrarem Biden à frente, mesmo em Estados tradicionalmente republicanos, como Carolina do Norte, Florida ou Texas, Trump terá muito mais dificuldade para contestar o resultado por mais do que alguns dias e vai ceder mais cedo. O problema é que qualquer coisa que não seja algo incontestável a favor de Biden deixa uma abertura para Trump (e os governos estrangeiros que o apoiam) para turvar as águas com caos e desinformação enquanto manipula para mudar a decisão final para trincheiras mais simpáticas, como os tribunais.

Esse grau de instabilidade política pode desencadear um grande episódio de transferência de risco para os mercados financeiros, numa altura em que a economia já está em desaceleração e as perspectivas de curto prazo para políticas adicionais de incentivo permanecem sombrias. Se uma disputa eleitoral se arrastar – talvez para o início do próximo ano – os preços das acções podem cair até 10%, os rendimentos dos títulos do governo podem cair (apesar de já estarem bem baixos) e a fuga global por segurança vai aumentar os preços do ouro. Normalmente, neste tipo de cenário, o dólar fortalece-se; mas, como um episódio, em particular, desencadeado pelo caos político originado nos EUA, o capital pode realmente enfraquecer o dólar ainda mais.

Uma coisa é certa: uma eleição altamente contestada causaria ainda mais danos à imagem global dos EUA como exemplo de democracia e estado de direito, corroendo o seu poder de influência. Especialmente, nos últimos quatro anos, o país cada vez mais passou a ser considerado um caso político perdido. Embora esperem que os caóticos prognósticos descritos não se tornem realidade – as pesquisas ainda mostram uma forte vantagem para Biden –, os investidores devem preparar-se para o pior, não apenas no dia da eleição, mas nas semanas e meses seguintes.

 

Nouriel Roubini, Professor de Economia da Universidade de Nova Iorque, ex-conselheiro económico da Casa Branca da Administração de Bill Clinton, ex-quadro sénior do FMI, Reserva Federal e Banco Mundial