“Angola Cables taxa em dólares e nós, operadores, não podemos”
Com mais de 30 anos de experiência nas telecomunicações, Francisco Pinto Leite acredita que, apesar das adversidades e de a economia nacional ainda ser incipiente, a curva vá mudar para o positivo. Critica o monopólio da Angola Cables. Culpa-a por ter preços, sempre indexados ao dólar, que determinam o preço alto das telecomunicações em Angola. E admite entender a subida de preços da Movicel.
Que caminhos é que as empresas tecnológicas têm trilhado com a economia em crise?
As empresas de tecnologias requerem alguma intensidade de importação de tecnologias, porque não somos produtores de tecnologias. Estamos a falar não só de produtos, mas também de serviços, como os operadores de televisão. Grande parte dos conteúdos de televisão hoje é importada. E entra no grupo de serviços. Isso é um grande desafio porque o actual cenário de desvalorização do sector regulador tributário, com as novas leis tributárias, não ajuda muito. Nas telecomunicações, o imposto industrial passou para 35%, enquanto nos outros sectores passou de 30% para 25%. A taxa de retenção na fonte para invisíveis, serviços como segmento espacial, satélite, conteúdos de televisão, consultoria e etc., passou de 6,5% para os 15%.
Com essa adversidade, foi o momento correcto para a implementação das reformas tributárias?
Não era o momento adequado. No mínimo, temos 10% de perdas de receitas devido aos efeitos directos da pandemia. Este ano, de Janeiro até Outubro, já tivemos 28% de depreciação do kwanza. É muita coisa para as empresas e para os trabalhadores. Se não tivermos uma equipa engajada e suficientemente remunerada, isso acaba por afectar a operação e a rentabilidade das empresas. Este ano não seria o momento mais adequado para se tomarem essas medidas.
Quais são as vossas estratégias, com esta pandemia?
A nossa estratégia continua a ser a construção de uma infra-estrutura capaz, com qualidade e de preços acessíveis. A semana passada foi pródiga em algumas questões relacionados com os preços das telecomunicações em que um dos operadores, a Movicel, foi publicamente quase apedrejado. Mas quem está no sector percebe as razões. Há um comunicado da Movicel que refere que 70% dos custos operacionais e de investimentos são em divisas. É verdade. Os custos operacionais têm que ver com as saídas internacionais que são basicamente definidas por dois operadores. Um é a Angola Cables, que detém o SAT-3, o cabo de fibra óptica. É um cabo com alguns anos e com alguns condicionalismos em capacidade adquirida pelo mercado interno. O outro operador é da Angola Cables, que detém o segundo cabo submarino que sai da Cidade do Cabo até Portugal. O terceiro cabo também é da Angola Cables. Sai de Angola ao Brasil. Quase todos os operadores estão muito condicionados pela Angola Cables. Paradoxalmente, a Angola Cables é uma empresa nacional e taxa em dólares e nós, operadores, não podemos indexar os nossos preços ao dólar. Os preços praticados pela Angola Cables são exageradamente caros. Estamos a falar em proporções de oito a dez vezes mais caros do que o mercado internacional. E esses preços só são feitos para Angola. Posso dar um dado sem qualquer problema. Uma ligação de 10 gigabytes, de Luanda para Portugal, de qualquer operador internacional posto em Sangano custa 14 mil ou, no máximo, 20 mil dólares. A Angola Cables cobra 200 mil dólares indexados ao dólar e estão todos os operadores a pagar e a população a pagar. E é isso que não se fala nas telecomunicações. Não tenho qualquer problema em falar, porque é a realidade do sector.
E isso impacta até na qualidade?
Isso impacta grandemente nos custos operacionais e até na qualidade de serviços que nós, os operadores, damos aqui. Isso impacta em toda a estratégia de inclusão digital. Este é um facto. Compreendo muito bem o que acontece com a Movicel. São custos operacionais indexados ao dólar. E isso faz com que as empresas tenham uma rentabilidade cada vez menor, porque os preços são dez vezes mais do que no mercado internacional. E isso não é justificável, de maneira nenhuma, pelos custos operacionais em Angola, pela falta de energia, pela segurança nos sites ou por geradores. Se estivermos a falar de uma diferença de 20% ou 30%, ok. Mas estamos a falar em diferenças de 600% ou 800%. Temos falado com o regulador e com outros órgãos do sector. A situação mantém-se e é extremamente visível.
O que é que o regulador diz?
O regulador promete um estudo. Mas não há mudanças deste paradigma. E entendemos que isso só é possível devido ao monopólio que a Angola Cables detém sobre os acessos internacionais. Apesar da regulação das telecomunicações permitir que outros operadores tenham acesso à narração directa dos cabos internacionais, há aqui alguma relutância e algum factor que é incompreensível pelo facto de não haver uma tomada de posição.
A população normalmente olha para aumento de preços. O poder de compra tem baixado. Como se pode salvaguardar a manutenção de serviços neste cenário?
Estamos num mercado em que as reclamações não são tão expostas. E podemos também perder alguns clientes. As reclamações são absolutamente legítimas. Os preços nas telecomunicações têm um componente percentual muito grande ligado à moeda estrangeira. E isso passa por serviços, que incluem conteúdos e tecnologias. Este é um sector de permanente investimento. Aqui podemos olhar mais holisticamente para o sector. Primeiro, com os serviços a passar a retenção na fonte de 6.5% para 15% só aí põe 8.5% de aumento de custos para as empresas. O segundo é que tem de haver uma posição mais clara do regulador relativamente aos preços indexados ao dólar. Todos os meses, as facturas dos operadores sobem. E são indexados ao dólar por uma empresa local. Há uma extrapolação daquilo que são as próprias leis do país, em relação ao comércio, o que devemos fazer em kwanzas. Isso é um facto. Não há como fugir objectivamente. A indexação ao dólar das saídas internacionais e a revisão dos preços praticados pela Angola Cables ou a abertura para outros operadores trazerem o seu tráfego internacional directamente dos cabos submarinos. E abrir assim o tal aspecto da partilha de infra-estruturas e da concorrência. Nas saídas internacionais, não existe um mercado aberto e de concorrência efectiva.
Existe algum operador disposto a investir neste segmento e assim permitir a concorrência?
O Wacs é um consórcio em que participam vários operadores de vários países. E o próprio acordo do consórcio permite que qualquer membro tenha possibilidade de usar uma estação terminal de outro país. Assim como a própria Angola Cables tem terminais, se não estou em erro, na Nigéria e na África do Sul. Porém o que acontece aqui é que a Angola Cables não permite que outros operadores entreguem serviços a terceiros a partir da sua estação terminal aqui em Luanda, em Cabo Ledo. E isso condiciona obviamente os preços. Indo até um pouco com aquilo que são as próprias regras do consórcio do Wacs. É uma situação 'sui generis', mas é a realidade.
A AGT tem feito muitos contactos e encontros com associações empresariais e empresários. Alguma vez foi dada a oportunidade de as empresas de tecnologias exporem as suas questões em relação às reformas?
Já. E inclusive por via do próprio Ministério das Telecomunicações e Comunicação Social. As empresas já mandaram o seu ponto de vista, inclusive apresentaram algumas propostas. Mas não houve qualquer mudança.
Com tantos desafios, que caminhos?
Além do que vem no ABC de gestão em crise, é acreditar no país. A economia em Angola ainda é muito incipiente. Mas acreditamos que a curva em algum momento vai mudar de sentido. Angola tem um potencial económico muito grande e ainda há bastante espaço, na área de telecomunicações e particularmente nas infra-estruturas de telecomunicações e transmissão terrestre, para crescer, há mercado. O que oferecemos ainda é muito pouco para aquilo que poderão ser as necessidades do país. Angola não pode crescer se não tiver tecnologias. As tecnologias trazem eficiência e eficácia. E isso são factores diferenciadores na competição e na concorrência. Hoje, quando estamos a falar em concorrência, não estamos a falar apenas em Angola. Para relançarmos a economia, temos de falar em mercados não só interiores, mas também exteriores. Em mercados globais. O mundo é globalizado. E a economia angolana relançada também terá de o ser. O agricultor de tomate, lá na minha terra, em Kalandula, terá de competir nas mesmas circunstâncias que um agricultor na Namíbia, África do Sul, ou, eventualmente, no Brasil, que utilize tecnologias na produção.
É a hora de as empresas angolanas começarem a pensar global e não apenas internamente?
Não vejo alternativa. Angola, por mais que queira, não conseguirá bloquear as fronteiras aos produtos e serviços do exterior. Obviamente, que poderá aumentar as taxas alfandegárias e dar incentivos fiscais aos produtores nacionais. Isso é correcto. Mas agora, como aconteceu com alguns produtos da cesta básica, bloquear por decreto a importação de produtos, não conseguiremos fazê-lo por muito tempo, por causa dos acordos bilaterais e multilaterais na troca de produtos e serviços. Só nos resta um caminho, que é jogar com as mesmas armas dos outros: entrar na revolução 4.0.
Não pensa que, apesar das pressões de alguns gigantes da OMC, o Governo está a agir muito bem e deve arriscar e proteger a sua produção?
Qualquer Estado deve proteger e catalisar a produção interna. Mas isso não deve ser feito por via do bloqueio absoluto da importação. Há outros métodos para nos tornarmos mais competitivos. Um deles é o método das taxas alfandegárias. O outro é o crédito aos produtores nacionais e incentivos fiscais. Há uma série de métodos que fazem com que os nossos produtos se tornem realmente mais baratos e com qualidade suficiente para competirem com produtores internacionais. Porém, percebo um bocadinho o que terá acontecido com esta medida do Governo de bloquear alguns produtos de importação. Provavelmente, foi para quebrar alguns cartéis que condicionam a produção interna e, com interesse na importação, tomam conta de todo o ecossistema. Por exemplo, em cereais como a farinha de trigo ou alguns outros produtos. Parece haver aí alguns interesses um pouco até obscuros e talvez tenha sido isso que levou o Governo a tomar esta medida mais drástica.
Como olha para estratégia nacional de banda larga?
Abstenho-me de comentar directamente a estratégia do Governo. Eu próprio fico confuso de saber qual essa estratégia de banda larga. Não conheço nenhum documento mais concreto sobre essa estratégia a não ser o que vem no livro branco das telecomunicações.
Há demasiadas críticas de alguns operadores em relação ao estado da rede nacional de fibra óptica. O que pode ser feito para melhorar a rede?
A rede nacional de fibra óptica foi construída alinhada com a construção das estradas. Os dois factores tiveram influência. O primeiro foi não se ter partilhado infra-estruturas de telecomunicações. Se for até Benguela, vai perceber que todos os operadores estão do mesmo lado da estrada, todos levam fibra óptica. Se houver um desabamento de terra, rompe com a fibra óptica de todos os operadores. Se tivesse havido uma visão mais global, na construção desta infra-estrutura nacional, poder-se-ia ter um operador de um lado da estrada e outro ter-se-ia consignado outra trajectória de modo a formarmos autênticas redes no país. Não foi feito. Agora começa-se a falar mais incisivamente da partilha de infra-estruturas e isso vai provocar duas coisas: vai fazer com que mais rapidamente os operadores expandam as redes e que essas redes se tornem complementares umas das outras. Formando redes redundantes. Já está legislado em decreto presidencial, mas ainda faltam alguns aspectos do ponto de vista regulamentar. Essa lei tem de ser melhor regulamentada para que a efectivação prática tenha os resultados que todos esperam.
Esse decreto da partilha de infra-estruturas já existe há algum tempo. Que caminhos concretos é que deviam ser trilhados para que isso se efective?
Espero que as coisas andem neste quesito e comecem a fluir. Agora fala-se mais e existem mais intenções. Existem algumas acções muito incipientes. Mas provavelmente o passado recente de monopólios nas telecomunicações tenha levado a que o decreto presidencial, de 2014, não tenha avançado. Há avanços e recuos. Em algumas áreas, há a abertura de partilha, mas, em outras, há um sentido inverso, de tornarem menos partilhadas algumas infra-estruturas.
A que se refere quando fala de avanços e recuos?
Alguns avanços, e que já se começa a ver por parte do regulador, são um acompanhamento mais de perto dos novos projectos e a possibilidade desses novos projectos, independentemente do investidor, serem partilhados. Hoje, o operador já requer que estes projectos passem pelo Inacom e seja feita uma consulta a outros operadores para a partilha. O próprio Inacom incentiva a partilha de infra-estruturas. Mas estamos a falar das nacionais. Nas saídas internacionais, ainda existe bastante relutância.
Como está a relação da ITA com o regulador?
A nossa relação é óptima. Não podia ser de outra forma. Cumprimos integralmente o estipulado. Participamos em eventos realizados pelo operador. Damos o nosso parecer em diferentes temas. Pode não ser 100% consensual, mas é boa.
A pandemia trouxe muitos desafios para as empresas. O que é que mudou na estratégia da ITA?
A pandemia afectou a economia no seu todo. No nosso portfólio, como aviação, turismo e mesmo do óleo e gás, os nossos clientes cancelaram ou reduziram substancialmente os serviços de telecomunicações devido à redução drástica das actividades. O efeito da pandemia sobre a economia teve um efeito muito particular no negócio em que a ITA está inserida, que é o segmento empresarial. Também é verdade que a pandemia trouxe outras oportunidades devido à necessidade de algumas organizações e empresas ficarem ligadas. Porém, entre ganhos e perdas, tivemos um impacto negativo. Tivemos aproximadamente 10% de perdas de receitas por efeito directo da pandemia. Os desafios não se cingem apenas ao negócio, mas também a operação das empresas. Apesar de os serviços das telecomunicações estarem no grupo de serviços essenciais, o confinamento também condicionou a circulação das equipas pelo país, a vinda de especialistas e a importação de equipamentos o que resultou em alguns problemas operacionais em alguns projectos.
Fizeram planos de contingência?
Sim. Fizemos planos de contingência e de continuidade do negócio. Tivemos de garantir na operação de empresas e distribuição de ‘stocks’. Por exemplo, tivemos de rever o portfolio de projectos nesta fase e renegociar contratos para acomodar a continuidade de serviços dos nossos clientes. É um momento desafiante e continua ainda a ser.
Diz-se que as empresas de tecnologias são as que mais lucram com a pandemia. No caso da ITA, é o contrário?
Se olharmos pelo contexto geral, talvez não tenhamos sido o sector com maior afectação negativa. Mas no geral houve. Temos contactado outras empresas do sector e houve redução de receitas. No caso da ITA, temos um segmento de mercado que é o empresarial e apesar de as empresas terem passado a fazer muito trabalho remoto, o negócio diminuiu. Na banca, o facto de ter muito pessoal a trabalhar remotamente tirou-nos grande parte de tráfego naquilo que é o ‘core’ da rede. É aí onde está o nosso negócio. Dei uma primeira estimativa de 10%, mas poderá chegar aos 12% de perda de receitas até ao final do ano.
Quais são os vossos planos daquilo que foi a estratégia inicial até ao final do ano?
A ITA tem uma estratégia muito clara. Estamos no mercado há 15 anos. Começámos com ‘internet service provider’ e hoje somos um operador de multisserviços que nos permite fazer de tudo, com excepção da telefonia móvel. O grande salto da nossa empresa foi justamente em 2014, quando passámos ‘ISP’ para operador. Foi quando começámos a investir na rede nacional. O ‘ADN’ da ITA é de contínuo reinvestimento mesmo em situações não muito favoráveis do ponto de vista da economia. O alarme da crise foi dado em 2014 e foi justamente aí que começámos e continuamos a apostar. Isso levou a alguma experiência em lidar com situações adversas. E é isso que estamos a fazer. Ajustámos o nosso ‘portfolio’ de projectos. Este ano, gostaríamos de ter a cobertura do país inteiro em transmissão terrestre e ainda não a temos. Eventualmente, se não tivéssemos tido alguns condicionalismos da pandemia, estaríamos a completar a cobertura total em transmissão terrestre.
Não vamos conseguir, porque a pandemia trouxe atrasos na importação de equipamentos. O próprio sistema bancário também se tornou mais lento nos pagamentos para o exterior. Faremos mais uma província eventualmente este ano. Que poderá ser Kuando-Kubango. Mas as do Leste ficarão para o próximo ano.
Como é continuar a investir com uma economia em recessão, quando muitas empresas fecharam e continuam a fechar portas?
É um exercício de alguma arte. Mas acreditamos em Angola. Somos uma empresa de capital 100% privado. Os investimentos têm sido de constantes reinvestimentos. Adoptámos uma estratégia de contenção de custos, de investimentos assertivos. Temos conseguido investir com bastante eficiência e eficácia. Conseguimos fazer com pouco e atingir os nossos objectivos. Investimos, por exemplo, na expansão da nossa rede pelas províncias, em transmissão nacional tanto em micro-onda como em fibra óptica. Hoje, temos uma cobertura do país desde Massabi até ao Namibe, no interior, apenas com excepção do Leste. E isso fez com que hoje sejamos uma referência no mercado e até tivéssemos aberto outro segmento que é do transporte de tráfego de outros operadores. Isso tem feito suportar o nosso negócio num momento de bastante retracção da economia.
Quanto é que já foi investido até agora pela ITA principalmente na expansão da rede?
Grosso modo temos vindo a investir anualmente acima dos 15 milhões de dólares. O ano passado, investimos na construção de um data center que é seguramente o maior de Angola e um dos maiores da África Austral. Os nossos investimentos anuais oscilam entre os 15 e 20 milhões de dólares.
Como estão os planos de internacionalização?
Prestamos alguns serviços a alguns clientes fora do país por satélite. Mas também somos parte integrante de um grupo de telecomunicações em África que é a Paratus, parte integrante e fundadora deste grupo, que tem presença, além de Angola, na Namíbia, Zâmbia, Botsuana, África do Sul e Moçambique.
Perfil
Eng Francisco Pinto Leite, nascido e criado em Angola, na Gabela, formado em Engenharia Electrónica e Telecomunicações pela Universidade Agostinho Neto, pós-graduado em Gestão de Projectos pela Universidade Católica de Brasília.
Nos mais de 30 anos experiência profissional, construiu uma carreira solida e de sucesso no sector das telecomunicações nas empresas por que passou, como Sistec e MS Telcom.
Actualmente exerce a função de Director Geral da ITA, uma multinacional que opera em Angola no mercado das Telecomunicações, o maior operador privado de Telecomunicações para empresas de Angola.
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