ANGOLA GROWING
ANTÓNIO VENÂNCIO, ENGENHEIRO CIVIL

“A malha rodoviária é um beco onde só cabem dois carros”

Engenheiro civil enumera o que chama de erros que estão na base da rápida degradação da malha rodoviária nacional, apontando, como principal defeito, o modelo adoptado ‘concessão-construção’ que põe de lado a figura de projectistas e fiscais “idóneos”. Desencoraja, por outro lado, o Governo a apostar no projecto rodoviário herdado do colono que, segundo defende, está desalinhado com a actual conjuntura económica do país.

Desde o arranque do processo de reconstrução nacional, em 2002, Angola já investiu cerca de 25 mil milhões de dólares na recuperação de infra-estruturas rodoviárias. Ainda assim, há muitos troços degradados ao longo das estradas nacionais. O que estará na base dessa situação?

Depois de assinado o acordo de paz, o país decidiu reabilitar os troços rodoviários, no sentido de unir novamente as capitais de cidades. E pretendeu fazê-lo muito rapidamente. E acho que foi aí onde começámos a cometer o primeiro erro. Que foi o de tentar reabilitar as estradas com base em técnicas rapidamente elaboradas, ao invés de, primeiro, fazermos o levantamento da situação, elaborar os projectos, escolher os empreiteiros e os fiscais para levar a cabo essa empreitada que seria a reconstrução da malha rodoviária nacional. Não foi assim que actuámos. O que fizemos foi que, por via dos chamados ‘contratos do modelo’ concessão-construção, foram adjudicados troços rodoviários e a maneira de reconstruir as estradas naturalmente pecou por falta de dados mais exaustivos. Ou seja, não foram feitos os levantamentos necessários da situação em que cada um dos troços se encontrava, tendo em conta o estado das camadas granulares, o traçado e as condições climatéricas. Pegámos numa espécie de bitola de nota técnica e aplicámos em toda a extensão do território nacional. Diria que foi um pouco de pressa a mais. Tive a ocasião de alertar, em 2011, que iríamos ter problemas muito sérios. Alertei publicamente e fi-lo com alguma coragem, porque as pessoas não aceitavam muito este tipo de críticas.

Quais foram os outros erros?

O segundo erro foi o de não termos escolhido os melhores fiscais. Ou seja, não optámos pelos fiscais profissionais. O terceiro e último erro foi o não termos previsto as verbas para a conservação e manutenção das estradas. A combinação destes três factores levou à degradação prematura de muitos troços rodoviários da malha nacional. As estradas são perecíveis e requerem um tratamento especial, em matéria de adjudicação, acompanhamento e manutenção.

Sente que já existe um maior acompanhamento no processo de construção e reabilitação das estradas?

Somos bons a elaborar regulamentos e leis e somos bons a aprender com os erros. Ou seja, foram cometidos erros, e estou seguro de que aprendemos muito com estes erros. Agora é preciso ter a coragem de os aceitarmos e corrigir futuras situações. É claro que tenho alguma dúvida de que isso seja unânime no seio dos decisores públicos. Uma grande parte compreende que falhamos e que temos de corrigir, mas há outra parte que provavelmente ainda irá apostar no cometimento dos mesmos erros. Ou seja, ainda vão adjudicar obras no modelo concessão-construção ainda vão adjudicar obras em que os fiscais não são escolhidos mediante concursos transparentes e rigorosos e, provavelmente, ainda vão adjudicar obras sem ter as verbas para a conservação e manutenção garantidas. Esse grupo de decisores que assim age, o fá-lo em contramão. Ou seja, cria prejuízos económicos e financeiros enormíssimos ao Estado.

Este é um novo apelo que faz às autoridades. Afinal, diz que já o fez no passado?

É claro que nós, os técnicos, estamos permanentemente a alertar. Alguns de nós com mais coragem do que os outros. Eu devo ser o mais corajoso de todos, porque sou aquele que de tempo em tempo, faz um pronunciamento em relação ao que, se está a fazer, em termos de estradas. Já o fiz antes e agora estou a fazer um novo apelo. Não convém fazermos a reabilitação da malha colonial com os mesmos procedimentos e com o mesmo traçado geométrico do passado, porque não está compatível com os novos desígnios do desenvolvimento socioeconómico do país.

Em que se baseia o modelo de concepção, construção a que se referiu?

Nas obras públicas, existem quatro intervenientes fundamentais. O dono da obra, o projectista, o empreiteiro e o fiscal. O dono da obra, antes de fazer qualquer contacto com o empreiteiro , deve, em primeiro lugar, procurar um projectista para conceber o projecto. Depois de ter o projecto bem conseguido vai à procura de um empreiteiro. O passo a seguir é ir à procura de um bom fiscal e assim começa a obra pública, dentro da normalidade metodológica. No caso de Angola, as coisas não têm funcionado assim. Primeiro vai-se à procura do empreiteiro. Isso é o primeiro erro que se comete, porque o primeiro a ser procurado deveria ser o projectista. Penso que isso deve estar a acontecer provavelmente um bocadinho aliciado pelas linhas de créditos dos países. Mas este erro comete-se também a nível dos particulares, em que muita gente, na fase de construir a sua casa, vai logo à procura do construtor. Isso é um erro. O que o Estado faz é atribuir a construção e a projecção da obra a uma mesma entidade. Isso chama-se modelo concessão-construção. Quer dizer que a construção fica adjudicada ao próprio construtor. O país está a perder muito dinheiro com este modelo.

A manutenção regular das estradas não seria um caminho adequado para minimizar o quadro que descreve?

Não é suficiente, porque a manutenção tem de entrar combinada com um bom projecto e um bom fiscal. A manutenção de uma estrada só tem resultados se esta estrada foi bem projectada e entregue às mãos de um fiscal idóneo. Ou seja, não basta dizer que há dinheiro para a manutenção. Como é que se calcula a manutenção se não existe o valor verdadeiro da obra que vem empolada já desde o preço. Mas se houver um bom projecto, mas não haver manutenção também não funciona. Se houver mau fiscal, mas com um mal projecto também não funciona. Digo que estes três elementos entram num jogo combinado. Basta falhar um, falha todo o processo.

E como avalia a manutenção que se faz hoje ?

Em Angola não existe cultura de manutenção, não existe cultura de tornar a elaboração de projectos independentes e não existe a cultura de escolher os melhores profissionais para acompanharem as empreitadas de obras públicas. Portanto, se não há um bom projecto, elaborado por alguém independente, também não haverá informação suficiente para planificar uma boa manutenção.

Em Angola, existem profissionais que podem trabalhar de forma independente em matéria de fiscalização das estradas?

Em Angola, existem fiscais com muita capacidade. O problema é que, do ponto de vista do negócio, um bom fiscal pode criar dificuldades àquilo que seria a promiscuidade que, muitas vezes, passa impune. Com um bom fiscal, a promiscuidade não funciona. Com um bom fiscal, o empreiteiro leva multas severas que estão previstas na Lei. Desde 1992, a lei que regula, controla e organiza a metodologia de trabalho e o regime das empreitadas de obras públicas já foi revogada e enriquecida por quatro vezes. A última revogação foi em 2016. Agora porque não se cumpre? Essa pergunta já não me compete responder.

Reprova a forma como as estradas nacionais tem sido construídas e reparadas. Que soluções é que aponta às autoridades deste sector para melhorar o actual quadro?

Primeiro, se tivermos verbas bastante exíguas, então podemos optar pela duplicação de estradas. Ou seja, a malha que herdámos do colonialismo é como se fossem pequenos becos, onde não cabem duas pessoas. A nossa malha rodoviária é um beco onde só cabem dois carros, um para ir e outro para vir. Isso não encoraja viagens, não encoraja frotas de camiões, não encoraja turismo, inclusive, passeios. Os habitantes de Luanda, que são um terço de toda a população de Angola, estão todos concentrados em Luanda porque não aceitam entrar nesses becos perigosos e, muitas vezes, mortíferos. As pessoas não conseguem viajar daqui ao Huambo com uma velocidade média de 60 a 70 quilómetros hora, quando, nalguns casos, se poderia circular até a 280 horas. Portanto, a malha antiga caiu em desuso. Por outro lado, essa malha quando foi pensada, a população angolana era de três milhões de habitantes. Nesse momento, somos 26 milhões de habitantes. Então essa malha já não serve. Terceiro aspecto, as commodities´de Angola de agora já não são as de antigamente, em que havia, se calhar, só o café. Agora estamos a viver de outras commodities. Estamos a fazer o PLANAGEO (Plano Nacional de Geologia) para uma varredura de área a fim de se saber o que temos no país, em termos de recursos minerais para depois tomarmos decisões macroeconómicas. A minha sugestão é a de que o Governo se sente não só com economistas ou especialistas em estradas. Temos de sentar todos e, a partir daí desenhar uma malha rodoviária, em que vamos ter as linhas fundamentais, as chamadas estradas nacionais. E, mesmo dentro das estradas nacionais, vamos ter de escolher os itinerários que têm de ser auto-estradas, porque já não pode ser uma simples estrada.

No interior das cidades, sobretudo em Luanda, nota-se que algumas vias secundárias e terciárias beneficiam de obras de reparação. Ainda assim, não são poucas as vias inundadas, após uma enxurrada. O que estará a correr mal a este nível?

A cidade de Luanda cresceu assustadoramente, nos últimos 10 anos. Isso significa que o espaço edificado multiplicou-se várias vezes. Significa que nós impermeabilizamos vastas áreas de terreno que antes absorviam as águas. E isso ocorreu através das coberturas. Uma casa de 12 por 12 são 144 metros quadrados de terreno que impermeabiliza dos e o resultado disso são inundações que podem matar pessoas. Ou seja, à medida que as manchas urbanas foram crescendo, devia também com ela crescer toda a malha de saneamento básico, quer para recolher as águas, quer para doptar as casas de água potável, energia, enfim. Mas o que se verifica é que, enquanto a população edifica, as infra-estruturas estão paradas. Isso resulta num caos total. E assim não precisa de chover muito para criar inundação.

Quer dizer que a solução para se acabar com as inundações nalgumas vias não passa pela reparação das vias secundárias e terciárias?

Não! Do meu ponto de vista, não se deve meter mais nenhum kwanza para Luanda. Porque a cidade entrou em falência urbana. Não se faz mais nada. Perdemos a oportunidade de recuperar a cidade, já não vamos a tempo. Vamos ter de escolher um outro espaço dentro do território nacional para implantar uma capital de referência, que seja um orgulho para os angolanos. Todos os que tentarem fazer de Luanda o orgulho dos angolanos vão cair numa quimera. Vão gastar rios de dinheiro e não vão tornar Luanda numa referência.

E o que tem a dizer sobre o Plano Director de Luanda?

Não vai funcionar, porque já estamos, neste momento, em oito milhões de habitantes. Significa que, dentro de dois anos, já somos cerca de nove milhões, mais dois anos 10 milhões. A taxa de crescimento populacional de Luanda é de 3% ao ano. Portanto, já não vamos a tempo. A corrida foi tão grande, do ponto de vista do crescimento populacional, que estamos agora a tentar vir com investimentos públicos. É impossível. Não se vai conseguir absolutamente nada. Pode tentar-se meter metro, sistema BRT, fazer outras estradas, meter saneamento, não vai funcionar. Para se sanear a cidade de Luanda seriam necessários 60 anos a despejar milhões. Para se meter água na cidade de Luanda leva-se 82 anos para dar 120 litros por dia para cada pessoa. E isso porque, daqui a 40 anos, essa necessidade seria somente de 600 mil metros cúbicos, quando hoje, com oito milhões de pessoas, se precisa de 1,8 milhões metros cúbicos de água potável. Portanto, a carência de água hoje, em Luanda, comparada com a dos próximos 10 anos, vai ser maior.

A construção de novas centralidades não será uma boa estratégia para desafogar o centro urbano de Luanda?

Esta estratégia é outro erro. Quem pensou nas centralidades, no modelo em que se pensou, devia pensar na construção de uma centralidade de dois em dois anos. O que é quase impossível. Agora fazer uma centralidade e esperar mais 15 anos para fazer outra é um desperdício. O Estado não pode entrar na aventura de fazer apartamentos de luxo, com interiores estucados, para dar à população. Isso não se faz em nenhuma parte do mundo. O Estado deve estimular a construção de casas, os empreiteiros, a produção nacional, a indústria de materiais de construção, através de políticas públicas próprias, para poderem aparecer centralidades naturalmente, como mérito da economia.

Qual seria a fórmula para que Luanda pudesse resultar nos próximos anos?

Adoptar políticas de descentralização, de rompimento de assimetrias para encorajar e estimular aquilo que se chama tecnicamente como migração económica da população de Luanda, através de políticas macroeconómicas. Por exemplo, se sou um médico em Luanda e ganho 180 mil kwanzas, nas Lundas, ganharia 600 mil kwanzas. É assim que vamos conseguir estancar Luanda e fazer dispersar pólos pelo país inteiro de desenvolvimento socioeconómico para que as pessoas possam desenvolver o que está debaixo da terra adormecido.