Quando as semelhanças não são coincidências

05 Sep. 2024 Opinião

Ao ocaso do Império Romano, formalmente reconhecido em Setembro de 476, quando o Rômulo Augusto foi deposto por Odoacro, um líder germânico, é associada a metáfora segundo a qual enquanto essa unidade política e territorial se esfarelava, a sua elite, decadente e alienada, organizava grandiosos bailes e festanças, aparentemente alheia a um poder que já estava em irreversível declínio.

 

Quando as semelhanças não são coincidências

É da História que a decadência do Império começou no século III, quando as elites romanas se foram gradualmente afastando dos deveres cívicos e militares que outrora sustentaram o império. Ao invés de se concentrarem na defesa e administração do vasto território romano, as elites passaram a privilegiar os prazeres pessoais, organizando festas luxuosas, orgias e banquetes caracterizados pela opulência. Com essas festas, as elites romanas não apenas fingiam ignorar o declínio do império, como também julgavam demonstrar poder e status que, na verdade, já lhes escapava.

Enquanto dançavam em faustuosos bailes, fingiam indiferença e negação da realidade em que viviam. As festas, regadas a vinho e extravagância, eram uma forma de escapar da dura realidade das fronteiras cada vez mais vulneráveis, das crises económicas e dos constantes conflitos internos. Os líderes e os ricos dançavam e embriagavam-se, aparentemente alheios ao desmoronamento das estruturas que sustentavam a sua própria existência. Eles comportavam-se como se nada estivesse errado, como se o império fosse eterno, ignorando os sinais evidentes de declínio.

Mas não foram apenas as elites romanas que imitaram a atitude da avestruz, que enfia a cabeça na areia para não ver a realidade circundante, sobretudo se ela configurar algum perigo. A avestruz teve seguidores noutras civilizações, que enfrentaram declínios semelhantes.

Em todas elas, as elites, protegidas pela sua riqueza e privilégios, frequentemente permaneceram alheias às pressões que corroíam e levavam à queda de todo o sistema.

Em suma, as festas e celebrações podem ser vistas como uma metáfora para a desconexão entre a liderança e o povo, um sintoma de um sistema que já não funciona, mas onde os poderosos continuam a usufruir dos seus privilégios até ao último momento.

Em Abril deste ano, e enquanto pelo menos 11 milhões de angolanos não têm o que comer diariamente, segundo dados do insuspeito Fundo das Nações
 
Unidas para a Alimentação (FAO), o Presidente da República de Angola foi a Portugal participar dos festejos do 50º aniversário da Revolução dos Cravos à testa de uma numerosa delegação, que incluiu músicos, apresentadores de televisão, políticos e respectivas parentelas, todos eles transportados, ao que consta, em mais do que três aeronaves.

A festança, organizada na Quinta do Mocho, teria consumido largas centenas de milhares de euros.

Desde Abril, o Presidente da República praticamente não parou de viajar. Rara é a semana em que não arranja pretexto para se deslocar ao estrangeiro, aparentemente alheio à cruel realidade do país que governa.

Reunido, como habitualmente, sob presidência do Titular do Poder Executivo, o Conselho de Ministros deu, a semana passada, mais uma demonstração do quão desfasado anda da realidade do país.

Tal como as elites de Roma se inebriavam em grandes festanças para não verem a dura realidade, o Conselho de Ministros, sob a “sábia” condução do Presidente João Lourenço tomava uma decisão que dá de Angola a imagem de um país que já ultrapassou problemas elementares, como falta de água, energia, comida, medicamentos, saneamento básico e outros. Num “rasgo” de país do primeiro mundo, o Conselho de Ministros

aprovou sexta-feira, 30 de Agosto, a Estratégia do Executivo para a Electromobilidade, documento que define as regras para a aquisição, uso, manutenção e carregamento de veículos eléctricos e impulsiona a sua massiva adopção em substituição dos veículos convencionais, com o que se promoverá a protecção do Meio Ambiente e a redução das emissões de gases com efeito estufa.

Será essa a prioridade de Angola? A energia hídrica, que Angola pode produzir em grande quantidade, é inimiga do meio ambiente?

Repete-se: o que se está a passar em Angola é réplica do que já se passou em outras paragens e civilizações que enfrentaram declínios semelhantes.

Protegida pela sua riqueza e privilégios, a elite angolana, “lucidamente” conduzida pelo Presidente João Lourenço, permanece alheia às pressões que levam à queda de todo o sistema. As festas e celebrações, as estratégias para a electromobilidade e outras são manifestações de desconexão entre a liderança e o povo. Isso significa que, o embora o sistema já não funcione, os poderosos
 
continuam a usufruir dos seus privilégios até ao último momento.

Enquanto a generalidade dos cidadãos vegeta na miséria, a moeda se desvaloriza diariamente, a corrupção atingiu níveis pornográficos, a instabilidade política já não é possível de disfarçar, a elite finge ignorar os sinais da decadência e favor de uma vida de prazer e de excessos.

A queda da Império Romano deveria ser tomada como uma lembrança amarga de que a riqueza e o poder, sem a responsabilidade e a conexão com a realidade, não podem sustentar uma civilização. O ocaso do Império Romano resultou, sobretudo, de uma falha interna da liderança, que escolheu ignorar as realidades em favor de um hedonismo fugaz.