O novo Código Penal melhorou significativamente as possibilidades de uma interpretação menos subjectiva
O justo debate que inquieta no conteúdo do art.º 333.º, quando condena o ultraje a figura do Presidente da República e de órgãos de soberania, não é a possibilidade da sua inconstitucionalidade.
É perfeitamente admissível que o Presidente da República e outros agentes do Estado (a lei fala em órgãos de soberania) sejam protegidos contra ofensa ao seu bom-nome e outros direitos de personalidade através dos crimes de injúria e difamação.
Aliás, neste aspecto, o art.º 333.º é uma ‘redundância’, em termos normativos, já que qualifica em razão do sujeito os mesmos crimes de injúria e difamação que protegem a generalidade dos cidadãos também previstos no novo Código Penal.
Se um simples cidadão deve ser defendido de ver-se agredido na sua honra e dignidade como pessoa, porque não o seria o Presidente da República? Admitir que o Presidente da República não seja protegido é admitir uma estranha forma de ‘imunidade negativa’ na nossa ordem jurídica, que seria uma novidade no mundo actual e até nas ciências jurídicas. Já que ficaria difícil entender que todos os angolanos merecessem protecção menos o Presidente da República.
A polémica deste articulado está na probabilidade de ser interpretado extensivamente aos casos de caricaturas, dizeres, imagens e outros meios que revelem jocosamente o Presidente da República, como são, por exemplos, os desenhos do Sérgio Piçarra ou os comentários de fazedores de opinião ou jornalistas nas redes sociais ou na imprensa.
É um justo receio que decorre da falta de confiança nas nossas instituições judiciais e das provas de inversão dos factos arrolados que fartas vezes dão através de inúmeras sentenças que os tribunais proferem.
A propósito disso escrevi, há anos, um texto publicado no extinto ‘Semanário Angolense’, em que tratava dessa questão, na altura motivado pelo julgamento de Graça Campos, então director deste semanário, apelando, nas entrelinhas, para que não se incorresse no erro de interpretações extensivas de normas incriminatórias no seu caso quando foi levado a tribunal por ultraje ao então Presidente da República.
Na verdade, à luz do artigo 333.º, podem ser feitas imagens, desenhos e outros meios que ponham as pessoas a rir ou gozar com o Presidente da República, revelando as ‘borradas’ de governação. Mas só serão condenados aqueles em que se perceber que a intenção do agente foi mesmo injuriar ou difamar, que o agente teve uma atitude dolosa conducente à degradação da imagem do Presidente da República. Por isso a lei vigente apresenta uma frase sugestiva ‘Ultraje maldoso’ e a nova lei aperfeiçoa o conceito, manifestando o ‘Ultraje com intuito de ofender’. Neste aspecto, o novo Código Penal melhorou significativamente as possibilidades de uma interpretação menos subjectiva.
Portanto, não basta caracterizar o Presidente da República e pôr as pessoas a rir ou a gozar, é preciso que o autor da imagem tenha vontade de fazer mal à pessoa do Presidente da República, ofendendo-o intencionalmente, através dos meios que usou. O que, na verdade, não é fácil de ocorrer na mente de uma pessoa com uma educação razoável.
Exemplo de ultraje, nestes termos, seria a de um retrato nu e com sugestões de malcriadez do Presidente da República, degradando claramente o seu perfil moral. Seria uma imagem socialmente reprovável por pessoas (sobretudo adultas) que detêm uma educação ortodoxa e conservadora, tal como seria inadmissível e incapaz de ser publicada num órgão de comunicação social com profissionais [seniores] de alguma deontologia profissional. Logo, seria uma imagem que causaria repulsa à maioria dos bons cidadãos.
Portanto, o art.º 333.º não se aplica aos comentários, imagens, sons ou palavras dirigidas ao Presidente da República que não contenham, claro, sinais de depravação moral. Ou seja, os ‘não malcriados’ não precisam de temer nada. Ainda assim, essa intenção de ofender deve ser efectivamente provada em tribunal caso o Presidente da República, por exemplo, entenda levar o seu agressor moral a julgamento.
Uma nota curiosa, a propósito da protecção dos direitos de personalidade do Presidente da República, é que este tanto pode defender-se como Chefe de Estado, invocando o art.º 333.º quanto pode defender-se como cidadão invocando a protecção contra os crimes de injúria e difamação que protege qualquer um de nós, cidadãos. Tudo depende da qualidade em que for ofendido moralmente.
A única diferença qualitativa é que só como cidadão é que pode defender-se contra as falsas informações a seu respeito, já que o art.º 333.º não condena a calúnia. Trata-se de uma vantagem claramente favorável à liberdade de expressão de quem lida com a imagem do Presidente da República, que pode ser fundamentado num outro debate.
De resto, o uso da caricatura e de outros meios que levam a caracterizar jocosamente os governantes como veículos para ajudar a expurgar os maus hábitos sociais e os actos prejudiciais da governação é uma conquista constitucional a favor da liberdade de expressão que se deu com um julgamento famoso nos EUA num caso conhecido como ‘The People Versus Larry Flint’, em que o Suprema Corte de Justiça, em recurso, reconheceu que Larry Flint tinha razão de ter abusado do perfil moral de um líder religioso, muito conhecido na época, que se viu ultrajado pela publicação da sua imagem numa revista pornográfica. A emenda constitucional que se seguiu à jurisprudência do caso acabou contagiando o modo de aplicar essa norma pelo resto do mundo.
[Isto] para dizer que o art.º 333.º do novo Código Penal se trata de um articulado que repesca, com as devidas adaptações, o conteúdo do art.º 25.º da Lei 23/10 – Lei dos crimes contra a segurança do Estado e que é razoável e atendível no contexto do novo Código Penal, sem prejuízo de outras questões periféricas que podem ser levantadas e discutidas.
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