“Se queremos que agricultura seja um facto, devemos criar condições de reabrirmos as fábricas”
Presidente da Confederação das Associações de Camponeses e Cooperativas Agro-pecuárias de Angola (Unaca) entende que os problemas vividos no sector agrícola devem ser resolvidos junto das cooperativas e “não deve haver usurpação de poderes como tem acontecido”. Defende que a problemática da segurança alimentar não pode ser resolvida com relatórios, tão-pouco ser vista como comícios. Albano Lussaty acredita que a melhor forma de “sacudir” os males na agricultura passa pela revitalização das fábricas paralisadas e por apoiar os camponeses, mas sem ser com esmolas.
Quais têm sido as dificuldades da Unaca face à pandemia?
Estamos a viver momentos difíceis. Mas, apesar da tempestade, a Unaca nunca parou. Os camponeses nunca pararam. Nunca faltou a batata-doce na mesa da população. Isto se deve ao esforço empreendido pelos nossos camponeses. Estamos a criar mecanismos para ir ao encontro deles e procurar avançar com projectos de formação, isto porque, quando entrou o confinamento, em particular em Luanda, os camponeses quase ficaram abandonados, cerca de quatro e cinco meses, mas está tudo ultrapassado e hoje estamos permanentemente com eles. Por outro lado, a Unaca continua a criar cooperativas. Não temos utilizado os meios de fusão massiva. Com esta situação que vivemos, pensámos em avançar com a revitalização daquelas cooperativas que ficaram fragilizadas, no sentido de que os meios de produção reduziram bastante.
E como está a problemática dos insumos?
Os camponeses estão a viver momentos difíceis com a aquisição de adubos. Isso preocupa-nos bastante, mas também satisfeitos depois de ouvirmos o executivo a dar-nos uma boa notícia de subvencionar em cerca de 35% do adubo que será importado. Se esta intenção for concretizada, teremos êxitos porque o adubo terá um preço muito baixo diferente dos 25 mil praticados actualmente, para um saco de 25 quilos. Isto não é bom para um país que quer apostar fortemente na diversificação da economia.
Acredita que estará para breve?
A notícia foi dada, é uma posição do nosso executivo, continuamos a aguardar, mas é bom que seja de forma rápida, porque já se avizinha o início da campanha agrícola e a nossa ansiedade é ver este meio chegar rapidamente às mãos dos camponeses, para facilitar na planificação.
O mercado angolano tem abertura para o fabrico de materiais do campo e de adubo?
São projecções e ideias que surgem. Há dias, participámos num colóquio, que debatia o sulfato de amónio, este elemento que já se faz sentir em Angola, com experiências na Universidade da Chianga, no Huambo, em algumas cooperativas no Bié e na Caála, onde vimos alguns empresários em sintonia com o Governo. Eles querem criar uma fábrica de adubos e é satisfatório. Se queremos que a agricultura seja um facto, devemos criar condições de reabrirmos fábricas, como aquelas fundições que fabricavam enxadas e charruas. É preciso que nas projecções do executivo haja um estudo profundo de reabilitação destas fábricas, como é o caso concreto da fundição de charrua, no Huambo, Máquinas Pinheiros, entre outras. São essas fábricas que as nossas atenções estariam centradas de modo a criar condições logísticas para desacelerarmos a importação de bananas, ovos, entre outros produtos. Há recuos que não abonam em nada a economia, porque agindo desta forma estaríamos a criar constrangimentos à produção nacional. Se revitalizarmos as fábricas, muitas situações serão resolvidas: Primeiro, estariam a resolver o problema do camponês, que não irá de certeza comprar uma enxada num valor muito alto e segundo, estariam a facilitar o emprego da juventude, que vive ávida do primeiro emprego. Este deve ser o espírito que deve nortear o nosso executivo.
A Cooperativa de Crédito Agrário de Angola (Copca) já é uma realidade?
A cooperativa de crédito foi uma iniciativa e proposta da Unaca e seria muito bom que existisse uma cooperativa de crédito. Depois de começar a trilhar os primeiros passos, passou a encontrar constrangimentos de financiamento e até agora continua à procura de financiamento. Em Portugal, Brasil e alguns países africanos, como a Namíbia e África do Sul, só para citar alguns, encontrámos cooperativas a funcionar, com foco no apoio às cooperativas e associações. Aqui estamos a encontrar problemas sérios. Alguns assuntos que deveriam ser tratados pela sociedade, o Governo quer assumi-los. Com toda a honestidade, não é muito elegante que o Governo passe a distribuir adubos. Esta é uma tarefa empresarial, portanto, é importante que a cooperativa e o empresário fornecedor de adubo tenham a mesma linguagem e o mesmo sentimento. O que se regista hoje é que as coisas são todas planificadas de cima e, muitas vezes, não há consulta da base e isto é um grande erro.
Trata-se de usurpação de poder?
Correctíssimo. O que norteou a criação desta cooperativa é encontrar financiamento e estamos a lutar para isso seja uma realidade. Temos, no país, muitos focos sobre o crédito. E quem lidera o crédito é o Ministério das Finanças e o BDA. Os bancos devem trabalhar com esta sociedade que tem esta facilidade de penetrar nos locais longínquos. Por exemplo, o Presidente da República aprovou, no decreto 98/20 de 9 de Abril, as medidas de alívio do impacto económico sobre as empresas, famílias e sector informal. Foram seleccionadas 270 cooperativas - 15 para cada província – e cada uma destas poderia receber 50 milhões de kwanzas. Foi uma notícia aplaudida pelos camponeses. Finalmente, o Governo ouviu o nosso clamor e agora as coisas andam ao contrário. No início, os parceiros foram chamados, a Unaca criou condições de assinar um protocolo de colaboração com o Ministério das Finanças. Infelizmente, quando há muita interferência, se não tivermos cuidado, irá ao fracasso. Queremos dar os parabéns ao governo provincial do Bié, que entendeu a mensagem, trabalhou com a Unaca e acompanhou, com rigor, a selecção das cooperativas e ultrapassou a meta. Em vez das 15 cooperativas, conseguiu 20 e recebeu cerca de 448 milhões de kwanzas. Diferente do Huambo, com 11 municípios, só conta com uma cooperativa e estamos quase no fim do cumprimento do decreto. Quando começo a olhar para estas projecções fico preocupado! Quando chega a altura da participação efectiva do dinheiro, as organizações não são chamadas, mas na mobilização são. Há cooperativas, invés de receberam 50 milhões, receberam três milhões. Este problema começa a fragilizar aquilo que se planifica.
Como olha para a situação da seca e da praga de gafanhotos no Sul do país?
Temos de saber que a fome não está no campo, mas sim nas cidades. Só existe fome nos campos quando há estiagem, seca e pragas de gafanhotos, como aconteceu no Cunene, em partes da Huíla e de Benguela e no Kuando-Kubango. É neste quadro que é preciso criar aquilo que chamamos segurança alimentar. A Cosan é uma plataforma que defende a segurança alimentar e é membro da CPLP. Em outros países, tem forma de medir o temperamento de cada região e o que mais se produz. Se nós não concretizarmos aquilo que preconizamos, encontraremos sempre problemas da falta de segurança alimentar. A segurança alimentar não pode ser no relatório, não pode ser falada em comício. Ela pressupõe trabalho.
E quanto ao crédito?
Estamos a dar crédito. Já estamos em 12 províncias, no total já são 112 cooperativas creditadas, estamos de parabéns. Agora, o nosso trabalho passa pela sensibilização do camponês, educar na gestão daquilo que recebeu e também consciencializá-lo que tem o dever de devolver o valor do crédito. Este é o trabalho da Unaca e não nos têm confundido. Temos um objecto social que passa pela formação de cooperativas e de associações, de sensibilizar os camponeses e de criar um novo banco de dados. O nosso está superlotado. Devido aos constrangimentos impostos pela covid-19 e pela situação económica, não conseguimos iniciar os cadastramentos. É importante que se faça o cadastramento e o Prodesi aparece e diz “estamos a entregar dinheiro às cooperativas e este dinheiro tem de voltar”. E agora pergunto, quantas cooperativas existem em Angola? Encontramos hoje até organismos do Governo a criar cooperativas. Isto não é possível. Hoje, é possível encontrar, por exemplo, um ministério a dizer que também tem cooperativas, estamos a criar embaraços no trabalho. Se assim queremos, é importante que se aprove um instituto para regular o funcionamento das cooperativas, em todos os segmentos, coisa que ainda não existe. O que existe é a Unaca e a Adra com as suas cooperativas. O IDA, que não é para formar cooperativas, mas sim para educar dinamizadores, hoje por hoje, também já aparece com cooperativas. Agora questiono, estas cooperativas todas que recebem créditos, no momento de reembolso quem será o responsável para a mobilização? Estão a querer reviver os mesmos erros ocorridos no microcrédito, crédito de campanha e crédito de investimento. Agora estão a aparecer muitos intervenientes do campo, porém a nossa maior preocupação é tirar o paternalismo na mente dos camponeses. O camponês tem de saber que esta é “a minha terra, estou a produzir, vou vender, tenho lucro e vou comprar”. Temos de parar de viciar o camponês com o hábito de os visitar e de lhes oferecer sacos de adubos. Agora que já estamos a receber financiamento de 50 milhões de kwanzas, a nossa filosofia é procurarmos evoluir o cooperativismo para grandes empresas, para que dê ‘inputs’ no Orçamento Geral de Estado.
Mas isso não carece de formação?
Claro, estamos a fazer isso. Mas é interessante ver na televisão que o Governo visitou e deixou materiais agrícolas a custo zero. Entendemos que é solidariedade, é apoio, todavia, é preciso formar o camponês. Devemos criar financiamento junto dos bancos, temos de colocar de parte a burocracia. Há muita burocracia. Quando se fala ao camponês que vou fazer estudo de viabilidade, deve-se ensinar o que é e para que serve. Tudo isto é uma cadeia, temos de ver se estou a dar crédito para a produção. À retaguarda, deve ter uma instituição para escoamento deste produto. Caso o produto não seja escoado, o camponês terá problemas com o banco.
Há vias de comunicação suficientes para a facilitar o escoamento?
Foi implementado o projecto PDAC, que visa recuperar as vias de acesso e infra-estruturas, como pontes, estradas, fábricas e apetrechamento de escolas no meio rural. É um programa para o meio rural, mas precisa de ser célere, porque dentro de dois meses será o arranque da produção agrícola. Outra coisa que me agradou muito foi a reconstrução das escolas técnicas agrárias. Têm de ser recuperadas, como as da Huíla e do Huambo, que poderão ensinar o cooperativismo aos camponeses e permitir com que os jovens não saiam do campo para as cidades.
Ainda é de opinião que a implementação do IVA trouxe desvantagens para os camponeses?
Tenho uma experiência da ‘cintura verde’ de Luanda, onde circulamos permanentemente, no caso concreto da Funda, Calumbo, Kikuxi, Bom Jesus e Agro da Quininha. Eles encontram problemas, porque isso influencia na venda dos produtos. Sempre que há uma medida que afecta também o meio rural é importante que se crie catálogos, em que o camponês irá encontrar informações necessárias sobre um determinado assunto. Se questionar um camponês sobre que é que é o IVA, se for da zona sul, ou mesmo de Luanda, poderá confundir com uma marca de um autocarro. É preciso ensinar isso ao camponês, que é diferente da classe intelectual e dos trabalhadores das zonas urbanas.Enfim, já foi implementado e agora é preciso criar-se outros mecanismos, um dos quais aplaudido pela Unaca, é a intenção do Governo em subvencionar os adubos em 35% e aí assim o camponês não sentirá o peso.
Que benefícios traria a implementação das cantinas rurais junto das organizações de camponeses e das cooperativas?
As cantinas, desde 2015, que sou presidente, sempre disse que não devem ser lideradas pelos funcionários que estão nas cidades por não conhecem as zonas. Ele não conhece o Kuito e dirá que conhece. Uma cantina rural forte irá diminuir as andanças do camponês e ajudar na troca do seu produto e no câmbio na aquisição de produtos como açúcar, arroz, batata, entre outros. O cantineiro deve estar lá para ajudar a expandir o funcionamento de operadores comerciais. Antigamente, havia a Erenista e o Ecundipa. Um era grossista e outro retalhista e havia outros que eram comerciantes do mato que esperavam os camponeses para fazer a troca dos produtos. É um sacrifício e é importante que isso seja revolucionado. Há tempos, ouvi que o Governo vai entregar carrinhas para comerciantes. Se vai entregar carrinhas, porque não entregar a uma cooperativa e que a mesma leve os seus produtos directamente à cidade? Estes comerciantes vão comprar carrinhas que não chegam ao campo porque encontram constrangimentos nas vias de acesso. Por outro lado, há a inexistência de regulamento em termos de preços. Hoje, o camponês já tem uma visão diferente. Antigamente, ditava-se o preço da galinha, hoje não. Temos cooperativas a serem lideradas por técnicos médios de agronomia, outras por economistas. Os homens seleccionados para o campo não devem ser de outras zonas, devem ser das zonas de jurisdição que sabem perfeitamente qual é o momento de levar o açúcar, óleo, entre outros produtos.
Qual é a apreciação que tem da fixação dos preços?
O preço é um problema. Gostei da revisão da Constituição da República, em que o povo participou, as universidades participaram e isso é bom. E isso levou-me a reflectir. Finalmente, é um método. Se eu disser que vou mudar o quadro dos preços, tenho necessariamente de consultar os demais, porque poderá dar-se o caso de ser somente eu a gostar da alteração. Na minha terra diz-se assim: “os joelhos não são os mesmos, se outro está a saltar não significa necessariamente que deves seguir as mesmas pisadas, poderás tropeçar”. Então, é a mesma coisa, na aplicação dos preços que é bom, mas desde que seja de consenso mútuo. Apesar de reconhecer que o Governo detém a legitimidade de regular os preços, também é importante que haja consulta na aplicação da qualquer medida.
Já há maior acessibilidade de insumos agrícolas por parte dos camponeses?
De facto, há, mas os preços estão altos. Visitei o Huambo, há lá um grito maior. Sou muito contra alguns dizeres de relatório. Ouvimos os relatórios, começamos a pensar que tudo anda bem, mas não. O importante é irmos ao encontro dos camponeses para saber se tudo anda bem e este é o conceito de direcção que as pessoas devem ter. Não há adubos. Estão muito caros. O saco está a custar 25 mil kwanzas. Os insumos são os tractores que foram distribuídos aos ex-militares. Mas a minha pergunta é, já formamos tractoristas? Para eu entregar o tractor, devo habilitar o camponês. Hoje o centro de mecanização de Viana deixou de existir. Quem irá reparar o tractor quando tiver uma avaria? Estamos preocupados com isso. Foram distribuídos muito recentemente tractores e verificamos que alguns já estão avariados. Volto a questionar, qual foi o rendimento? É preciso fazer um balanço. Já estamos a abraçar a mecanização dos bancos, é preciso criar escolas técnicas. Enquanto isso não for criado, teremos sérios problemas.
A distribuição das terras está acautelada?
Este problema das terras é um problema sério. Por exemplo, a expropriação das terras, como nas centralidades do Kilamba e Sequele. Aquilo tudo era associações e cooperativas de mandioca e jinguba em Luanda. Às vezes, vejo camponeses a gritar, coitados. Tem de haver uma defesa nisso, porque os mecanismos utilizados, para a expropriação de terras, não têm sido bons. Quando estou a usurpar uma coisa, acabo por deixar mágoas. O mecanismo deveria ser negociar com os camponeses. É preciso negociar com a pessoa encontrada no local. Com o surgimento do Prodesi, o número de cooperativas disparou. Desconfio – quero estar errado – que muitos, pela ânsia de querer ter dinheiro, decidiram criar cooperativas. A lei de terra deve ser revista o mais rapidamente possível e os legisladores devem olhar mais para os idosos que têm terras deixadas pelos seus ancestrais.
Mas a terra não é propriedade do Estado?
A terra é propriedade do Estado, mas o homem que faz a lei é o Estado. Concordo que a terra é do Estado. Mas enquanto Estado deve também defender aquele que conservou. Qual é o agradecimento do Estado? Isso é como tudo. Trago um casal de bois, crescem e tornam-se 7. Devo, no mínimo, dar um casal e eu levar os cinco, de forma a agradecer pelos cuidados. Tradicionalmente, algumas leis são aprovadas, mas que não têm aceitação no meio rural, porque não entendem. É por isso que nós, Unaca, vamos ao encontro do camponês. Infelizmente, também temos problemas. Estamos sem viaturas, não temos dinheiro e o Governo deve saber que esta é uma máquina para ajudar a solucionar problemas.
A distribuição dos títulos satisfaz a Unaca?
Satisfaz… é a lei. Tenho dito aos camponeses que a terra não é nossa. Estamos sujeitos a cumprir a lei. Mas o nosso apelo tem sido no sentido de a lei proteger aquelas pessoas que viveram muito tempo naquelas terras. Não se pode colocar um prédio e viver na garagem, não é correcto. É o mesmo que dizer: “tenho 50 hectares e aquele homem, que cuida da terra deste o tempo colonial, tem cinco hectares, o melhor seria dizer já que estou a trabalhar os meus hectares com as minhas máquinas, devo lavrar também as terras deste pacato cidadão para que não me roube milho”. Esta é uma consciência que temos de cultivar. Estamos a encontrar hoje são empresários oportunistas que, ao invés de ajudar, roubam terras dos pobres camponeses. Por isso, é preciso que antes de se passar o título, é necessário que se faça um trabalho de apuramento.
A subvenção dos combustíveis já é uma realidade?
A subvenção dos combustíveis não se faz sentir. A subvenção dos combustíveis, há muito que vem sendo motivo de debate e até aqui não se faz sentir, porque os preços dos combustíveis nas bombas continuam a ser uma ‘dor de cabeça’ dos camponeses. Agora que se aprovou a subvenção do adubo, é importante que se anexe já também a do combustível. Seria bom que o Executivo olhasse para estes elementos que são de extrema importância, que acabam por ser o fertilizante e o combustível.
Perfil
Vários anos de cooperativismo
Albano da Silva Lussati, de 66 anos, é natural do Huambo. Formado em Gestão Cooperativa e em Agronegócio pelo Instituto António Sérgio em Portugal, tem uma larga experiência de extensionista rural, está no movimento cooperativo no país desde 1978. É co-fundador da Cooperativa Agropecuária Centro Lufefena.
Levantamento diário cumulativamente nos ATMs passa para 180 mil kwanzas