ANGOLA GROWING
Albano Lussaty, presidente da UNACA

“Se queremos que agricultura seja um facto, devemos criar condições de reabrirmos as fábricas”

25 Aug. 2021 Grande Entrevista

Presidente da Confederação das Associações de Camponeses e Cooperativas Agro-pecuárias de Angola (Unaca) entende que os problemas vividos no sector agrícola devem ser resolvidos junto das cooperativas e “não deve haver usurpação de poderes como tem acontecido”. Defende que a problemática da segurança alimentar não pode ser resolvida com relatórios, tão-pouco ser vista como comícios. Albano Lussaty acredita que a melhor forma de “sacudir” os males na agricultura passa pela revitalização das fábricas paralisadas e por apoiar os camponeses, mas sem ser com esmolas.

 

“Se queremos que agricultura seja um facto, devemos criar condições de reabrirmos as fábricas”

Quais têm sido as dificuldades da Unaca face à pandemia?

Estamos a viver momentos difíceis. Mas, apesar da tempestade, a Unaca nunca parou. Os camponeses nunca pararam. Nunca faltou a batata-doce na mesa da população. Isto se deve ao esforço empreendido pelos nossos camponeses. Estamos a criar mecanismos para ir ao encontro deles e procurar avançar com projectos de formação, isto porque, quando entrou o confinamento, em particular em Luanda, os camponeses quase ficaram abandonados, cerca de quatro e cinco meses, mas está tudo ultrapassado e hoje estamos permanentemente com eles. Por outro lado, a Unaca continua a criar cooperativas. Não temos utilizado os meios de fusão massiva. Com esta situação que vivemos, pensámos em avançar com a revitalização daquelas cooperativas que ficaram fragilizadas, no sentido de que os meios de produção reduziram bastante.

E como está a problemática dos insumos?

Os camponeses estão a viver momentos difíceis com a aquisição de adubos. Isso preocupa-nos bastante, mas também satisfeitos depois de ouvirmos o executivo a dar-nos uma boa notícia de subvencionar em cerca de 35% do adubo que será importado. Se esta intenção for concretizada, teremos êxitos porque o adubo terá um preço muito baixo diferente dos 25 mil praticados actualmente, para um saco de 25 quilos. Isto não é bom para um país que quer apostar fortemente na diversificação da economia.

Acredita que estará para breve?

A notícia foi dada, é uma posição do nosso executivo, continuamos a aguardar, mas é bom que seja de forma rápida, porque já se avizinha o início da campanha agrícola e a nossa ansiedade é ver este meio chegar rapidamente às mãos dos camponeses, para facilitar na planificação.

“Se queremos que agricultura seja um facto, devemos criar condições de reabrirmos as fábricas”

O mercado angolano tem abertura para o fabrico de materiais do campo e de adubo?

São projecções e ideias que surgem. Há dias, participámos num colóquio, que debatia o sulfato de amónio, este elemento que já se faz sentir em Angola, com experiências na Universidade da Chianga, no Huambo, em algumas cooperativas no Bié e na Caála, onde vimos alguns empresários em sintonia com o Governo. Eles querem criar uma fábrica de adubos e é satisfatório. Se queremos que a agricultura seja um facto, devemos criar condições de reabrirmos fábricas, como aquelas fundições que fabricavam enxadas e charruas. É preciso que nas projecções do executivo haja um estudo profundo de reabilitação destas fábricas, como é o caso concreto da fundição de charrua, no Huambo, Máquinas Pinheiros, entre outras. São essas fábricas que as nossas atenções estariam centradas de modo a criar condições logísticas para desacelerarmos a importação de bananas, ovos, entre outros produtos. Há recuos que não abonam em nada a economia, porque agindo desta forma estaríamos a criar constrangimentos à produção nacional. Se revitalizarmos as fábricas, muitas situações serão resolvidas: Primeiro, estariam a resolver o problema do camponês, que não irá de certeza comprar uma enxada num valor muito alto e segundo, estariam a facilitar o emprego da juventude, que vive ávida do primeiro emprego. Este deve ser o espírito que deve nortear o nosso executivo.

A Cooperativa de Crédito Agrário de Angola (Copca) já é uma realidade?

A cooperativa de crédito foi uma iniciativa e proposta da Unaca e seria muito bom que existisse uma cooperativa de crédito. Depois de começar a trilhar os primeiros passos, passou a encontrar constrangimentos de financiamento e até agora continua à procura de financiamento. Em Portugal, Brasil e alguns países africanos, como a Namíbia e África do Sul, só para citar alguns, encontrámos cooperativas a funcionar, com foco no apoio às cooperativas e associações. Aqui estamos a encontrar problemas sérios. Alguns assuntos que deveriam ser tratados pela sociedade, o Governo quer assumi-los. Com toda a honestidade, não é muito elegante que o Governo passe a distribuir adubos. Esta é uma tarefa empresarial, portanto, é importante que a cooperativa e o empresário fornecedor de adubo tenham a mesma linguagem e o mesmo sentimento. O que se regista hoje é que as coisas são todas planificadas de cima e, muitas vezes, não há consulta da base e isto é um grande erro.

Trata-se de usurpação de poder?

Correctíssimo. O que norteou a criação desta cooperativa é encontrar financiamento e estamos a lutar para isso seja uma realidade. Temos, no país, muitos focos sobre o crédito. E quem lidera o crédito é o Ministério das Finanças e o BDA. Os bancos devem trabalhar com esta sociedade que tem esta facilidade de penetrar nos locais longínquos. Por exemplo, o Presidente da República aprovou, no decreto 98/20 de 9 de Abril, as medidas de alívio do impacto económico sobre as empresas, famílias e sector informal. Foram seleccionadas 270 cooperativas - 15 para cada província – e cada uma destas poderia receber 50 milhões de kwanzas. Foi uma notícia aplaudida pelos camponeses. Finalmente, o Governo ouviu o nosso clamor e agora as coisas andam ao contrário. No início, os parceiros foram chamados, a Unaca criou condições de assinar um protocolo de colaboração com o Ministério das Finanças. Infelizmente, quando há muita interferência, se não tivermos cuidado, irá ao fracasso. Queremos dar os parabéns ao governo provincial do Bié, que entendeu a mensagem, trabalhou com a Unaca e acompanhou, com rigor, a selecção das cooperativas e ultrapassou a meta. Em vez das 15 cooperativas, conseguiu 20 e recebeu cerca de 448 milhões de kwanzas. Diferente do Huambo, com 11 municípios, só conta com uma cooperativa e estamos quase no fim do cumprimento do decreto. Quando começo a olhar para estas projecções fico preocupado! Quando chega a altura da participação efectiva do dinheiro, as organizações não são chamadas, mas na mobilização são. Há cooperativas, invés de receberam 50 milhões, receberam três milhões. Este problema começa a fragilizar aquilo que se planifica.

Como olha para a situação da seca e da praga de gafanhotos no Sul do país?

Temos de saber que a fome não está no campo, mas sim nas cidades. Só existe fome nos campos quando há estiagem, seca e pragas de gafanhotos, como aconteceu no Cunene, em partes da Huíla e de Benguela e no Kuando-Kubango. É neste quadro que é preciso criar aquilo que chamamos segurança alimentar. A Cosan é uma plataforma que defende a segurança alimentar e é membro da CPLP. Em outros países, tem forma de medir o temperamento de cada região e o que mais se produz. Se nós não concretizarmos aquilo que preconizamos, encontraremos sempre problemas da falta de segurança alimentar. A segurança alimentar não pode ser no relatório, não pode ser falada em comício. Ela pressupõe trabalho.

 E quanto ao crédito?

Estamos a dar crédito. Já estamos em 12 províncias, no total já são 112 cooperativas creditadas, estamos de parabéns. Agora, o nosso trabalho passa pela sensibilização do camponês, educar na gestão daquilo que recebeu e também consciencializá-lo que tem o dever de devolver o valor do crédito. Este é o trabalho da Unaca e não nos têm confundido. Temos um objecto social que passa pela formação de cooperativas e de associações, de sensibilizar os camponeses e de criar um novo banco de dados. O nosso está superlotado. Devido aos constrangimentos impostos pela covid-19 e pela situação económica, não conseguimos iniciar os cadastramentos. É importante que se faça o cadastramento e o Prodesi aparece e diz “estamos a entregar dinheiro às cooperativas e este dinheiro tem de voltar”. E agora pergunto, quantas cooperativas existem em Angola? Encontramos hoje até organismos do Governo a criar cooperativas. Isto não é possível. Hoje, é possível encontrar, por exemplo, um ministério a dizer que também tem cooperativas, estamos a criar embaraços no trabalho. Se assim queremos, é importante que se aprove um instituto para regular o funcionamento das cooperativas, em todos os segmentos, coisa que ainda não existe. O que existe é a Unaca e a Adra com as suas cooperativas. O IDA, que não é para formar cooperativas, mas sim para educar dinamizadores, hoje por hoje, também já aparece com cooperativas. Agora questiono, estas cooperativas todas que recebem créditos, no momento de reembolso quem será o responsável para a mobilização? Estão a querer reviver os mesmos erros ocorridos no microcrédito, crédito de campanha e crédito de investimento. Agora estão a aparecer muitos intervenientes do campo, porém a nossa maior preocupação é tirar o paternalismo na mente dos camponeses. O camponês tem de saber que esta é “a minha terra, estou a produzir, vou vender, tenho lucro e vou comprar”. Temos de parar de viciar o camponês com o hábito de os visitar e de lhes oferecer sacos de adubos. Agora que já estamos a receber financiamento de 50 milhões de kwanzas, a nossa filosofia é procurarmos evoluir o cooperativismo para grandes empresas, para que dê ‘inputs’ no Orçamento Geral de Estado.

Mas isso não carece de formação?

Claro, estamos a fazer isso. Mas é interessante ver na televisão que o Governo visitou e deixou materiais agrícolas a custo zero. Entendemos que é solidariedade, é apoio, todavia, é preciso formar o camponês. Devemos criar financiamento junto dos bancos, temos de colocar de parte a burocracia. Há muita burocracia. Quando se fala ao camponês que vou fazer estudo de viabilidade, deve-se ensinar o que é e para que serve. Tudo isto é uma cadeia, temos de ver se estou a dar crédito para a produção. À retaguarda, deve ter uma instituição para escoamento deste produto. Caso o produto não seja escoado, o camponês terá problemas com o banco.

Há vias de comunicação suficientes para a facilitar o escoamento?

Foi implementado o projecto PDAC, que visa recuperar as vias de acesso e infra-estruturas, como pontes, estradas, fábricas e apetrechamento de escolas no meio rural. É um programa para o meio rural, mas precisa de ser célere, porque dentro de dois meses será o arranque da produção agrícola. Outra coisa que me agradou muito foi a reconstrução das escolas técnicas agrárias. Têm de ser recuperadas, como as da Huíla e do Huambo, que poderão ensinar o cooperativismo aos camponeses e permitir com que os jovens não saiam do campo para as cidades.

Ainda é de opinião que a implementação do IVA trouxe desvantagens para os camponeses?

Tenho uma experiência da ‘cintura verde’ de Luanda, onde circulamos permanentemente, no caso concreto da Funda, Calumbo, Kikuxi, Bom Jesus e Agro da Quininha. Eles encontram problemas, porque isso influencia na venda dos produtos. Sempre que há uma medida que afecta também o meio rural é importante que se crie catálogos, em que o camponês irá encontrar informações necessárias sobre um determinado assunto. Se questionar um camponês sobre que é que é o IVA, se for da zona sul, ou mesmo de Luanda, poderá confundir com uma marca de um autocarro. É preciso ensinar isso ao camponês, que é diferente da classe intelectual e dos trabalhadores das zonas urbanas.Enfim, já foi implementado e agora é preciso criar-se outros mecanismos, um dos quais aplaudido pela Unaca, é a intenção do Governo em subvencionar os adubos em 35% e aí assim o camponês não sentirá o peso.

Que benefícios traria a implementação das cantinas rurais junto das organizações de camponeses e das cooperativas?

As cantinas, desde 2015, que sou presidente, sempre disse que não devem ser lideradas pelos funcionários que estão nas cidades por não conhecem as zonas. Ele não conhece o Kuito e dirá que conhece. Uma cantina rural forte irá diminuir as andanças do camponês e ajudar na troca do seu produto e no câmbio na aquisição de produtos como açúcar, arroz, batata, entre outros. O cantineiro deve estar lá para ajudar a expandir o funcionamento de operadores comerciais. Antigamente, havia a Erenista e o Ecundipa. Um era grossista e outro retalhista e havia outros que eram comerciantes do mato que esperavam os camponeses para fazer a troca dos produtos. É um sacrifício e é importante que isso seja revolucionado. Há tempos, ouvi que o Governo vai entregar carrinhas para comerciantes. Se vai entregar carrinhas, porque não entregar a uma cooperativa e que a mesma leve os seus produtos directamente à cidade? Estes comerciantes vão comprar carrinhas que não chegam ao campo porque encontram constrangimentos nas vias de acesso. Por outro lado, há a inexistência de regulamento em termos de preços. Hoje, o camponês já tem uma visão diferente. Antigamente, ditava-se o preço da galinha, hoje não. Temos cooperativas a serem lideradas por técnicos médios de agronomia, outras por economistas. Os homens seleccionados para o campo não devem ser de outras zonas, devem ser das zonas de jurisdição que sabem perfeitamente qual é o momento de levar o açúcar, óleo, entre outros produtos.

Qual é a apreciação que tem da fixação dos preços?

O preço é um problema. Gostei da revisão da Constituição da República, em que o povo participou, as universidades participaram e isso é bom. E isso levou-me a reflectir. Finalmente, é um método. Se eu disser que vou mudar o quadro dos preços, tenho necessariamente de consultar os demais, porque poderá dar-se o caso de ser somente eu a gostar da alteração. Na minha terra diz-se assim: “os joelhos não são os mesmos, se outro está a saltar não significa necessariamente que deves seguir as mesmas pisadas, poderás tropeçar”. Então, é a mesma coisa, na aplicação dos preços que é bom, mas desde que seja de consenso mútuo. Apesar de reconhecer que o Governo detém a legitimidade de regular os preços, também é importante que haja consulta na aplicação da qualquer medida.

Já há maior acessibilidade de insumos agrícolas por parte dos camponeses?

De facto, há, mas os preços estão altos. Visitei o Huambo, há lá um grito maior. Sou muito contra alguns dizeres de relatório. Ouvimos os relatórios, começamos a pensar que tudo anda bem, mas não. O importante é irmos ao encontro dos camponeses para saber se tudo anda bem e este é o conceito de direcção que as pessoas devem ter. Não há adubos. Estão muito caros. O saco está a custar 25 mil kwanzas. Os insumos são os tractores que foram distribuídos aos ex-militares. Mas a minha pergunta é, já formamos tractoristas? Para eu entregar o tractor, devo habilitar o camponês. Hoje o centro de mecanização de Viana deixou de existir. Quem irá reparar o tractor quando tiver uma avaria? Estamos preocupados com isso. Foram distribuídos muito recentemente tractores e verificamos que alguns já estão avariados. Volto a questionar, qual foi o rendimento? É preciso fazer um balanço. Já estamos a abraçar a mecanização dos bancos, é preciso criar escolas técnicas. Enquanto isso não for criado, teremos sérios problemas.

A distribuição das terras está acautelada?

Este problema das terras é um problema sério. Por exemplo, a expropriação das terras, como nas centralidades do Kilamba e Sequele. Aquilo tudo era associações e cooperativas de mandioca e jinguba em Luanda. Às vezes, vejo camponeses a gritar, coitados. Tem de haver uma defesa nisso, porque os mecanismos utilizados, para a expropriação de terras, não têm sido bons. Quando estou a usurpar uma coisa, acabo por deixar mágoas. O mecanismo deveria ser negociar com os camponeses. É preciso negociar com a pessoa encontrada no local. Com o surgimento do Prodesi, o número de cooperativas disparou. Desconfio – quero estar errado – que muitos, pela ânsia de querer ter dinheiro, decidiram criar cooperativas. A lei de terra deve ser revista o mais rapidamente possível e os legisladores devem olhar mais para os idosos que têm terras deixadas pelos seus ancestrais.

Mas a terra não é propriedade do Estado?

A terra é propriedade do Estado, mas o homem que faz a lei é o Estado. Concordo que a terra é do Estado. Mas enquanto Estado deve também defender aquele que conservou. Qual é o agradecimento do Estado? Isso é como tudo. Trago um casal de bois, crescem e tornam-se 7. Devo, no mínimo, dar um casal e eu levar os cinco, de forma a agradecer pelos cuidados. Tradicionalmente, algumas leis são aprovadas, mas que não têm aceitação no meio rural, porque não entendem. É por isso que nós, Unaca, vamos ao encontro do camponês. Infelizmente, também temos problemas. Estamos sem viaturas, não temos dinheiro e o Governo deve saber que esta é uma máquina para ajudar a solucionar problemas.

A distribuição dos títulos satisfaz a Unaca?

Satisfaz… é a lei. Tenho dito aos camponeses que a terra não é nossa. Estamos sujeitos a cumprir a lei. Mas o nosso apelo tem sido no sentido de a lei proteger aquelas pessoas que viveram muito tempo naquelas terras. Não se pode colocar um prédio e viver na garagem, não é correcto. É o mesmo que dizer: “tenho 50 hectares e aquele homem, que cuida da terra deste o tempo colonial, tem cinco hectares, o melhor seria dizer já que estou a trabalhar os meus hectares com as minhas máquinas, devo lavrar também as terras deste pacato cidadão para que não me roube milho”. Esta é uma consciência que temos de cultivar. Estamos a encontrar hoje são empresários oportunistas que, ao invés de ajudar, roubam terras dos pobres camponeses. Por isso, é preciso que antes de se passar o título, é necessário que se faça um trabalho de apuramento.

A subvenção dos combustíveis já é uma realidade?

A subvenção dos combustíveis não se faz sentir. A subvenção dos combustíveis, há muito que vem sendo motivo de debate e até aqui não se faz sentir, porque os preços dos combustíveis nas bombas continuam a ser uma ‘dor de cabeça’ dos camponeses. Agora que se aprovou a subvenção do adubo, é importante que se anexe já também a do combustível. Seria bom que o Executivo olhasse para estes elementos que são de extrema importância, que acabam por ser o fertilizante e o combustível.

Perfil

Vários anos de cooperativismo

Albano da Silva Lussati, de 66 anos, é natural do Huambo. Formado em Gestão Cooperativa e em Agronegócio pelo Instituto António Sérgio em Portugal, tem uma larga experiência de extensionista rural, está no movimento cooperativo no país desde 1978. É co-fundador da Cooperativa Agropecuária Centro Lufefena.