ANGOLA GROWING
CARLOS CAMBUTA, DIRECTOR GERAL DA ADRA

“A situação da pobreza no país é muito preocupante”

24 Nov. 2020 Grande Entrevista

Defensor convicto da agricultura familiar, em função das evidências da experiência, o director da Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente (Adra) assinala “retrocessos” na participação da sociedade na elaboração do Orçamento Geral do Estado. E, apesar de reconhecer a legitimidade do Governo em determinar as opções no OGE, alerta para o agravamento da “extrema pobreza” e critica a ausência de uma política integrada de protecção social. 

“A situação  da pobreza no país é muito preocupante”
D.R

É compreensível o aumento da dotação da Ordem Pública e Segurança, face a sectores sociais, como a Saúde ou a Educação, na proposta do OGE de 2021?

É um debate importante. Nós temos estado a apelar para uma maior participação do cidadão no processo de formulação do OGE.

 

Participar de que forma?

O OGE começa a ser elaborado no município. Se nós olharmos para o calendário de elaboração, vamos constatar que ele começa a ser elaborado a partir de Maio nos municípios. O que acontece, muitas vezes, é que, quando as administrações municipais estão a preparar os orçamentos, dificilmente engajam os cidadãos.

Porquê?

Muitas vezes, quando há algum encontro, não se passa a ideia de que o exercício que está a ser feito é para definir as necessidades e prioridades do município para o ano seguinte. De facto, isso não ajuda muito a termos um orçamento que venha a contemplar as reais necessidades sentidas pelo cidadão.

 

E a Adra, enquanto organização não-governamental, é convidada regularmente?

Temos sido em alguns momentos, mas em outros momentos não. Mas também queremos entender que isso faz parte de um processo próprio de um país que está a caminhar para o fortalecimento do seu Estado democrático e de direito. O que temos de dizer é que se vai verificando alguma abertura de diálogo, mas, ao mesmo tempo, vamos sentindo alguns retrocessos.

 

De que natureza?

Por exemplo, aquando da formulação do orçamento inicial de 2019, isto em 2018, o Executivo convidou diferentes franjas da sociedade civil para emitirem as suas opiniões. Pudemos questionar o método, porque a discussão do OGE, que é uma peça muito complexa, uma peça que envolve vários interesses, não é possível apenas numa sessão de duas ou três horas com mais de 150 pessoas. Mas fica subjacente a vontade e a ideia de tornar o processo mais participativo.  Igualmente, a nível da Assembleia Nacional, houve o engajamento de diferentes franjas da sociedade civil, mas isto já não se verificou aquando da revisão do Orçamento Revisto de 2020, tão-pouco se verificou no processo de preparação da proposta de Orçamento de 2021. Portanto, estamos na presença de um retrocesso. O que temos de apelar é que é importante trabalhar-se no sentido de haver esta participação activa dos cidadãos. Até porque os cidadãos podem não ser especialistas na matéria, mas são capazes de dizer que assuntos são mais importantes para a sua vida.

 

Como vê o que se reserva para a protecção social em 2021?

Aqui há grande preocupação. Quando estamos a falar de protecção social, não estamos a fazer menção apenas à chamada protecção obrigatória, ou seja, àquela dos inscritos no Sistema Nacional de Segurança Social. E o nosso OGE olha para a protecção social apenas nesta perspectiva. Não olha na perspectiva da protecção social de base, ou seja, aquela que trata da situação da vulnerabilidade social. Nesse sentido, há toda uma necessidade de apelar às autoridades competentes do Estado para que se possa melhorar o conceito, de modo a que o orçamento passe a olhar para as duas perspectivas.

 

Mas como fundamenta a ideia de que o Governo não olha para a protecção de base?

Quando falamos de protecção social de base, não só estamos a olhar para aquelas pessoas que estão em situação de desemprego; que precisam de apoio. Falou-se muito de cesta básica no início da covid-19, agora não se fala mais, dando a entender que desapareceu. Mas a protecção social de base coloca-se igualmente àquelas pessoas que, economicamente, estão bem, mas que podem ser vítimas de um desastre, de um acontecimento natural e assim precisarem de serem assegurados pelo Estado. Esta noção toda não está incluída no OGE.

 

Ou seja…

Ou seja, a preocupação é mais acentuada, porque o país não tem uma política integrada de protecção social. O que neste momento existe são as chamadas políticas paliativas e assim não é possível podermos ter acções mais estruturantes neste domínio.

 

No fundo é disso que o país precisa, uma política integrada…

Precisamente. Uma política que tenha vários eixos de intervenção articulados. Quero dizer com isto que temos de ter ao mesmo tempo projectos que possam assegurar às famílias a terem os factores de produção. Famílias que tenham assistência médica e medicamentosa, famílias que tenham acesso a oportunidades de direitos para que possam realizar efectivamente as suas vidas. Enquanto isto não acontecer, certamente continuaremos a ter um sistema de protecção social deficiente.

 

Referiu-se ao aumento substancial no sector social no OGE 2021. É bom sinal?

Estamos a comparar o orçamento revisto de 2020 que totaliza aproximadamente 13 biliões de kwanzas e estamos a falar de uma proposta de orçamento para 2021 que totaliza 14 biliões de kwanzas. Então, há este aumento substancial, para um período de 12 meses, mas insuficiente se introduzirmos a variável inflação. Ou seja, aumentou, mas esse aumento não tem impacto na vida do cidadão.

 

E como se explica o aumento superior, em relação a sectores sociais, na Ordem Pública?

São opções, porque o orçamento é sobretudo um instrumento político, através do qual se vai procurar concretizar as linhas de governação. Mas é verdade que a situação de pobreza é cada vez mais visível. No dia-a-dia, temos estado a ver pessoas recorrerem aos contentores para encontrar alguma coisa, isto é indicador de que a situação social do país está crítica. Daí ser importante que, no quadro da definição das prioridades, o sector social mereça atenção. Essa atenção está realmente aí plasmada, porém, quando a confrontamos com o sector da defesa, segurança e ordem pública, notamos um aumento substancial. Isto não é algo muito positivo, o que não significa estar contra a situação da defesa, segurança e ordem públicas. Defendo a tese de que deve haver equilíbrio na afectação de recursos. O que se passa é que estamos num país onde tudo é prioritário e esse exercício não é fácil de ser definido.

 

Coloca-se também a questão da execução…

Exacto. Não adianta só falarmos muito na questão do aumento.  Também temos de olhar para a execução. Se olharmos para os orçamentos anteriores, nota-se que o nível de execução está muito abaixo daquilo que é efectivamente esperado.

 

Como se pode inverter o quadro da pobreza extrema?

Lemos esta situação com extrema preocupação. Os relatórios do INE são claros, que a situação da pobreza no país é cada vez mais preocupante. Essa agudização da pobreza pode ser resolvida a curto e médio prazos, através da formulação de políticas eficazes e eficientes, tendo em conta as potencialidades do país. Este país tem potencialidades agrícolas que, se forem efectivamente aproveitadas, isto é, utilizadas com racionalidade, rapidamente podemos melhorar a situação social do país.

 

É um apelo ao investimento na agricultura?

Investir na agricultura é investir na resolução de vários problemas que afectam o país, atendendo os seus efeitos múltiplos. Ou seja, investindo na agricultura, estamos a trabalhar no sentido de melhorar o processo de ensino e aprendizagem. Porque é através do aumento da produção que estaremos em condições de dinamizar o programa de merenda escolar, fundamental para a retenção dos alunos na escola. Ao mesmo tempo, é também através do aumento da produção de qualidade que estaremos a reduzir muitas doenças. Isto para além de que o investimento na agricultura resulta numa maior empregabilidade.

 

É uma receita conhecida, mas o que falta para a sua devida aplicação?

O investimento agrícola enquadra-se no sector privado. Há muita gente que tem vontade de trabalhar, mas encontra dificuldades de apoio no acesso aos factores de produção. É verdade que o Executivo tem estado a tomar medidas importantes como, por exemplo, a redução do IVA em 5%, para a aquisição de inputs agrícolas. Está a estimular que a cesta básica seja constituída essencialmente por produtos nacionais. Isso aumenta os níveis de produção, quando o camponês toma nota de que os produtos têm saída no mercado. O Executivo continua ainda com a política de subsídios aos combustíveis, enfim há uma série de medidas, mas o factor determinante, que é o acesso ao crédito para permitir que as famílias acedam a outros factores de produção, continua ainda muito difícil.

 

O Prodesi não é uma resposta suficiente?

Temos de reconhecer o papel que o Prodesi tem estado a desempenhar. O Prodesi vai agora no seu segundo ano e as introduções que vão sendo feitas vão alargar o volume de acesso ao financiamento, mas isto ainda vai levar o seu tempo. De tal modo que ainda temos muitas famílias camponesas, muitos agricultores familiares, associações cooperativas com sérias dificuldades no acesso ao crédito.

 

Há quem defenda que o modelo de agricultura familiar não resolve o problema do aumento da produção em qualidade e quantidade exportável, mas sim uma aposta nos empresários. Quer comentar?

Este é um debate que se coloca no quadro das opções de modelos de desenvolvimento agrícola.

 

E o que defende a Adra?

Nós, a nível da Adra, defendemos, em primeiro lugar, a opção por aquele modelo que é mais sustentável. E a experiência leva-nos a aferir que o modelo de agricultura familiar é o que mais produz. A estrutura da base agrária nacional é constituída 90% por agricultores familiares, que são responsáveis por mais de 80% da produção.  Isto significa que são capazes de produzir mais, se forem apoiados. É também verdade que o que a ciência defende é a necessidade da utilização de métodos híbridos, ou seja, a necessidade de combinar os dois modelos de actividade agrária. Estamos a falar da agricultura empresarial que, no nosso país, ainda não mostrou provas suficientes.

 

Mestre em governação pública

Carlos Cambuta dirige a Adra desde Julho de 2019. É mestre em governação e gestão pública na especialidade de governação e políticas públicas na Universidade Agostinho Neto. Na mesma universidade, concluiu também a licenciatura em línguas e literatura inglesa na Faculdade de Letras. Trabalha para a Adra há 17 anos, tendo iniciado como estudante estagiário do Instituto de Ciências Religiosas de Angola (Icra), em 2003, na Huíla. Membro de diversos espaços de análise de questões políticas, económicas e sociais, tem-se concentrado na análise da eficácia e eficiência de políticas públicas em Angola, especialmente nos domínios da agricultura, saúde, educação e protecção social.