Júlio Bessa valida dívida de 731 milhões USD a favor de uma empresa 'desconhecida' na província
FUNDOS PÚBLICOS. Antigos e actuais governantes garantem nunca terem ouvido falar da Angoskimas. Dívida estava inicialmente calculada em quase 5 mil milhões de dólares e reporta-se à década de 1990.
Uma dívida de 439,552 mil milhões de kwanzas (mais de 731 milhões de dólares), reconhecida pelo governo do Cuando Cubango a favor da empresa Angoskimas, está na origem de várias denúncias chegadas a órgãos de comunicação social, em Luanda, sobre suspeitas de uma tentativa de desvio de fundos públicos.
Publicados, em primeira mão, na página de internet do jornal ‘Folha 8’, os documentos que suportam as denúncias estão assinados pelo governador do Cuando Cubango, Júlio Marcelino Vieira Bessa, e pelo secretário-geral do governo provincial, Edgar Xisto Vieira Catito, e declaram o reconhecimento da dívida referente “ao fornecimento de bens diversos e géneros alimentícios” ao governo local, relativos aos exercícios económicos de 1992,1993 e 1997.
Na acta de reconhecimento de dívida, elaborada na sequência de uma reunião entre o governo do Cuando Cubango e a empresa Angoskimas, ocorrida a 16 de Junho de 2021, as partes concluíram um apuramento 439.552.312.379,07 kwanzas, ao contrário do valor anteriormente calculado de 2.996.514.112.475 kwanzas (4,994 mil milhões de dólares), um corte de 85%. Em termos comparativos, os 4,994 mil milhões de dólares anteriores cuja validação é atribuída a “gestores anteriores” não especificados é praticamente o equivalente à capitalização total do Fundo Soberano de Angola, antes da sua descapitalização pelo Governo de João Loureço. E é superior em 529 milhões de dólares ao total do financiamento acordado com o Fundo Monetário Internacional, no âmbito do Programa de Financiamento Ampliado, fixado em 4,465 mil milhões de dólares.
A queda abrupta do valor da dívida é justificada, entretanto, nos documentos com “erros de cálculo” em algumas facturas dos exercícios de 1992 e 1997 de um produto identificado como ‘napa plástica’.
Contactados pelo Valor Económico, vários antigos gestores do Cuando Cubango não só garantiram desconhecer a dívida como asseguram não terem conhecimento de qualquer empresa designada Angoskimas que tenha fornecido serviços às autoridades locais em qualquer período, muito menos na década de 1990. “Angoskimas? Nunca ouvi falar na existência de tal empresa na província”, declara, estupefacto, um governante local, sublinhando que a dívida em questão nunca foi escrutinada pelos malogrados governadores Domingos Hungo e Jorge Biwango, como também não aconteceu nos mandatos de Manuel Dala, João Baptista Tchindandi, Eusébio de Brito Teixeira, Higino Carneiro e Ernesto Kiteculo. “Cabe ao máximo gestor da província avançar com os detalhes para dissipar dúvidas na medida em que, em sede das reuniões do governo local, se não estou equivocado, nunca nos foi prestada alguma informação relacionada com esta dívida, envolvendo somas avultadas”, detalha o governante.
Vários empresários originários do Cuando Cubango e que dominam a realidade empresarial da província desde a década de 1990 também juram nunca terem ouvido falar da Angoskimas. “Percebe-se, desde logo, que há qualquer coisa muito errada. Pelos valores iniciais referidos, ou seja, quase 5 mil milhões de dólares é quase uma loucura. E mesmo que baixados para 700 milhões de dólares não deixa de ser de loucos. Se nos anos de bonança ninguém fez negócios a este nível com o governo local, como é possível que, na década de 1990, uma única entidade tenha feito negócios deste tipo no Cuando Cubango? É um tremendo embuste”, caracteriza um empresário local.
Governante e empresários lembraram ainda o facto de a capital da província, Menongue, ter estado “sitiada” na primeira metade da década de 1990, o que fazia com que fosse “praticamente impossível” negócios à escala dos montantes acordados entre o governo local e a empresa.
CORRECÇÃO DA DÍVIDA FOI “ACTO PATRIÓTICO”
Confirmando a autenticidade do documento que foi “surripiado ilegalmente” da sua secretaria-geral, em comunicado enviado ao Valor Económico, o governo do Cuando Cubango confirma a autenticidade da dívida e explica que a validação do montante pelo governador Júlio Bessa ocorreu após a empresa Angoskimas ter solicitado uma declaração actualizada de dívida por orientação do Ministério das Finanças.
Na nota, a equipa de Júlio Bessa reafirma que, ao contrário dos 2,996 biliões de kwanzas reclamados pelo sócio-gerente da empresa, a secretaria-geral do governo local reduziu a dívida para 439,552 mil milhões de kwanzas, após ter compulsado o dossier que havia sido avaliado no passado, um exercício que o próprio executivo local classifica como “um acto de patriotismo e de boa gestão da coisa pública”. “Compulsados os dossiers, chegou-se à conclusão que esta dívida referente aos anos de 1992, 1993 e 1997, havia já sido validada no passado e se encontrava no Ministério das Finanças, seguindo correctamente os procedimentos constantes do Decreto Executivo n.º 57/18, de 20 de Novembro, combinado com o Despacho Interno n.º 59/20. De 08 de Maio, ambos sobre a sustentabilidade da dívida pública e atrasados”, escreve o governo do Cuando Cubango, prosseguindo que o dossier, “depois de corrigido e expurgado o montante a mais, foi novamente remetido à Direcção da Dívida Pública, desta vez validada pelo actual governador provincial”. “Com este acto de rigor contabilístico, o governo provincial do Cuando Cubango poupou aos cofres do Estado, isto é, do erário, o pagamento indevido do montante de kz 2.556.961.800.096 (dois triliões, quinhentos e cinquenta e seis biliões, novecentos e sessenta e um milhões, oitocentos mil e noventa e seis kwanzas”, insiste, usando, nos números, a nomenclatura americana.
O Valor Económico contactou igualmente o Ministério das Finanças que, depois de te garantido reagir com esclarecimentos, não respondeu até ao fecho da edição.
EMPRESA SÓ EXISTE DESDE 1997
Documentos consultados por este jornal indicam que a empresa Angoskimas – Sociedade de Corte e Transformação de Madeira, Limitada, apesar de reclamar alegadas dívidas de 1992 e 1993, foi criada apenas em 3 de Julho de 1997. Com sede na RF-Huambo e capital social de 100 milhões de kwanzas, a empresa foi constituída por José Maria Zeferino que outorgou 80% do capital em seu nome e 20% em nome do seu filho Angélico José Vandra Quiel, na altura menor de idade.
Questionado, o governo do Cuando Cubango não se pronunciou, até ao fecho da edição, sobre este facto concreto.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...