Jerónimo Belo, o ‘Senhor Jazz’

Andamos sempre a comer gato por lebre

Jazz. Apaixonado pelo jazz, o reconhecido impulsionador do estilo em Angola fala ao Valor sobre os seus favoritos e de como o país “ainda é um deserto”. Conta como a política e a poesia o levaram ao jazz e versa as ligações históricas com a escravatura e o racismo.

 

Como surge a paixão pelo jazz?

Quando estava a passar dos calções para as primeiras blue jeans, compradas nas lojas de roupa usada (fardex americano, como lhe chamávamos), e lavadas na praia para ficarem com um aspecto mais usado, mais antigo, como era moda nos anos 60. Mas, como todas as paixões, surgiu inexplicavelmente.

Em entrevista, disse que chegou ao jazz pela poesia e pela política, e não pela música.Pode explicar melhor?

O jazz é a arte que melhor expressou o génio e os tumultos sociais do século XX. E também porque tem vindo a evoluir no sentido da obra aberta, através de uma vanguarda que se une ao projecto de todas as artes. E ainda porque na génese e surgimento desta música que se chama jazz existem dois fenómenos da maior importância, diria mesmo incontornáveis: a escravatura e o racismo.Entre os séculos XVI e XIX, cerca de doze milhões de africanos foram forçados a ‘viajar’ para o chamado “Novo Mundo”, para as Américas. E a África ocidental era deste modo sangrada do seu potencial humano. Estou pessoalmente convencido que ainda hoje há feridas por cicatrizar. Foi sobretudo por estes motivos que me apaixonei pela História do jazz e mantenho uma relação afectiva que dura há mais de meio século. É curioso reconhecer que não cheguei ao jazz via música. Fui bastante marcado na adolescência pela poética de intelectuais militantes, oriundos da África ‘lusófona’ (Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário de Andrade, António Jacinto, Noémia de Sousa, Francisco José Tenreiro, entre outros), que, sobretudo a partir da segunda metade do século passado, representavam uma referência activa e activista e assumiam o papel de polarizador de energia de um grupo. Os intelectuais-poetas e nacionalistas que citei utilizam como referência valores do chamado ‘mundo negro’, restabelecendo elementos comuns de ligação fraterna entre todos os oprimidos, alimentando as mesmas esperanças, catapultando os companheiros de infortúnio. A relativa frequência de poemas alusivos à escravatura e aos blues resulta, naturalmente, das axiais que estão na origem do próprio jazz, identificadas anteriormente, a escravatura e o racismo.

E disse que o jazz é música que incomoda, que põe em dúvida certezas e confortos estéticos. O que quis dizer?

Claramente! O jazz fez em 50 anos o mesmo trajecto que a música erudita em três (3) séculos! O artista contemporâneo é obrigado, para sobreviver, a inventar e reinventar o seu quotidiano, provocando rupturas numa conjectura que tudo globaliza, rastreia, monitora e influência o gosto das pessoas. O jazz é uma música de gente inconformada, que resiste. Concluo o meu pensamento com uma frase já célebre do saxofonista americano Archie Shepp: “O jazz é a flor que, apesar de tudo, desabrocha no pantanal”.

Como vê o jazz hoje em Angola?

Muito preocupante. Deprimente. Triste. Há um jovem pianista meu amigo que está desesperado à procura de um baterista que consiga as subtilezas rítmicas do jazz. E não encontra. E os que aparecem querem cachets que nem o Sinatra cobrava… Em Cuba, por exemplo, apesar de todos os bloqueios injustos e inenarráveis dos ‘camones’, os jovens aprendem música e jazz em escolas dignas desse nome. Entre nós é o deserto. E como tudo é ‘Afro Jazz’ andamos sempre a comer lebre por gato. Vou morrer com esta angústia. No entanto, a orquestra Kapossoca e a do Libolo vieram aliviar o meu sofrimento… e a permitir-me sonhar novamente. É bonito ver aquela miudagem a tocar.

O jazz já tem mercado no nosso país?

Nas actuais circunstâncias… ainda não.

O jazz pode ser considerado um estilo da elite? Porquê?

Ai dos países que não tenham elites; na arte, na ciência, na cultura, no desporto, etc. Elitismo é que é injusto e, por vezes, cruel. O jazz é uma música de músicos, de criadores; ligada a um enormíssimo virtuosismo e a uma sensibilidade única. Não é uma música falsamente popular, que aliena o gosto e destrói o sentido crítico.

O jazz em Angola tem características próprias?

Não sei se poderemos afirmar, com rigor, a existência de um jazz com ‘sabor angolano’. Como sabemos, o jazz nasceu na América e hoje existem extensões criativas e originais na Europa, Brasil, Cuba, África do Sul, Japão, etc. Infelizmente ainda não encontro esta especificidade local, como por exemplo no fenómeno ‘Afro-cubanismo’, quando Mário Bauzá, Machito e Chano Pozo, músicos cubanos, em parceria com o trompetista americano Dizzy Gillespie criaram um som enérgico e completamente novo, revolucionário. Considero que a História do jazz é inalienável da História da música cubana. E algo idêntico aconteceu com a chamada “Bossa Jazz”. Talvez o Nino Jazz, o João Oliveira- ambos pianistas, o Hélio Cruz, baterista, possam, com muito trabalho e esforço, apontar novos caminhos para a música improvisada angolana. Esta é uma grande esperança que alimento.

Que angolanos há no jazz à altura de se afirmarem internacionalmente?

Muito provavelmente o Nino Jazz, o João Oliveira, o Hélio Cruz, o cantor-guitarrista Derito. E o guitarrista e multi-instrumentista Simmons Massini, e mais alguns…poucos.

Quais são as suas grandes referências mundiais?

Adoro pianistas. Tenho quase tudo do Bill Evans e do TheloniousMonk, do Keith Jarrett e do ChickCorea. O contrabaixista Charles Mingus é outra das minhas paixões. Mas há mais: Miles Davis: trompetista, bandleader, pintor. Uma “mega star”. HerbieHancock, Ellington, Parker, Wynton e o seu irmão Branford Marsalis. A lista é enormíssima. E não resisto a uma bela voz: Billie, Sarah, Ella, CarmenMcRae, Betty Carter. Não me posso queixar!

O que significou fazer parte da Delegação da União Europeia?

Uma experiência profissional rica e estimulante, que permitiu, por um lado, conhecer melhor o país, acompanhando os diversos projectos de emergência e de apoio ao desenvolvimento e, por outro, para dar a conhecer aos meus conterrâneos a realidade europeia, nas suas mais variadas vertentes. Fui o Adido Cultural e de Imprensa e criei o Centro de Documentação da Delegação - tarefas que cumpri com muito, muito gosto, durante 13 anos.

Sente-se a referência do jazz?

Não tenho este pretensiosismo! Sou uma pessoa que ama profundamente o jazz, para quem o jazz continua a ser quase tudo na vida, um actor social entre outros. E isto resolve o meu caso pessoal. Sei estar à sombra e estou bem onde e como estou com os meus discos, livros e o meu jazz cerebral. E as minhas circunstâncias.