Manuel Azevedo, presidente da Associação de Pescadores de Luanda (APASIL)

"Há associados que não têm bilhete de identidade nem plano de negócios"

24 Nov. 2021 Grande Entrevista

Líder da Associação de Pescadores de Luanda (Apasil) olha para o sector com uma perspectiva positiva, mas critica os empresários que, desprovidos de planos de negócio, querem ter acesso a financiamentos. E estende as críticas a quem já beneficiou de créditos, mas ainda não os devolveu e, ainda assim, quer mais. “O tempo de ir buscar dinheiro à banca e fazer a festa acabou”, avisa o líder associativo, agastado com “os empresários de ordem de saque” com mentalidade antiga que, acrescenta ele, "estão na origem do conflito geracional".

 

"Há associados que não têm bilhete de identidade nem plano de negócios"

 

Como está o sector das Pescas depois da fusão com o pelouro da Agricultura?

Faço uma avaliação muito positiva, porque, nos últimos tempos, há uma boa interacção com o Ministério. Parámos de receber queixas dos nossos associados relativamente à burocracia, ou seja, alguns entraves que eram comuns, como, por exemplo, o licenciamento das embarcações e as autorizações de carga e descarga.

E qual é o volume de capturas?

Tanto a nível da pesca artesanal como da industrial, estamos com capturas acima da média. Significa que cada empresa tem quotas atribuídas que, muitas vezes, não eram alcançadas. Mas já atingem as parcelas estabelecidas, inclusive alguns armadores até solicitam o acréscimo.

 Essas quotas não podem ser quantificadas?

Tacitamente, não tenho os números e estaria a errar avançando um dado, mas desde o terceiro trimestre que as capturas aumentaram significativamente.

Mas há quem se queixe da pirataria no alto mar...

Não estamos a ver nada, porque não estamos a ser molestados. Ainda assim, remeto a resposta aos órgãos de defesa e segurança. Nós controlamos a produção, ou seja, a captura e a transformação. Logo, se fôssemos afectados, estaríamos a gritar.

 "TEMOS MUITOS CÉPTICOS"

Nos mercados, os vendedores falam da escassez da sardinha e do carapau. O que se passa?

Não podemos só lutar com o carapau e a sardinha. O nosso mar é vasto e de múltiplas espécies e todas elas têm um período de afloração. Contudo, o Instituto de Investigação Pesqueira (IIP) deve aferir com dados o que se está a passar. Temos muitos cépticos. Assim, colocar a mão na água e dizer que a temperatura da água aumentou ou baixou e, por isso, há mais ou menos peixe, não conta. É preciso apurar com dados. Mas, se for para os pontos de descarga, há-de ver que tem havido, ao nível da pesca artesanal, a chamada ‘tiba’. Quando há muito peixe, a lambula chega a ser comercializada a 10 kwanzas a unidade para não ser deitada fora. Tivemos também muitos tunídeos (família de peixes da qual integra o atum) em Luanda. Neste momento, as câmaras frigoríficas estão cheias.

Então não se justificam os períodos de veda e importação de pescado?

Justificam-se, por causa do período de reprodução. A pesca tem de ter equilíbrios e estes são estabelecidos pelo IIP. Quando começa a aparecer a sardinha, atrás dela vêm outros peixes predadores como, por exemplo, o tubarão que também é comestível. O nosso mar não é só de sardinha e carapau. As pessoas acostumaram-se muito com o carapau e a sardinha e muitos afirmam que são alimentos do povo ou dos pobres, mas temos outras espécies também muito saborosas, embora a sardinha seja um dos peixes mais completos resultando daí a sua utilização na culinária e na ração animal.

O sector está longe de contribuir para a riqueza nacional…

Há vozes que há mais de 30 anos reclamam e têm a sua razão. É preciso termos em atenção a empregabilidade e a situação económica. Temos mais de 1.600 quilómetros de costa, então há que fazer riqueza com ela. Não é só com o carapau que podemos fazer riqueza, temos espécies de fundo, como o pargo, a corvina, o cachucho, o atum do alto mar em que temos uma quota muito alta na nossa unidade de gestão. O que é preciso são investimentos para a captura desses recursos marinhos. De resto, Deus quando fez o mar e beneficiou Angola não disse que devemos comer sozinhos, mas também com os outros. Por isso, temos de exportar.

É possível exportar quando há um défice no consumo interno?

Temos de exportar. Isso faz parte do comércio livre. Não é ainda uma exportação desejada, porque existe proibição nas medidas de gestão. Como existe a proibição da exportação do carapau e da sardinha, mas, como é óbvio, antes de temos de satisfazer a nossa casa. No entanto, no mercado encontramos dificuldades, porque internamente a população perdeu poder de compra e o empresário não vai esperar que o cidadão tenha dinheiro. O empresário deve procurar outro mercado. O nosso peixe é bom. Se o nosso povo não tem poder de compra, vamos a outras paragens onde podemos ganhar dinheiro. Os dólares estão aí ao lado na RDC, então o empresário deve encontrar caminhos que o levem a esse mercado para vender e captar divisas que fazem falta à nossa economia.

Há relatos que dão conta de dificuldades na movimentação dessas divisas devido às regras da banca…

Não temos nenhum associado que exportou e depois teve problemas de manusear o dinheiro na banca. Se exportou, tem de declarar e meter o dinheiro no país. Pertence à sua empresa e saberá o que fazer dele. Portanto, não temos constrangimentos. É boato que os bancos não têm capacidade de resposta, quando se trata da movimentação de divisas. Há indivíduos que só querem desestabilizar.

 Mas os associados têm capacidade para inundar o mercado?

Não gostaria de falar só dos associados, mas da direcção das pescas que tem esses dados. Visite as câmaras frigoríficas. Estão abarrotadas de pescado.

 "O PEIXE NUNCA AUMENTOU DE PREÇO"

 Se há muito peixe em stock em Luanda, porque é que os preços são incomportáveis?

O peixe está caro? Não, nunca aumentou de preço. Pelo contrário, da economia planificada a esta, de livre concorrência, baixou. Antigamente, vendíamos o quilograma a 2,2 dólares e depois a 5,3 dólares. Se o câmbio estava a 10 e agora está a 650 kwanzas, então subiu ou desceu?

 O que acha?

O peixe é uma 'commodity' cotada no mercado internacional, porque os meios para a captura aqui praticamente não existem, exceptuado madeira, pregos e alguma tinta. Tudo o resto é importado. Isso significa que vamos usar divisas. Se assim é, o preço do pescado é tabelado em dólares.

Não é possível inverter esse quadro?

Para mudar temos de ter empresas que produzam barcos e artefactos de pesca, porque, ao importar, temos um determinado valor e para ter lucro e conseguir sobreviver tenho de encontrar um preço. Aliás, nós compramos o peixe no mar, ou seja, pagamos uma quota ao Ministério da Agricultura e Pescas e temos de encontrar os meios para as capturas que são fixados em  dólares. Outro problema é que a pesca industrial compra o litro de combustível a 450 kwanzas.

Daí a necessidade da subvenção?

Uma coisa é falar de subvenção, ou seja, do subsídio aos combustíveis. Refiro-me ao Decreto 84/19 de 21 de Março para a actividade aquícola e pesqueira. Outra coisa é a operacionalização que não é uma realidade. Estou a falar da pesca industrial que não consegue atracar o navio e abastecer por meio de tambores. E o mínimo para um navio destes são 30 mil litros. Para comprar esse combustível dos 'bunkers' da Sonangol, ainda é preciso pagar serviços: o agente de navegação que trata a documentação e o barco petroleiro que vai abastecer o nosso barco na baía. O litro no somatório acabará por custar 550 kwanzas. Portanto, esses custos também se vão reflectir no consumidor final.

 O sector acompanhou o crescimento demográfico?

Sair da economia planificada para a de mercado é um processo. Cada tempo é um tempo e cada política também. A população não é a mesma da época colonial. Hoje, somos mais de 30 milhões de habitantes. Antigamente, lançava-se a rede na baía e apanhava-se ‘n’ espécies. Nessa altura, não se falava de alterações climáticas ou do efeito de estufa. Tudo isso faz com que o peixe vá mais para Sul ou para Norte. Por isso, a tecnologia também evoluiu. Surgiram várias empresas e são estas que devem adaptar as suas estratégias para melhor capturar, transformar, comercializar ou exportar e o Estado deve aparecer apenas como um regulador.

 É esta equação que não se está a acertar?

Os 'players' somos nós, os empresários. Porém, muitos eram antigos funcionários do Ministério das Pescas e encarnaram a economia planificada, por isso, são pouco actuantes. Os mais velhos comunistas ainda continuam a pensar que são melhores. Mas estão no ramo empresarial. E não é do dia para a noite que se vai mudar a cabeça, da mentalidade planificada para a empresarial. Naquela época, recebiam tudo de graça, chegavam embarcações e eram beneficiados sem esforço. Hoje, ao precisarem de renovar a frota e as instalações, têm de ir à banca e logo para a concorrência. Está difícil. Não estão preparados. Por isso, há um conflito muito grande de gerações. Já se fez a ruptura, a nova geração é que está a tentar mudar o curso das coisas contra todas as críticas possíveis. É o problema geracional. Também sou comunista, mas, na minha caminhada como gestor, estou a adaptar o que é bom desse sistema e agregar ao novo modelo capitalista.

 Há governantes no negócio?

Não, o sector tem ordem. Estou a falar de antigos funcionários do Ministério. São empresários de ordem de saque. Digo-lhe mais: enquanto os outros perderam tempo nas discotecas e viagens de luxo, eu passei a investigar como pescar, como se planta uma mangueira e se cultiva o milho.

 O que diz sobre os arrastões que supostamente pescam na costa e, muitas vezes, destroem as artes dos pescadores artesanais?

Reuni recentemente com cooperativas. Não temos uma informação oficial. Uma das cooperativas, que esteve connosco, é a do Buraco e Cabo Ledo, onde supostamente têm ocorrido essas violações. Há cerca de um mês, recebemos alguma informação. Se são arrastões são nossos associados. Logo, precisamos de dados palpáveis. Hoje cada um nós tem um telemóvel que tira fotografias. É preciso registar a hora, a matrícula e a dimensão desses arrastões.

 E sobre os arrastões no Namibe?

É preciso partir do pressuposto de que todo o barco de pesca de arrasto é licenciado pelo Ministério. Logo, não exerce pesca ilegal. Aliás, por isso, é que temos quotas de capturas e descarga. Mas devemos saber que todo o tipo de pesca lesa o ecossistema. É preciso equilíbrio. Daí as medidas de gestão.

Mas o governador Archer Mangueira fala em arrastões que estão a deixar o mar sem peixe...

Todo o barco de arrasto no nosso mar está licenciado. Se não, ou se são estrangeiros que o fazem, então os órgãos de fiscalização marinha devem actuar, porque isso já não é da nossa competência.

No Buraco, em Luanda, além da perda de artes há também a lamentar vidas de pescadores.

O que ocorre é que o pessoal da pesca artesanal, muitas vezes, quando chega aquele momento em que o peixe vai mais a Norte ou a Sul, acompanha e acaba por alcançar áreas onde pescam os arrastões. Quando é de noite, e, por vezes, sem iluminação, podem ocorrer acidentes graves. A pesca artesanal vai até a duas milhas e, por vezes, excede esse limite. É claro que também tem havido atropelos da parte de alguns capitães para a pesca industrial que deve ser feita num limite de oito milhas, mas são vistos na zona da pesca semi-industrial e artesanal de quatro milhas.

 E quando assim acontece…

Pagam multas pesadas. Mas, de todas as formas, temos de ser mais sérios. O pessoal está habituado a acusar. Não vamos dizer que não tem havido violações. No mar, os nossos limites são imaginários. É na perseguição aos cardumes que ocorrem essas situações, porque a maior parte dos capitães ganha em função da captura. É como um caçador e daí esses atropelos que, no entanto, não são muito frequentes. E as ocorrências são mais da orla de Luanda para baixo, onde, a três milhas da costa, já há uma grande profundidade na ordem dos 800 metros. A Norte, os barcos de pesca industrial não têm hipóteses de interferir na zona de pesca artesanal, porque há pouca profundidade e podem encalhar. Portanto, ali, o mar é raso. É essa caracterização da costa que deve servir de base de análise do problema.

 Como acautelar essas interferências?

A consciência é o primeiro fiscal. Por isso, apelamos aos nossos capitães e empresários no sentido de que precisamos de peixe para hoje e amanhã, para as gerações vindouras.

O nosso mar é bem gerido?

Com o mar tão vasto, quais são os benefícios? Temos de ter em conta a gestão dos recursos marinhos, mas sobretudo a gestão económica. É preciso olhar para a grande empregabilidade. O sector pesqueiro tem, na forma primária, a captura, depois entram os marinheiros, os serralheiros, os engenheiros mecânicos, os electricistas, os estivadores, os camionistas, os ajudantes, os armazenistas de frio, etc. Portanto, este sector a trabalhar em pleno contribui grandemente para a redução do desemprego.

 Fala de empregabilidade num cenário em que os engenheiros navais tendem a desaparecer...

Estamos em vias de atingir o essencial. Temos na ilha de Luanda um estaleiro com  cerca de 50 profissionais que produzem pequenas embarcações para a pesca artesanal. Conseguem fabricar 10 chatas por dia. Além disso, temos outros construtores de barcos para a pesca semi-industrial e industrial em Benguela, em Cabinda (barcos de aço e madeira), no Porto Amboim e no Soyo.

 Com quantos associados?

A nível da pesca artesanal, são 72 cooperativas, na ordem de 12 indivíduos por cooperativa. Na pesca industrial, são 58 empresas que integram o grupo de pesca dimersal (de fundo) e o grupo de crustáceos e o grupo do carapau e da sardinha. 

UM 'CALCANHAR DE AQUILES'

 A pesca nas baías não consta das preocupações?

O peixe, nas baías, vem reproduzir. A lei é clara quanto a isso e proíbe.

Mas pesca-se?

Não é muito frequente. Quem o faz é por uma questão de subsistência.

Não é um atentado à saúde pescar aqui onde se descarregam esgotos?

As zonas de descarga em Luanda são um 'calcanhar de Aquiles' por falta de condições de higiene, de segurança e de fiscalização. Já fizemos algumas propostas para que essas descargas sejam feitas em porto cais e infra-estruturas de suporte como a própria sanidade marítima, a AGT e a fiscalização. Estas autoridades estão na Mabunda, mas não têm condições de trabalho. O Estado está a perder receitas. No mercado do Mundial, também a situação não é das melhores. O Governo deve criar condições de trabalho para acomodar as entidades que interagem no sector e ir à busca de impostos.

 Quem pesca também comercializa. É confuso, não?

Estamos a trabalhar no sentido de termos a cadeia a funcionar. Começamos a orientar a formalização das cooperativas. Quem tiver licença de pesca, captura e passa assim a ser fornecedor de pescado a quem processa e distribui, ou exporta. É esta forma organizacional que adoptámos.

 Os armadores também se queixam da falta de financiamento...

Como é que o banco vai dar dinheiro se não estamos organizados? O tempo de ir à banca buscar dinheiro e fazer a festa acabou. O armador que tiver projecto e que encontre dificuldades de financiamento pode recorrer à associação para receber ajuda. Inclusive temos 37 associados da pesca artesanal que já receberam dinheiro do BDA. Na pesca industrial, 27 empresas já foram contempladas através do Fada, portanto, só organizados é que o dinheiro aparece. A maka é que até há associados que não têm bilhete de identidade e nem plano de negócio. Como é que podem ser financiados? Além disso, há muitos que já beneficiaram e ainda não devolveram o crédito. Mas o nosso alerta é: as empresas que não tiverem estratégia estão condenadas a sucumbir."Há associados que não têm bilhete de identidade nem plano de negócios"

 PERFIL

UM MILITAR NAS PESCAS 

Armador de pesca de fundo, Manuel Azevedo substituiu no cargo Arménio Selvagem. A Apasil, que dirige, actua da Barra do Dande à Quiçama, mas, a nível da pesca industrial, responde por toda a costa. Além da pesca, está também ligado à agricultura com uma fazenda na Quibala (Cuanza-Sul) onde produz cereais e frutas. Militar de carreira, formado em engenharia em Cuba, depois de ter frequentado a pré-academia no Huambo, há 10 anos que está de licença e virou empresário. Manuel Azevedo esteve na génese da criação da polícia anti-motim e de fiscalização. É um dos seis vice-coordenadores do GTE para agropecuária, pescas e agricultura. A este respeito, garante que já se nota muita produção, mas defende a melhoria da qualidade para a inversão das importações.