“A Lei da Probidade Pública deveria sofrer uma revisão”
O líder dos advogados de Angola afirma que a lei em vigor não sanciona as condutas de improbidade e defende, por isso, a criação “urgente” de uma legislação que seja capaz de combater os actuais altos níveis de corrupção, mas ajustada à realidade angolana. Critica Portugal por não respeitar acordos, no ‘caso Manuel Vicente’; promete implementar um exame nacional para aferir a qualidade dos futuros advogados, e quer criar uma caixa de previdência social para a classe.
Está há sensivelmente um mês à frente da Ordem dos Advogados de Angola (OAA). Quais são os principais desafios a atingir durante o seu mandato?
A Ordem existe há 21 anos e, durante esse período, já realizou oito eleições que são realizadas de três em três anos. Sou o quinto bastonário. Portanto, conhecemos a casa. Fazemos parte dela desde a sua fundação. E temos um lema de campanha, que é ‘Advogado valorizado, cidadão respeitado’. Portanto, os principais desafios passam exactamente pela dignificação da profissão. Pretendemos uma melhoria na advocacia. Vamos fazer uma revisão do modelo de estágio de acesso à advocacia. Vamos implementar um exame nacional. Ou seja, para se ser advogado em Angola, terá de se passar por este exame nacional da Ordem dos Advogados.
O que pretende, de facto, com a implementação desse exame?
Este exame será uma espécie de aferição das competências para se ser ou não advogado. Pretendemos continuar com a defesa das prerrogativas dos advogados que passam pelas garantias e pelos direitos que os advogados têm consagrados, não só na Constituição, mas também na legislação da advocacia. Pretendemos melhorar a condição social dos advogados, com a criação de uma caixa de previdência social dos advogados. Resumidamente, essas serão as principais linhas de força que temos para este mandato que começa em 2018 e estende-se até 2020.
Estes desafios que elencou são os grandes problemas com que se confrontam actualmente os advogados, em Angola?
Não! Agregaria a estes desafios os verdadeiros problemas que os advogados têm. O primeiro dos quais é o respeito das prerrogativas dos advogados que, no fundo, têm que ver com a dignificação da profissão da advocacia. São essas prerrogativas que, principalmente, os órgãos do Estado têm de respeitar para que o advogado possa exercitar o direito de defesa do cidadão e das empresas.
O novo Governo, liderado pelo Presidente João Lourenço, assumiu como um dos principais desafios o combate à corrupção. Como advogado, qual é a avaliação que faz sobre a actual Lei da Probidade Pública, que é um dos mecanismos para que se atinja esse desiderato?
A Lei da Probidade Pública deveria, com brevidade, sofrer uma revisão pontual. Aliás, as várias leis que foram pensadas e aprovadas antes da entrada em vigor da Constituição deveriam estar também sujeitas a um procedimento semelhante. A Lei da Probidade Pública é uma lei que não tem os requisitos que, para o caso do nosso ordenamento jurídico, se impõem. Por exemplo, se um servidor público, no final do seu mandato, levar para casa os bens do Estado, essa lei não diz quais são as consequências. Só por aí, justifica-se uma revisão dessa Lei da Probidade Pública, porque a mesma não sanciona, de forma criminal, os actos de improbidade. Depois, a lei fala em abuso do poder e não existe, no ordenamento jurídico-penal angolano, nenhuma lei a tipificar e a penalizar o que é o abuso do poder. Em direito penal, abuso da autoridade e abuso de poder não é a mesma coisa. Em direito penal, não pode existir um crime sem uma lei anterior vir dizer que aquele comportamento é um crime. Por isso é que se diz “Nullum crimen sine lege”, ou seja “não há crimes sem lei”. Portanto, a lei da probidade não sanciona, não tem uma penalidade para as condutas de improbidade. Daí o nosso ponto de vista de que, devido aos altos índices de corrupção instalados no país, a solução legislativa a adoptar nunca poderia ser uma cópia de outras leis, mas sim uma lei ajustada ao combate à corrupção com o circunstancialismo do nosso próprio país.
Outra questão incontornável envolve a justiça portuguesa e o antigo vice-presidente da República, Manuel Vicente. As autoridades angolanas defendem que o caso deveria ser transferido para Angola, mas Portugal mantém a posição de julgar o processo no seu território. Como a OAA olha para este assunto?
Faz parte do código de ética e deontologia, quer dos profissionais ligados à advocacia em Angola, quer os profissionais ligados à actividade em Portugal, que dos advogados não devem comentar processos pendentes ou que estão a tramitar na justiça. Há excepções, mas a regra é que os advogados não devem comentar sobre aspectos que têm que ver com o fundo dos processos. Eu também não o vou fazer. Mas vou pronunciar-me sobre os acordos de cooperação jurídicos e judiciários que existem entre Angola e vários países. Angola tem acordos, por exemplo, com Cuba, Namíbia e existe também um acordo de cooperação jurídico ou judiciário entre Angola e Portugal. E esse acordo baliza, de forma geral, como se devem resolver as questões, em termos processuais criminais, quando estão envolvidos cidadãos de um e de outro país.
O que prevê esse acordo?
Esse acordo prevê, que quando existem portugueses em Angola com tramitação de processos em Portugal, ele (o acordo) deve ser aplicado. O mesmo processo ocorre em situação contrária. Ou seja, o Estado pode requerer que seja encaminhado para o país de origem da nacionalidade do cidadão envolvido no processo judicial. E, quando o Estado assim procede, com base nesse acordo, o outro Estado deve cumprir com o acordo. O que estamos a assistir é que nitidamente não há da parte do Estado português o cumprimento do acordo que o próprio Estado subscreveu. Esta é uma questão prática que tem que ver com esse acordo de cooperação jurídica ou judiciária. E daí decorrem, depois, várias consequências. É que se põe em causa o próprio acordo de cooperação porque há um Estado que se recusa a cumprir o próprio acordo que subscreveu. Em termos gerais, falando da legislação que existe, não entrando em termos processuais, é o que penso que se deve passar para o cidadão perceber o que exactamente se passa nesse momento na relação entre os dois países que, a meu ver, deveria ser do plano estritamente do acordo de cooperação jurídico ou judiciário, mas que, infelizmente, tem estado a transformar -se de âmbito diplomático e político.
De Portugal vêm, no entanto, notícias de que este caso deverá mesmo ir a julgamento…
Como é que você vai julgar um processo sem que haja réu? Nesse caso, não há ainda réu. Não foi constituído arguido no processo. Portanto, é um paradoxo.
Ainda em relação ao novo Governo, terá havido, de alguma forma, actos inconstitucionais com a exoneração de titulares de cargos afectos aos órgãos de inteligência e segurança interna e da Polícia Nacional que, ao abrigo da Lei das Chefias Militares, se encontravam, de algum modo, protegidos?
Essa lei, que tem que ver com as chefias militares, da Polícia Nacional, dos órgãos de inteligência e segurança interna, veio estabelecer e uniformizar a duração e a cessação do cargo. A lei fala, salvo erro, em quatro anos. Mas é uma lei que é aprovada ‘in quorum’, porque está estabelecida na Constituição. O artigo 122 da Constituição permite que se faça o que foi feito. Ou seja, que se faça uma lei que estabeleça que as chefias têm de ter um mandato de quatro anos. Agora, há legislação atinente infraconstitucional que permite que se façam as exonerações. Estou a referir-me, por exemplo, à lei nº. 2/93 de 26 de Março que permite que se nomeiem e que se façam exonerações. Portanto, do nosso ponto de vista, não há nestes casos qualquer inconstitucionalidade.
E em relação ao prazo do mandato do juiz presidente do Tribunal Supremo. A lei fala, por exemplo, em sete anos ininterruptos. Mas o que recentemente se assistiu, em Angola, é que este cenário foi interrompido…
Essa matéria já é adversa à anterior, porque a Constituição efectivamente define o período de mandato dos juízes-presidentes dos tribunais superiores. E a própria Constituição tem um princípio universal chamado de inabilidade. Este princípio quer dizer que, durante o mandato, os magistrados, quer juízes, quer procuradores, não podem ser removidos após a posse, salvo por interesse público ou a pedido do próprio magistrado. Se, para o caso concreto que aponta do venerando juiz-presidente do Tribunal Supremo anterior, ter ele próprio pedido ou ter sido submetido a um processo de interesse público, aí cai na previsão legal. Mas, por ser de interesse público, quem estiver ligado ao poder judicial deveria ter conhecimento. E nós (OAA) não temos conhecimento de que tenha existido esse processo. Daí que existam estas dúvidas ou inquietudes relativamente à interrupção do mandato do presidente do Tribunal Supremo e a sua nomeação para o Tribunal Constitucional. Matéria também decorrente desta é relativamente aos outros tribunais superiores, cujos presidentes, ainda em funções, têm os mandatos além do tempo previsto na Constituição. São matérias constitucionais e que todos nós devemos respeitar. Decorre também disso o facto de que, quando os juízes dos tribunais superiores jubilarem, ou seja se aposentarem, a pessoa que se aposenta não trabalha mais. Mas o que temos estado a assistir é que os juízes, que pertenceram a determinados tribunais superiores, estão a concorrer às vagas de juiz- conselheiro dos tribunais superiores. Portanto, isso leva também a questionar quais são os métodos ou requisitos dos novos concursos para os magistrados. A OAA pensa que os exemplos devem vir de cima e, a nível do poder judicial, tem de se trabalhar para se dar credibilidade ao que se está a fazer. Essas situações que estão a surgir criam muitas dúvidas e inquietações, não só dos funcionários ligados ao poder judiciário, como da própria sociedade.
Quer dizer que estamos perante actos inconstitucionais?
Não podemos dizer que estamos perante actos inconstitucionais, como tal, porque muitos deles não foram ainda totalmente praticados. Mas estamos perante situações que afrontam a Constituição.
Quantos membros actualmente fazem parte da OAA e em que pé está o processo de actualização de quotas, uma pretensão anunciada ainda durante o mandato do anterior bastonário?
Presentemente, a Ordem tem inscritos 3.033 advogados estagiários e 1.947 advogados com cédulas admitidos. Em relação às quotas, esta é matéria que temos de submeter à Assembleia-geral para os membros da Ordem definirem se deverá haver actualização ou não do valor em vigor.
Está satisfeito com o actual número de membros da OAA?
Em temos de profissionais forenses, somos a maior, no país. Portanto, há mais advogados do que juízes, há mais advogados do que procuradores. Contudo, o país ainda carece de mais profissionais para que determinadas províncias como, por exemplo, Zaire, Uíge, Cunene possam ter estabelecido advogados. São províncias que têm menos de cinco advogados.
E dentro da estratégia que está estabelecida na Ordem como pensa alterar esse quadro?
A OAA tem por função auto-regular a classe. Ou seja, fazer a inscrição dos associados. A Ordem não tem por função colocar advogados nas províncias. O advogado é um profissional liberal e estabelece-se onde existem rendimentos. O advogado, para colocar em funcionamento um escritório, tem muitos custos, desde a instalação, custos fixos, pessoal de apoio, mobiliário, arrendamento do espaço…Tudo isso é suportado individualmente pelo próprio profissional. Daí que também exista essa retracção na abertura de mais escritórios pelo país. Os advogados estão mais estabelecidos ao longo do litoral onde efectivamente as condições económico-financeiras são mais favoráveis.
Algo de que já se falou muito, no passado, prende-se com aqueles profissionais que exercem a actividade de forma ilegal. Qual é o posicionamento da OAA?
Felizmente, com a entrada em funcionamento da Lei da Advocacia, no ano passado, as coisas ficaram mais bem estabelecidas, porque a Lei da Advocacia vem exactamente pôr regras nessa matéria, ou seja, no exercício legal da advocacia. A lei é clara. Diz, por exemplo, que só pode exercer a advocacia quem estiver inscrito na Ordem. Quem não estiver inscrito, quer seja nacional, quer seja estrangeiro e praticar actos de advocacia, estará a incorrer em exercício ilegal da profissão. E a lei diz mais: os estrangeiros que vierem a coberto de protocolo de cooperação com nacionais só podem ficar no território nacional durante 30 dias.
A questão relativa à assistência judiciária levantou também, no passado, várias inquietações por parte dos membros da OAA devido ao que se chamou de falta de apoio do Estado. Como é que está a situação actualmente?
Infelizmente, essa é uma realidade que se mantém. A assistência judiciária está também prevista na nossa Constituição, mas não temos tido apoio nenhum do Estado. A assistência judiciária visa fundamentalmente permitir o acesso ao Direito e aos tribunais e a defesa dos direitos e garantias do cidadãos economicamente carentes, em que o Estado aparece a subvencionar esta assistência judiciária que é prestada pelos advogados. Sucede que a Ordem, nos últimos três anos, não recebeu nenhum valor do Estado para essa matéria relativa à assistência judiciária. Mas, mesmo assim, a Ordem continua a defender os pobres. Só a delegação da OAA do Kuando-Kubango, que é das mais pequenas, recebe entre cinco e 10 cidadãos diariamente no âmbito da assistência judiciária. Portanto, é só para ver o nível da procura.
O senhor ascendeu recentemente a segundo vice-presidente da União dos Advogados de Língua Portuguesa (UALP). Como está a ser essa experiência?
É uma associação das ordens de nove países que constituem a CPLP. A UALP realizou a sua assembleia-geral a 5 de Janeiro e elegeu o bastonário da Ordem dos Advogados do Brasil para presidente. A Ordem dos Advogados do Brasil tem, por exemplo, mais de um milhão de advogados. É a terceira maior Ordem do mundo. À sua frente, só estão os Estados Unidos da América e a Índia. E depois há mais dois vice-presidentes que são nomeadamente a bastonária de Cabo-Verde, na qualidade de primeira vice-presidente, e Angola, através do bastonário da Ordem, é o segundo vice-presidente. A UALP funciona principalmente para questões atinentes a formações entre os Estados-membros; emitir opiniões sobre a legislação a nível da advocacia dos Estados-membros. Portanto, estamos a falar de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Brasil, Portugal e Macau. Nós defendemos agora a entrada, na UALP, de mais dois Estados que fazem parte da CPLP que são, no caso, o Timor Leste e a Guiné-Equatorial.
PERFIL
Luís Paulo Monteiro é licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, e é advogado subscritor da acta de constituição da Ordem dos Advogados de Angola (OAA), acto ocorrido em 1996. Estudou direito desportivo para agente FIFA em Belo Horizonte, Brasil. Possui formação avançada em matéria de controlo da constitucionalidade, pela Unidade de Formação Jurídica e Judiciária (UNIFOJ) da Universidade de Coimbra, Portugal. Membro da União Internacional dos Advogados, é igualmente o actual segundo vice-presidente da União dos Advogados de Língua Portuguesa (UALP), cargo que concilia com o de bastonário da Ordem dos Advogados de Angola (OAA) que ocupa desde o início deste ano para um mandato de três anos.
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