‘Quo vadis’?
A polarização do debate jurídico no caso Manuel Vicente não passa de uma verdadeira manobra de diversão. Portugal sabe de cor e salteado que as autoridades angolanas jamais deixariam o ex-vice-Presidente da República ser julgado em terras lusas. Nunca pelo crime de que é acusado. E Angola sabe que as autoridades portuguesas não podem ceder à primeira ameaça de bloqueio nas relações bilaterais.
No campo político, as justificações de parte a parte são compreensíveis. Do lado português, o governo de António Costa só se pode apegar na narrativa da separação de poderes. É qualquer coisa que faz sentido, porque, em teoria, a sociedade portuguesa está menos propensa hoje a tolerar interferências do governo na justiça. Muito menos por país que se chama Angola, com que, por muito que se negue no politicamente correcto, muitos segmentos da sociedade portuguesa mantêm uma relação de amor e ódio.
Do lado angolano, as explicações não se limitam no plano político. Não se trata somente, como certas leituras incompletas presumem, da defesa de todo um regime. Há também explicações de natureza emocional que rebuscam os tais sentimentos de amor e ódio, pelas conhecidas razões históricas. Para segmentos notáveis da sociedade angolana, não se imaginaria maior humilhação para o país do que assistirmos ao julgamento de um ex-vice-Presidente nos tribunais do ex-colono. E esta percepção não pode ser confundida com qualquer espécie de oportunismo teórico das autoridades angolanas. Os ressentimentos derivados da colonização (e mais uma vez, ainda que recusados no discurso politicamente correcto) ultrapassam, de longe, os condicionalismos das relações formais entre governos e instituições do Estado. Não é por acaso que grande parte da defesa pública em Angola contra o desejo português de julgar Manuel Vicente relega para segundo plano a argumentação jurídica e rebusca a narrativa da soberania, ainda que não consiga explicá-la de modo convincente.
O desfecho que se espera do caso Manuel Vicente, como se poderá ler nas recentes palavras do ministro Manuel Augusto, não parece, portanto, deixar alternativa a Portugal que não seja o encaminhamento do processo para a justiça angolana. É a melhor hipótese que restará aos dois países, para não mencionar a pior na perspectiva portuguesa que seria a recusa terminante do processo por parte de Angola. A alternativa do braço-de-ferro indefinido seria estúpida e incompreensível. A apetência por sangue de certos segmentos de parte a parte e as circunstâncias de fricção nas relações formais serão sempre abafadas pela verdade dos laços familiares, culturais e – verdade seja dita – pelo realismo económico.
Até que tudo isso se esclareça, continuaremos a tentar desvendar as interrogações que se seguem, mas que, na verdade, poderiam desembocar numa única. Quais são os limites da mútua chantagem entre Angola e Portugal? Quão profunda poderá ser a fractura nas relações por conta dessa rixa? Onde começa e termina verdadeiramente a defesa dos interesses do Estado (de parte a parte)? Em que pontos concretos a soberania estará em causa? Qual é a linha que delimita o racional do emocional?
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