Despedimentos, dívidas e prateleiras vazias fazem o dia-a-dia do Kero
COMÉRCIO. Concurso público vai entregar a gestão da cadeia de supermercados. Mas ainda não há data para o início do processo. Até lá, mais de cinco mil funcionários sobrevivem sob a ameaça de despedimentos. “Joga-se nas lojas”, por entre prateleiras vazias.
O Governo prepara o lançamento do concurso público para candidaturas à gestão da maior rede privada de hiper e supermercados Kero, anteriormente detida pelo grupo Zahara, dos generais Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’, Leopoldino Fragoso do Nascimento ‘Dino’ e Manuel Vicente ex-vice-PR.
O início do processo coincide com o pior período já vivido pelo grupo. somam-se dívidas a fornecedores, contam-se os despedimentos, as prateleiras das lojas estão vazias, há pouco movimento de clientes nos espaços comerciais e sobram áreas abandonadas.
Quem visitar as lojas do grupo, em Luanda, mesmo ao domingo, dia, por excelência, com mais gente, salta à vista a ‘queda’ daquela que foi a rede de lojas mais movimentada e mais bem apetrechada de Luanda, desde que abriu o primeiro espaço comercial em Dezembro de 2010, no Nova Vida.
Por exemplo, neste hipermercado, chama a atenção o pouco movimento. Cenário completamente diferente e quase “anormal”, mesmo em tempos de pandemia, ao domingo noutro espaço comercial. A justificação para a fraca clientela é a pouca oferta de produtos e a “falta de quase tudo o que é essencial''. Prateleiras com apenas um produto e sacos alinhados de gelo cobrem os espaços e disfarçam as geleiras vazias. É tudo o que o hiper tem para oferecer. Na charcutaria, há garrafas de vinho que também preenchem espaços. A enorme loja insiste em não ficar preenchida mesmo com todo o esforço dos funcionários que se dedicam a arrumar e desarrumar os poucos produtos.
PANOS E PAPÉIS EM VEZ DE PRODUTOS
Um desses funcionários explica que este é o cenário em que estão a viver desde Dezembro do ano passado. Fevereiro foi o mês mais "crítico" em que começou a faltar “muita coisa”, explica. "A razão é conhecida de todos", adianta. “Temos dívidas com fornecedores.”
Na loja dos Ex-Combatentes, no centro de Luanda, são notórios os dias parados dos funcionários. Uns limitam-se a ficar sentados, outros apenas conversam. A falta de clientes é evidente. Tal como na loja do Nova Vida, o cenário é quase o mesmo. “Estamos com falta de produtos em todas as lojas”, explica um dos funcionários. Falta de produtos e um mesmo produto para cobrir a falta de outros é o “truque das lojas para que pareçam cheias”.
Na loja do Morro Bento, evidenciam-se os panos e papéis que cobrem as áreas vazias e as geleiras. Nesta loja, diferente das outras, o 'truque' foi encher as partes da frente das prateleiras com os mesmos produtos e cobrir com papéis as partes de baixo. Para as geleiras, a loja optou por usar protectores.
Já no Kero do Gika, em Alvalade, o maior estabelecimento do grupo, as geleiras e congeladores vazios chamam a atenção de quem ali se desloca. A falta de clientes é bem visível na maioria dos caixas de atendimento, entre os que ainda se encontram abertos.
Há trabalhadores apenas a organizar produtos, muitas vezes, para ter o que fazer e outros que simplesmente ficam parados. A loja, que, ao domingo, era das mais movimentadas, deu lugar quase a um o ‘eco’ sempre que alguém fala mais alto.
NEM LEGUMES, NEM FRUTA, NEM PEIXE
Em quase todas as lojas, as áreas dos legumes e das frutas e as peixarias estão vazias. Onde há produtos nestes espaços, há pouca oferta e a que resta tem um aspecto envelhecido. O que antes era preenchido por uma vasta gama de produtos deu lugar a um espaço que dá “para jogar futebol”, como brinca um dos trabalhadores. “Isso parece um castelo a ruir. Ou as cartas a caírem uma a uma”.
Em vários locais, simplesmente colocaram um papel a explicar aos poucos clientes que as geleiras, congeladores ou prateleiras estavam "em manutenção". "A culpa disso é a dívida que o grupo tem com fornecedores", afirmam os funcionários.
TRABALHADORES DESPEDIDOS
Há despedimentos nas lojas do grupo. Sem saber quantificar o número de pessoas dispensadas, um dos trabalhadores, que ainda resiste no posto de trabalho, apenas esclarece que muitos colegas já tinham “sido brindados” com a rescisão dos contratos. No Kero do Morro Bento, por exemplo, fala-se de mais de uma dezena e da ameaça de haver mais despedimentos. Conta-se que vão ser mais de mais, ainda esta 20 na quarta-feira. Uma informação que a assessoria do Kero não confirma, mas também não desmente. “Vamos esperar. Não há outra coisa a fazer. Estamos a trabalhar sem saber o amanhã. Mas como o Governo vai privatizar as coisas podem melhorar muito”, confia um dos funcionários.
O VE tentou saber o número de funcionários despedidos através da comunicação do grupo Zahara, mas não obteve sucesso.
NOSSO SUPER DE ‘MAL A PIOR’
O grupo Zahara gere, além das lojas Kero, a rede de supermercados públicos ‘Nosso Super’. O Governo, em declarações ao VALOR, em Novembro do ano passado, garantia que estas lojas iriam também passar para a gestão privada.
Uma visita às lojas desta rede evidencia a falta de produtos, tal como se vê nas superfícies comerciais do Kero. Com poucos clientes, quase se contam pelos dedos das mãos, a loja da Gamek, em Luanda, chama a atenção também pela falta do que fazer dos poucos funcionários.
Áreas cobertas para disfarçar a falta de produtos, geleiras vazias e grandes espaços vazios também fazem parte do dia-a-dia da loja. À entrada, o capim seco e maltratado é das imagens que marcam. Na do Golfe II, a mesma paisagem. Uma das funcionárias garante que, apesar do cenário “caótico”, nenhum dos trabalhadores tinha sido despedido. Com 18 funcionários, tem sobrado tempo para endireitar uma “garrafa 10 vezes ao dia”. “Estamos à espera da nova gestão que o Governo prometeu. As coisas parecem como antes do Grupo Zahara ter começado a gestão. A verdade é que, depois deste grupo entrar, as coisas melhoraram. Mas voltamos ao mesmo. Vamos esperar”, desabafa quem aqui cumpre horários.
A cadeia Nosso Super integra o Programa de Reestruturação do Sistema de Logística e de Distribuição de Produtos Essenciais à População (Presild), lançado em 2007, e que tinha como objectivo modernizar a rede comercial e criar novas oportunidades de negócios e de emprego. A rede tem 32 lojas espalhadas pelo país, mas nem todas estão abertas.
O contrato de gestão e exploração da rede Nosso Super, pelo grupo Zahara, entrou em vigor em Janeiro de 2016. A parceria surgiu numa altura em que alguns órgãos de comunicação davam conta de despedimentos no Nosso Super e de falta de produtos nas prateleiras.
Concurso sem datas
O concurso público para a concessão da rede Kero arranca em breve, mas "sem data concreta", esclarece o Instituto de Gestão e Participações do Estado (Igape). Ao contrário do que foi anunciado por órgãos de comunicação social, a entrega da gestão do Kero ainda não tem data definida.
Até 2018, a rede Kero tinha mais de 10 lojas e cinco mil trabalhadores. Em Outubro de 2020, a Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou que depois de constituídos arguidos, os generais ‘Dino’ e ‘Kopelipa’ procederam à entrega ao Estado de vários activos, entre os quais a cadeia Kero.
O Presidente da República aprovou, em despacho de 11 de Julho, a cessão do direito de gestão da rede de hiper e supermercados Kero, delegando aos ministros das Finanças e Indústria e Comércio a condução e verificação da legalidade de todos os actos inerentes ao procedimento do concurso público.
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