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Relembrando o 4 de Fevereiro, ou, Wapossoka 4 de Fevereiro

03 Feb. 2021 Opinião

Há muito pouco tempo ouvimos um líder de ‘classe mundial’ dizer abertamente e para quem o quis ouvir, que “um soldado que acaba preso pelo inimigo não é um herói nacional”. Esta afirmação chocou o mundo inteiro porque, muito obviamente, contradiz o que convencionalmente está estabelecido. Pelo menos entre nós.

No nosso 4 de Fevereiro de 1961 um punhado de jovens frustrados e, consequentemente revoltados, assaltou posições inimigas e como resultado acabaram todos ‘emprisionados’. Obviamente que o acto haveria de se tornar na chama que guiou uma grande parte dos libertadores do país que tudo fizeram para que o dia fosse considerado como sendo o início da luta armada. Mas será que foi?

Independentemente de ter sido ou não, os participantes desse acto de hostilidade ao regime colonial merecem o reconhecimento de todos nós, sobretudo porque a grande maioria de nós foi de tal maneira cobarde, não tendo participado do acto. Aliás, se a colaboração fosse maior, se a [adesão] fosse popular, a luta de libertação teria sido muito mais curta.

Só que, apesar de tudo isso, temos no dia 4 de Fevereiro a obrigação de relembrarmos aquele punhado de ‘atrevidos’ que acabaram prisioneiros. Sofreram na pele a injúria, as sevícias e os maus-tratos dos carcereiros da altura. Na realidade, eles deram o que de melhor tinham. Alguns deram mesmo o que não tinham. Houve ainda outros que deram tudo, inclusive a própria vida. Uma pergunta se faz aqui e que, quiçá, nunca ninguém a fez: “ao darem tudo o que seria possível dar, será que esperavam alguma recompensa outra que não fosse a libertação do espaço nacional?”

É óbvio que não será possível avaliar hoje a resposta exacta. Porém, ainda existem vivos alguns desses combatentes iniciais da nossa libertação. E existem familiares que passaram por privações originadas pela encarceração e desaparecimento. Famílias inteiras que não atingiram o potencial de desenvolvimento por causa do ostracismo a que foram votadas bem como pelas dificuldades com que tiveram de batalhar.

O país nasceu 14 anos depois e recordou-se ostensivamente o feito. Foram considerados heróis nacionais. Tornaram-se reconhecidos na praça pública e foi-lhes pedido o sacrifício maior de escreverem uma página da história que, quiçá, não foi bem a realidade. Apesar de a luta armada só começar pouco mais de um mês depois, tiveram que vir a praça pública dar como facto real ter iniciado em 4 de Fevereiro. E participaram do engano global todos os participantes do nosso sistema de educação independentista. Ajudaram a forjar a história, história que serviu para alimentar o patriotismo necessário para que se acabasse a guerra contra o inimigo criado do pós-independência.

Porém, neste 4 de Fevereiro, devemos perguntar a nós mesmos sobre o que fizemos por aqueles que, como disse acima, “deram tudo o que seria possível dar”? Fizemos milionários. Bastantes. Fizemos bilionários. Alguns. E o que fizemos com aqueles que iniciaram a caminhada?

Embora se tenham deixado prender pelo inimigo naquela luta de vitória improvável, eles foram por todos nós elevados ao patamar de heróis. São os nossos heróis. É evidente que até 1974 surgiram outros e, independentemente de mais ou menos gota de suor no pote libertação, deveriam hoje ser tratados como heróis por essa maioria de cobardes que hoje se apoderou do país. Sim, aqueles que hoje propalam a todos os cantos a sua lealdade e amor patriótico, na altura de lutar por essa pátria muitos deles nem sequer existiam. Apoderaram-se da pátria e hoje ignoram os heróis. Ignoram os que por mérito próprio trouxeram o nosso espaço para o nível de país.

A esses heróis esquecidos faço neste 4 de Fevereiro uma vénia de mérito e valentia e exijo que os herdeiros dos que se dedicaram ontem mereçam muito mais respeito por parte daqueles que hoje, sem qualquer mérito excepto oportunismo e bajulação, beneficiam das sementes por eles plantadas em 1961.

Porém, a grandiosa obra por eles iniciada continua à espera do seu toque subtil em direcção a uma finalização heróica. Como em qualquer projecto de monta, tal qual a luta pela independência foi, falta-lhes escreverem as suas memórias para que nós e os que nos seguirão fiquem a saber das privações do percurso. Falta esse relatório final, para que não mais se minta e para que se identifiquem e se distingam os bons dos melhores. Para que possamos compreender como foi possível cairmos tão fundo ao ponto de hoje, 45 anos como povo livre e independente, ainda não tenhamos a educação e a saúde pela qual iniciaram a luta de libertação. Para que possamos compreender como é possível ainda hoje não termos trabalho para os nossos filhos e, em casos pontuais, continuarmos a ser manietados pelos filhos e netos do colonizador. Para que possamos saber donde viemos e, para que passemos a saber para onde vamos.

Para além do mais, é importante educar sem mentiras os mais novos sobre esse sacrifício ora feito para que nunca acreditem que embora presos pelo inimigo, esses homens são os nossos heróis. Só corrigindo o que está mal poderemos melhorar o que está bem. E quem ganhará é o povo. O futuro promete.

António  Vieira

António Vieira

Ex-director da Cobalt Angola