“As empresas brasileiras não têm interesse em sair de Angola”
Está em Angola desde final do ano passado e trouxe consigo, na agenda, uma missão clara: reforçar as exportações do Brasil e aumentar a presença de empresas brasileiras em Angola. Numa entrevista exclusiva ao VALOR, Paulino Neto admite a reabertura da linha de financiamento do BNDES, interrompida pela ‘Lava Jato’. E declara que a maior operação contra a corrupção na política brasileira em que se mencionam figuras angolanas não abalou a relação bilateral. Sobre as empresas brasileiras, afirma que querem permanecer em Angola, apesar da crise.
Comecemos pelo tema que marca a conjuntura da relação entre o Brasil e Angola, a operação ‘Lava Jato’. Algumas delações já conhecidas implicam o poder angolano, nomeadamente na relação com a Odebrecht. Está em risco a relação entre os dois países?
Não. As relações políticas entre Angola e o Brasil continuam perfeitamente. São relações que funcionam. As visitas de altas autoridades continuam. O Brasil está a ocupar a presidência da CPLP e vamos promover a reunião de ministros e o ministro das Relações Exteriores de Angola deverá aparecer. O ministro da Agricultura irá ao Brasil, e o ministro da Justiça também.
Mas o processo levou, por exemplo, à interrupção da linha de financiamento do Banco de Desenvolvimento Económico e Social do Brasil (BNDES). Há obras suspensas e empresas paradas em Angola. Isto ‘mina’ as relações ou admite que o financiamento seja reaberto?
Há, sim, uma possibilidade, mas depende de tratados entre o governo brasileiro e as empresas que recorreram aos empréstimos. As negociações estão em curso e nós temos mantido contactos com as autoridades angolanas para que se possam levar adiante essas negociações e as empresas possam ter obras e serviços financiados em Angola.
Pessoalmente, concorda com a ‘Lava Jato’? Como vê a operação?
É um processo que está em curso. O poder judiciário está a cumprir o seu papel, as empresas que são alvo de um processo judicial têm prestado a colaboração necessária com o Ministério Público e têm procurado, na medida do possível, acertar e corrigir os erros cometidos no passado. Esse é um processo que já vem de alguns anos, é um processo doloroso, em que todos estão a aprender muito. Criou imensas dificuldades no Brasil e em outros países, mas está a ser superado e a demonstrar a força das instituições brasileiras, que resistem às dificuldades que não são pequenas.
Uma dessas dificuldades será, por exemplo, a forma como a Odebrecht ficou posicionada em Angola?
Pode estimar o quanto a empresa ficou afectada em relação a projectos? Não posso falar em nome da empresa. Só posso, já que se trata de uma empresa brasileira, falar em nome do Brasil e do Governo institucionalmente em relação à presença e actuação das empresas. O que posso dizer é que essa empresa participou e participa, e creio, participará do processo de desenvolvimento de Angola. Prestou imensas relevâncias, o que é público e é notório. Tem colaborado não só com Angola, mas com outros tantos países.
Mas pensa que a ‘Lava Jato’ pode inibir novos investimentos brasileiros em Angola?
Não. As empresas brasileiras continuam interessadas e têm procurado investir. O que provoca retracção é a conjuntura económica no Brasil. Houve uma recessão muito grande e intensa, principalmente em 2014 e início de 2016, e também em Angola com a redução do preço do petróleo e com a redução das importações e financiamento de obras e projectos.
E o ‘embargo’ que Angola colocou às empresas visadas na operação ‘carne fraca’, criou algum abalo nas relações?
Não houve propriamente um embargo. Houve uma demora, na análise da importação de produtos brasileiros, que foi superada depois. Houve uma decisão do ministro da Agricultura angolano, no sentido de manter a importação de carne brasileira, com excepção de 21 estabelecimentos que também foram proibidos de comercializar carne no Brasil e para outros países, de modo geral. Mas estes estabelecimentos correspondem a um universo pequeno na área de produção de carne, no Brasil, que possui mais de quatro mil estabelecimentos nessa área. Pelo contrário. Acredito que foi importante, porque, de lado a lado, houve a possibilidade de um diálogo mais intenso, tanto entre as duas embaixadas, aqui em Luanda e em Brasília. Os ministros da Agricultura do Brasil e de Angola conversaram muitas vezes por telefone. O secretário de Estado da Agricultura de Angola já esteve no Brasil, o ministro da Agricultura irá ao Brasil. As relações dessa área económico-comercial, especificamente no sector da pecuária, são intensas.
Diria que a relação entre os dois países, neste momento, é estável?
As relações continuam no mesmo espírito de fraternidade e de amizade, franqueza e colaboração. Não houve mudanças de rumo, o que há são novas circunstâncias, especialmente económicas tanto no Brasil como em Angola que favorecem ou desfavorecem, dependendo do período, o incremento ou não das relações económicas comerciais. Mas, como digo, as crises económicas em qualquer país são conjunturais, não duram para sempre. São momentos específicos de cada país que, por diversas razões, passam. Seja porque há uma crise internacional económica, redução da actividade económica, os preços das ‘commodities’ baixaram ou reduziram, seja por outras razões. Às vezes, até, as razões são de política económica, mas que rapidamente são corrigidas. Os dados mais recentes indicam que já há uma mudança na curva, já estamos numa curva ascendente de crescimento e redução de inflação.
E qual é o reflexo dessa “curva ascendente” nas relações comerciais com Angola? Em 2014, o Brasil era o 14.º destino das exportações angolanas...
No ano passado, o Brasil exportou para Angola 539,7 milhões de dólares. Houve uma ligeira queda em relação a 2015, em que as exportações foram de 647,9 milhões de dólares. Angola, por sua vez, exportou para o Brasil apenas 31,8 milhões de dólares em 2015 e, em 2016, houve um pulo para 71,9 milhões de dólares. Isso ainda é muito pouco, porque, na década passada, o comércio bilateral de importações-exportações entre os dois países chegou a atingir quatro mil milhões de dólares, mas, pelas razões que são conhecidas, houve uma queda.
A carne e o petróleo dominam essas transacções...
Precisamente. No caso das exportações brasileiras, esses valores correspondem a carnes industrializadas, resfriadas e congeladas, produtos industrializados comestíveis, açúcar, trigo, farinha de mandioca. A carne foi o produto mais importado por Angola. Do valor total de 2016, referente às importações de Angola, a carne deve ter correspondido a 20% ou 25%. As importações do Brasil foram basicamente os combustíveis.
Está em Angola há pouco menos de um ano. Este quadro da relação comercial é qualquer coisa a mudar?Quais são as suas prioridades?
Cheguei no final do ano passado e, para além dos temas económicos e comerciais que são sempre importantes, queremos reforçar, cada vez mais, a presença do Brasil em Angola seja por meio da importação de produtos brasileiros, mas principalmente com a vinda de empresas para que possam colaborar no processo de diversificação da economia angolana. O Brasil tem possibilidades e condições principalmente agora em que a economia dá sinais claros de retomada de crescimento.
O que os empresários brasileiros, em termos concretos, podem oferecer a Angola?
Podem colaborar na medida das suas possibilidades, usando o seu ‘know-how’ e capacidade empreendedora para participar do desenvolvimento económico de Angola. O Brasil tem uma economia razoavelmente complexa em diversos sectores, mas há algum aspecto que chama atenção pela competitividade e eficiência, como o sector do ‘agrobusiness’ e agricultura. Hoje o Brasil é um dos maiores exportadores agrícolas do mundo. A agro-indústria é um caso de sucesso. E a agricultura tem estado a dar impulso à economia brasileira já que o sector industrial está numa fase de adaptação e a sair da recessão. Outra área que se pode colaborar muito é a de serviços bancários e internet.
Mas perante este cenário, o que lhe têm dito os empresários brasileiros, em relação à crise em Angola?
A notícia mais positiva que tenho dos empresários é a de que as empresas que estão a operar em Angola querem continuar em Angola. Não têm interesse em sair do país. Acreditam na economia e no país.
Mas de que forma fazem face à crise?
Para a minha surpresa, as empresas brasileiras têm manifestado interesse em continuar em Angola. Há naturalmente dificuldades, há créditos de exportadores brasileiros que ainda não receberam. É uma dificuldade conhecida por todos. É importante que a política económica de Angola siga no sentido de procurar minorar essas dificuldades e encontrar novos caminhos para que a economia possa crescer de novo.
Houve empresas brasileiras que deixaram de operar por causa da crise?
Que eu saiba, não! Pelo menos as grandes continuam aqui. As empresas pequenas têm uma capacidade de flexibilidade maior de reduzir negócios, suspender actividades por algum tempo. Tenho contactos com seus empresários e executivos brasileiros que estão cá e continuam em Angola.
Sobre a facilidade de fazer negócios em Angola, que informações tem?
A competição é grande. Angola é um país com muitas potencialidades. Empresários de outros países também estão cá. Alguns países têm mais condições de financiar os seus investidores e exportadores do que o Brasil. O Brasil passou por uma crise fiscal muito grande, que, de certa maneira, impediu que as empresas brasileiras pudessem ter um suporte, um apoio de agências de exportação e financiamentos. Há países maiores como a China que tem uma economia que exerce uma influência clara. Os empresários brasileiros ressentem-se disso. Mas é importante sublinhar que a economia brasileira e empresários têm uma capacidade muito grande de se adaptar a muitas condições. Têm uma versatilidade muito grande.
Fora a questão comercial, neste momento, que acordos políticos existem entre os dois países?
Há diversos acordos em diversas áreas. Em Julho, o Brasil trará um grupo de técnicos do Ministério da Saúde da Agência Brasileira de Cooperação para encontros e reuniões no Ministério da Saúde de Angola para procurar reforçar a colaboração na área da saúde, nomeadamente na área da oncologia, no combate às doenças tropicais e de formação de recursos humanos. Nessa área de formação de recursos humanos, tem havido uma colaboração tradicional desde o início das relações entre os dois países. Temos um programa que fornece bolsas de estudo a universitários angolanos que queiram estudar no Brasil. Os cursos são gratuitos.
Há muitas queixas de angolanos sobre a burocracia e as dificuldades na obtenção de vistos para o Brasil…
E vice-versa. As dificuldades existem, mas foram diminuídas e muito desde que cheguei a Angola, com o aperfeiçoamento e funcionamento do sector consular. Mas há obrigações que são de ordem legal no Brasil de que não devemos nos furtar. Como Angola também tem de cumprir. O que posso assegurar é que o Brasil tem concedido vistos de turistas com validade de um ano, com múltiplas entradas, desde o ano passado, com base num acordo que assinámos em Angola. Mas também vistos de trabalho com validade de dois anos e múltiplas entradas.
Mas Angola...
Mas Angola ainda não oferece esse tipo de facilidades a cidadãos brasileiros que queiram vir cá. Entendo, contudo, que a situação vá mudar nos próximos tempos. Há um movimento muito intenso. No ano passado, emitimos 25 mil vistos de turistas de negócios e estudantes. O que temos é a demora no processamento. Muitas vezes, o requerente não leva a documentação completa; há casos de pessoas que trazem documentos falsos e isso criou uma dificuldade no consulado, mas que já está superada. Proximamente, vamos estabelecer contactos com uma empresa que vai prestar um serviço no processamento.
E o valor exigido de salário mínimo para se obter o visto? Fala-se em 450 mil kwanzas. Houve várias reclamações...
Não é verdade. Antes da minha chegada, era uma das condições, não era uma condição única o salário de 450 mil kwanzas. Esse valor não é uma exigência desde há sete meses. Isso é uma lenda urbana. Já não está em vigor esse valor. O valor do visto para se entrar em Angola foi aumentado para mais de 40 mil, porque o Governo angolano também aumentou o valor cobrado pelos emolumentos consulares. O que recomendo é que se evite a contratação de agências de viagens ou intermediários para evitar pagamentos acima das taxas dos emolumentos.
A embaixada, de resto, já emitiu uma nota a aconselhar os utentes neste sentido?
Exactamente. Não há necessidade de contratar serviços. Houve funcionários, no ano passado, antes da minha chegada, que estavam a cobrar indevidamente taxas. Esses funcionários foram não só demitidos como estão a ser processados e alguns foram presos, porque é um absurdo que se faça isso. Esse problema de emissão de vistos não diz respeito só ao Brasil. Mas, a bem da verdade, as dificuldades dos cidadãos brasileiros para obter vistos para Angola são mais difíceis do que as dos cidadãos angolanos cá.
Quais são as dificuldades?
O cidadão brasileiro não recebe visto de múltiplas entradas, quando deveria receber pelo acordo entre os dois países.
O Brasil apresentou essa reclamação?
Não é uma reclamação, mas é um assunto que foi tratado a nível político. E o que ficou acordado é que haveria essa mudança.
Em média, qual é a frequência de entrada de cidadãos brasileiros em Angola?
O número de brasileiros tem aumentado, mas não é o mesmo número de angolanos que entram no Brasil. Por causa dos voos directos da TAAG, a tendência tem melhorado. É a única companhia que faz voos directos, não há nenhuma brasileira. Angola tem servido até de porta de entrada para outros destinos, como a Namíbia e África do Sul.
O que acha que os brasileiros podem encontrar em Angola, como destino turísitco?
Os brasileiros podem encontrar aqui as belezas de Angola, as afinidades, a língua... O que desestimula é o custo de vida que é muito alto. A cidade de Luanda é cara. Sei que uma consultora classificou Luanda recentemente como a cidade mais cara.
O Brasil tem sido muito solicitado na concessão de asilo por angolanos. A que se deve essa tendência?
Infelizmente, alguns cidadãos angolanos recorreram a algumas facilidades que a legislação brasileira oferece de fazer a solicitação de refúgio. Mas o entendimento das autoridades brasileiras é que o pedido de refúgios de cidadãos angolanos não faz sentido. As pessoas pedem asilo por perseguição política e esse não é o caso. Essa facilidade já não é possível. Foi suspensa.
Em relação à CPLP, como avalia a participação angolana?
Entendo que Angola tem uma participação muito activa na CPLP, sem dúvida. É dos países do continente africano de expressão portuguesa que tradicionalmente sempre participou, sempre esteve muito próximo do Brasil. É uma pergunta que os colegas de Angola deviam responder.
As eleições em Angola estão à porta. O que é que espera?
A comunidade diplomática tem acompanhado o processo eleitoral em Angola, que tem sido muito interessante de acompanhar e tem sido exemplar.
Em que medida o resultado eleitoral pode influenciar as relações entre Angola e o Brasil?Ou mantêm-se independentemente de quem ganhe?
Com certeza. São relações de Estado e de países. Não nos relacionamos com os partidos, mas com os países.
Antes da crise política motivada pela ‘Lava Jato’, houve o ‘impeachment’ de Dilma Rousseff. Como viu todo esse processo?
Não me cabe fazer comentários de ordem pessoal, pelo cargo que ocupo. O que posso dizer é que as instituições brasileiras têm cumprido com um papel que lhe cabe cumprir nessas ocasiões, seja no poder executivo, legislativo e no judiciário e o ‘impeachment’ é um mecanismo previsto na constituição e pode ser aplicado em determinadas circunstâncias. E não são meras formalidades. A meu ver é uma prova de que a democracia no Brasil funciona plenamente.
PERFIL
Paulino Franco de Carvalho Neto é natural de Curitiba (Brasil), ingressou na carreira diplomática em 1985. É formado em diplomacia e administração pública, no Brasil. Entre as funções desempenhadas nos últimos anos estão a de director do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos, tendo ainda sido chefe da Divisão do Meio Ambiente e chefe da Divisão de Serviços Gerais. Já foi diplomata na Suíça, Itália e Chile.
JLo do lado errado da história