ANGOLA GROWING
DAVID MANUEL PIRES, DIRECTOR DA EXTRULIDER

“Vejo muita gente a comer nos contentores de lixo; se nada mudar, vejo um futuro muito complicado”

27 Oct. 2021 Grande Entrevista

Director-geral da companhia angolana de alumínio Extrulider entende que, se o Estado quer promover o investimento industrial, tem de aliviar a burocracia e facilitar os licenciamentos. Mostra-se apreensivo com o futuro de Angola e alerta para a possibilidade de haver mais pessoas carenciadas se não houver políticas económicas com visão para o futuro. E prevê uma instabilidade social, que já demonstra sinais

“Vejo muita gente a comer nos contentores de lixo; se nada mudar, vejo um futuro muito complicado”
D.R

Que projecções tem para a Extrulíder?

Abastecer o mercado nacional. Não quer dizer que não estejamos também a dar passos no sentido de exportar. Estamos a fazer isso este ano. Estamos mais incisivos. Mas o principal objectivo é abastecer o mercado nacional, porque tudo o que era consumido em Angola era importado. Contudo, desde que a Extrulider começou a trabalhar, isso já não é uma realidade. Já merecemos uma parte do mercado.

O nível de produção já o satisfaz?

Não. 2017 foi o ano de arranque e 2018 foi o ano em que estávamos com um nível de produção agradável. Depois, a crise cambial, a desvalorização do kwanza, o agravar da crise económica, a crise das divisas provocaram também um arrefecimento da actividade económica. Depois, com a recuperação do acesso às divisas, as empresas voltaram a importar alguma coisa. Desde que começámos com a fusão que estamos a reaproveitar os nossos próprios metais e também as sucatas. O cenário está um pouco melhor. Mas, ainda assim, a empresa só está a trabalhar a um turno. Indústrias desta dimensão trabalham em elaboração contínua em qualquer país, seja na China, em Portugal ou em Espanha. Trabalham 24/24 horas e só param no domingo. Nunca trabalhámos por turnos porque não temos demanda suficiente. Ainda temos muita capacidade instalada para ocupar. A nossa produção pode ser muito superior, mas precisamos de encomendas..

E a conjuntura económica actual não ajuda...

Não ajuda. Os níveis de investimento e de execução são fracos. Aquilo que é favorável para nós, eventualmente são os problemas logísticos que existem a nível mundial provocados pela pandemia, em que, para as empresas, é mais cómodo comprar localmente, em algumas situações, do que importar. Temos estado a ganhar no mercado com essa vantagem. Produzimos localmente com tempo de resposta rápido. Em vez de esperar por dois ou três meses por perfil, vindo de Europa ou da Ásia, entregamos em uma semana ou duas. Em termos logísticos, facilitamos muito a vida aos nossos clientes, mas há também a parte das divisas. Trabalhamos em kwanzas, estamos em Angola, e temos vindo a ganhar terreno. Por outro lado, também estamos a oferecer cada vez mais produto diversificado e a pensar em começar a exportar para Portugal.

Essa pretensão é para breve?

É para começar já. Provavelmente, já não conseguiremos este ano, mas no início de 2022. Temos possibilidades de exportar quer perfil, quer eventualmente bileiro. O alumínio é o metal que está a ter um movimento de especulação brutal a nível mundial. Há até alguma escassez. Com o preço ainda mais elevado, torna-se apetecível até para a exportação. E isto permitirá até que um país como Angola possa receber divisas, provenientes da produção local, também na área do alumínio como acontece em Portugal. Também queremos gerar as nossas próprias divisas, aumentar a indústria local para exportar. Temos alguns contactos com países vizinhos, da SADC, mas exportar para a Europa é também uma realidade que está em cima da mesa e que tem grandes probabilidade de acontecer.

Quais são esses países?

Estamos com alguns projectos, essencialmente, da República Democrática do Congo. Temos até situações mais ao Norte que podem vir a acontecer como são os casos dos Camarões e do Chade, com os quais estamos em fase avançada de negociação. É uma questão de oportunidade.

O mercado nacional é favorável na aquisição de matéria-prima?

Tem alguns problemas. Ou seja, o alumínio, a própria sucata, os desperdícios, os resíduos da actividade do alumínio é matéria escassa. Felizmente, a exportação da sucata está proibida, porque temos capacidade de absorver toda a sucata de alumínio do mercado, transformá-la e introduzi-la no nosso mercado. Mas o que me deixa, de alguma forma, desiludido é que se permite a exportação de lingotes – uma matéria-prima útil à nossa actividade. Há diversas empresas que fazem recolhas de sucatas e produzem lingotes para exportar. Se permitem a exportação de lingotes, da sucata feita e produzida a partir da sucata que existe no mercado angolano, vão obrigar a Extrulider a exportar lingotes. Corremos o risco de, dentro de um mês ou dois, não termos sucatas para alimentar o nosso forno.

Qual é a solução?

A solução é impedir que se exporte ou se estabeleça quota máxima de exportação de lingotes. Temos capacidade de comprar toda a sucata produzida em Angola e de a transformar. Quanto mais sucata e lingote produzirmos, ou conseguimos comprar localmente, menor será a nossa necessidade de importar lingotes. É um tema difícil. Não se pode somente proteger uma empresa. O lingote é uma matéria-prima e nós podemos acrescentar-lhe valor, transformando-o e daí produzirmos perfis para abastecer todo o sector de alumínio em Angola. Acrescentamos valor, diminuímos as importações, aumentamos actividade e o emprego. Se tiver de parar o forno, vou ter de dispensar todos os funcionários que andámos a contratar nos últimos três meses, para essa nova área. Queria garantir um abastecimento de sucata contínuo. As outras empresas podem trabalhar, transformar sucatas, produzir lingotes e nós estamos disponíveis para os comprar.

O mercado angolano já consegue atender à procura?

Não sei exactamente, mas sei que o negócio das sucatas tem uma grande envolvência local. Não tenho noção e não sei se o Ministério da Indústria terá noção das quantidades que são produzidas de lingotes ou que são recolhidas de sucatas.

Numa entrevista recente, disse que reduziu a produção para 10%. Pode precisar os reais motivos?

Foi um mal-entendido. Não reduzimos a produção a 10%. Estamos a utilizar somente 10% da nossa capacidade instalada. Portanto, volvidos quase três meses, já estamos a ocupar um pouquinho mais. Num cenário de três turnos, podemos produzir 600 toneladas de alumínio por mês, mas, a trabalhar somente num turno, conseguimos produzir somente 200 toneladas por mês. Quando tive a entrevista, disse que estávamos a produzir 20 a 30 toneladas por mês, que era muito pouco. Agora já produzimos mais. O volume do mês passado foi melhor e o deste mês vai ser ainda melhor. Já duplicámos esses valores, mas ainda estamos longe se pensarmos no segundo turno.

Primeiro, a actividade económica não estava favorável e, segundo, continua a haver importação de materiais provenientes da China. Existem rumores que dão conta que o Executivo pensa em criar uma comissão anti-dumping para estudar esse fenómeno. Acredito que muito metal da China não está de acordo com as cotações internacionais. Pergunto-me como é possível fazer determinados preços. Poderá ser uma questão associada ao dumping. Não sei e não posso provar. Mas as autoridades que investiguem. Mas a nossa concorrência é, de facto, a importação no mercado asiático e o problema com o nível fraco da construção. Esperamos que venha a recuperar.

Tinha em curso a construção de um forno…

O forno é imprescindível, porque, num processo de extrusão, temos desperdício, resíduos e alguns materiais. Se não tivéssemos um forno para derreter, introduzir o bileiro e reintroduzir no processo de extrusão, teríamos custos de fazer essas sucatas, à semelhança de todas as sucatas do mercado. Vimos em tudo isso uma oportunidade, ou seja, instalamos um forno para refundir os nossos desperdícios e resíduos da extrusão, ao mesmo tempo dar destino à sucata que existe no mercado – também temos uma componente ambiental. E, com isso, conseguimos abastecer uma parte das nossas necessidades no mercado local, dispensando a importação de metal. 

Qual é a principal ameaça ao sector?

Se estivesse na Europa, responderia que a principal ameaça é um produto que tem ganho terreno no mercado, o PVC, que substitui, de alguma forma, o alumínio no processo de fabrico de caixilharia de alumínio. Em África, em Angola, pelo clima que temos cá, não me parece que seja um produto substituto, de alguma forma. O PVC tem muitas limitações. Mesmo na Europa, está a ser banido por algumas entidades públicas, especialmente para edifícios públicos, devido à segurança em caso de incêndios e das substâncias nocivas do PVC. O alumínio vai continuar a ser a principal solução para o fabrico de caixilharia.

Que incentivos espera do Governo?

Em matéria fiscal, nunca tivemos qualquer tipo de ajuda. Estamos a investir há vários anos e a carga fiscal, sobretudo em tributação de rendimento, mais a carga de licenças, que é necessário pagar para instalar uma indústria, a burocracia e o custo de licenciamento são absolutamente incríveis. O Estado, se quer promover investimento industrial a sério, tem de agilizar toda essa burocracia e facilitar o licenciamento. São vários ministérios a actuar, todos com as suas regras, exigências e requisitos. O Estado poderia ser forte nessa matéria. Outro incentivo, para promover a indústria e o emprego, seria dar algum apoio às empresas que pretendem exportar. O Estado tem tendência de se preocupar só com o petróleo, porque é daí que vêm as divisas. Mas Angola tem um potencial incrível para obter divisas, criar empregos, indústrias nas mais diversas matérias e exportar para os países vizinhos. Deve-se criar medidas de apoio às empresas para que possam ser mais competitivas no exterior.

Que tipo de medidas?

Isenções de impostos, por exemplo. Uma outra grande lacuna tem que ver com a formação académica. Mais de 95% do nosso pessoal é nacional. Temos poucos expatriados, mas a verdade é que recebemos aqui técnicos qualificados nas universidades angolanas, engenheiros, mecânicos, electrotécnicos e engenharia industrial, mas a formação, comparada à da Europa, tem uma diferença abismal. O Executivo tem de olhar de outra forma para a educação. Para criar mais qualidade no ensino e assim ter gente formada, mas mais bem capacitada para o mercado de trabalho.

Como vê Angola?

Estou muito preocupado e apreensivo com o futuro de Angola, em várias vertentes.

Qual é a mais gritante?

A mais gritante é a questão social. Vejo um país a crescer cerca de um a dois milhões de habitantes por ano. Daqui a pouco, mais de 10 anos, são 50 milhões de habitantes. Estou em Angola há cerca de quatro anos e meio e, desde o ano passado, essencialmente, vejo algo a acontecer que me revolta bastante. Muita gente a comer nos contentores de lixo. Quando cheguei, não via isso. Em todos os contentores de lixo, há gente a tentar comer e sobreviver. É impossível ir ao supermercado sem ver gente com fome. Se nada mudar, vejo um futuro muito complicado. Se hoje somos mais de 30 milhões de habitantes e há gente a passar fome. Se não se adoptarem medidas no sentido de promover investimento em indústrias para criar empregos, quando forem 50 milhões de habitantes, de onde é que sairá o emprego para tanta gente sobreviver? Esse é o maior problema de Angola. Se juntarmos isso a uma instabilidade que se pode criar a nível social…

Instabilidade social…

Há pessoas desagradadas com o ambiente político, porque nada muda, as condições estão cada vez mais deterioradas e podemos ter grandes problemas sociais. Os prejudicados não serão só os estrangeiros, os expatriados. Há relatos de colegas angolanos que são assaltados também em casa e no táxi. O crime está a aumentar de forma galopante e, se nada fizerem, Angola vai ter um problema social gravíssimo, a curto prazo. Nem é preciso falar muito mais do que cinco a 10 anos. A criação de emprego não vai acompanhar o aumento da população e isso pode ser dramático. É importante que o Executivo, de uma vez por todas, pare de alimentar a máquina importadora. Porque sabemos muito bem como é que funciona o processo de importação, quem são as empresas que importam. Não se dá primazia ao produto local.

Além do preço e da escassez da oferta local, a importação muitas vezes está associada à garantia de maior qualidade. Concorda?

O que produzimos aqui é igual ao que se produz em Portugal. Até estamos a enviar os nossos produtos para Portugal. Temos qualidade. Não há necessidade de se importar o volume de alumínio que se importa. No agro-alimentar, não consigo perceber como é que se importam laranjas e maçãs, para se venderem a dois mil kwanzas o quilo. Vão vender a quem? Sinto-me felizardo por estar em Angola e poder comer ananás, mamão e manga, frutas que há aqui em abundância, a preços muito mais baixos do que a importada e com uma qualidade incrível. Importar fruta porque se Angola é um país riquíssimo? Angola tem de olhar para a parte industrial e agro-alimentar para dar emprego. Se não, como é que se vai sustentar toda a gente que está aí e toda a população que vai crescer para os 50 milhões? Para onde é que esse país vai? Vão estar todos ao pé da estrada, do supermercado ou das paragens a pedir?

E sobre os monopólios?

Se calhar é capaz de haver 20 ou 30 grandes importadores de Angola que devem concentrar praticamente todos os negócios. Sabemos como são os negócios. Há negócios aqui, instalados há anos, que têm como sócios generais e há esses interesses. Quando se criam medidas para proteger a importação, a produção nacional nunca vai vingar. A Extrulider tem sobrevivido e quer manter-se no mercado, independentemente dos cenários. Diz-se que o material produzido em Angola é mais caro do que o produzido em Portugal. Mas o preço é de Angola, porque ainda se tem as taxas aduaneiras e os custos dos transportes… Tem de haver vontade política para definir regras estruturantes para apoiar definitivamente e incentivar o aumento de indústria local.

Há produção local para atender à exigência do mercado?

Há cada vez mais indústrias de construção civil, mas tem de se apoiar, se não está condenada ao fracasso. Quando começámos a produzir perfis de alumínio, foi o ano em que a pauta aduaneira estava a rondar, para o direito alfandegário zero, para a importação dos perfis. Andámos dois e três anos a investir e a montar uma fábrica de alumínio em Angola e, quando começámos a produzir perfis, determinam a isenção. Isso é um exemplo de como o Executivo não protege as empresas. Ou seja, onde há produção local, deve-se criar medidas de protecção. E, de alguma forma, desincentivar a importação. Não sou a favor de se criarem monopólios. Não estamos num país com regras rígidas que se diga taxativamente que é proibido importar. Pode ser permitido importar com uma quota mais baixa ou então pagam-se direitos alfandegários. Se existe um direito alfandegário, mas, mesmo assim, ainda são atribuídas isenções, como é que se apoia a indústria local, dando tiro nos pés?

Genericamente, é uma fase difícil para os investidores...

Os investidores têm de ser muito corajosos e ter muita fé, quando o Governo não apoia a produção local. Criaram o programa Prodesi para substituir as importações por produção local e o alumínio nem sequer foi incluído. 

Se houvesse oportunidade para investir noutra área, em que sector apostaria?

Em Angola, os sectores que têm maior potencial são os da pecuária e agro-alimentar. Há 30 milhões de pessoas para alimentar. E, daqui a alguns anos, vão ser 50. Angola tem de começar por baixo. Tem de definir políticas económicas com visão para o futuro.

PERFIL

Em Angola há seis anos

David Manuel Pires é licenciado em Gestão de Empresas, pelo Instituto Politécnico de Leiria, em Portugal. Filho de emigrantes, nasceu em Paris, França. Trabalha na produção de extrusão de alumínio há 23 anos. Chegou a Angola em 2017, para dar continuidade à Extrulider, um projecto cujo mentor é Tomás Neta.