NOS CONTRATOS CELEBRADOS EM DÓLARES, POR CAUSA DA FLUTUAÇÃO CAMBIAL

Bancos duplicam taxas de esforço e sufocam clientes com crédito habitação

CRÉDITO BANCÁRIO. Clientes viram a prestação mensal duplicar com a alteração do regime cambial. Alguns ponderam entregar as casas aos bancos. AADIC cita Millennium Atlântico e BIC como os que acumulam mais queixas. Tribunal tem sido a ‘arma’ de ambos os lados.

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Vários clientes com credito à habitação em diferentes bancos, e cujos contratos estão indexados ao dólar, estão a enfrentar dificuldades por verem o valor da prestação mensal disparar em mais de 50% desde que o Banco Nacional de Angola (BNA) adoptou o regime de taxa de câmbio flutuante, em Janeiro.

Muitos relatam que se tornou “insustentável” conciliar as despesas correntes com o pagamento ao banco, por “todos os meses existir um novo pacote de dívida e um valor novo para pagar”. Edson dos Santos (nome fictício, por temer represálias) teve de reunir a família para decidir abandonar a moradia por já não ser possível pagar ao banco, visto que a taxa de esforço, que era de 40% do seu rendimento, tem quase ‘engolido’ o salário. Solicitou o empréstimo ao Banco BIC em 2011, com o pagamento a 30 anos e uma prestação mensal de 123 mil kwanzas. Desde Janeiro que o pagamento mensal subiu para os 272 mil kwanzas. “Já não consigo cobrir as despesas dos meus filhos, nem da minha própria viatura (para abastecer ou levar à revisão). Não estou a conseguir viver”, lamenta.

Um outro cliente, que também pediu anonimato, solicitou crédito ao BFA, para pagar em 15 anos, a compra de uma casa num condomínio em Talatona, e, desde Janeiro, que todos os dias tem uma nova dívida. O banco tem-lhe retirado mais do que o acordado como taxa de esforço. Para ele, a situação só não é tão pesada, porque colocou a casa a arrendar e tem pago a prestação mensal com esses valores e outros rendimentos, mas a habitação está desocupada há dois meses e por isso deixou de pagar ao banco. “Já tenho dois meses de dívida. Nunca aconteceu. A minha casa sempre esteve arrendada. Como as casas desvalorizaram muito nos últimos anos, já os clientes não querem pagar o que chega para cobrir ao banco. Não posso pagar com o meu salário porque, se não, não resta nada.”

“Prática abusiva”

Ao VALOR, a Associação Angolana dos Direitos do Consumidor (AADIC) considera a prática dos bancos “abusiva” e “fora da lei”, revelando que tem todos os dias mais de cinco a seis casos de pessoas com “sérias” dificuldades em honrar com os compromissos bancários devido ao regime cambial. O director adjunto do gabinete jurídico da associação, Jordão Coelho, considera a situação “anormal” e revela que os clientes, quando vão fazer um empréstimo bancário em dólares, os bancos devem fazer a simulação da variação cambial, o que, explica, não foi feito em nenhum dos casos que está com a AADIC. “Há uma taxa de esforço, que é o valor que o banco determina. No caso, tem sido 40% do salário ou do rendimento do devedor e os outros 60% é para sobreviver. Se os 40% for significativo, o banco não pode conceder os créditos. E os bancos têm ultrapassado o limite da taxa de esforço”.

A AADIC entende que o banco tinha de se adiantar à situação e é “abusiva” a retirada do dinheiro do consumidor nas modalidades praticadas, sendo considerado um “comportamento iníquo”. “As entidades bancárias têm, como fim, o lucro, mas devem ter em conta que quem faz os bancos são os consumidores.”

A associação tem acompanhado o caso de um cliente que contraiu um empréstimo de 250 mil dólares, tendo já pago 120 mil dólares. Mesmo com o valor pago, o banco intentou uma acção para penhorar a casa, por causa do incumprimento. “Não é que não se pague, mas o valor hoje estipulado com o câmbio flutuante não está ao seu alcance. Ao invés de chegar a acordo com o cliente, para alargar o período, o banco foi directamente para o tribunal. O tribunal deu razão ao banco e vão ficar com a habitação.”

A associação recebeu também o caso de trabalhadores da empresa pública de seguros, a ENSA, em que mais de 200 funcionários receberam crédito bancário do BIC a uma taxa de juro inferior a que era praticada (de 16% para 8%). Ainda assim, muitos deixaram de ter condições para pagar ao banco.

Um dos trabalhadores da ENSA, que falou sob anonimato, conta que, desde 2016, que os funcionários têm sofrido descontos que vão além do estipulado e que se tornou “mais desconfortável” no início do ano. O técnico da ENSA revela que tem colegas que estão a sofrer descontos de 70% do salário base e, para sobreviverem, pedem sempre um mês de salário adiantado. “Tenho estado a aguentar. Já escrevemos à empresa, visto que o crédito foi feito num convénio, mas sem sucesso. Levámos o caso à AADIC para ver as irregularidades do processo. Quando pedimos o crédito, fizemos uma simulação da taxa de esforço. Ainda não tenho sofrido grandes constrangimentos, porque fui promovido e aufiro um salário melhor. Se não tivesse tido essa sorte, hoje, de acordo com o meu contrato, o banco estaria a retirar 90% do meu salário”.

Os trabalhadores já estiveram reunidos com o banco para colmatar a situação e converter o pagamento em kwanzas, mas o banco informou que, mesmo assim, iriam ser afectados com o câmbio flutuante. “Não aceitamos essa condição”, reclamam. “Desde Janeiro que tenho pago mais de 200 mil kwanzas, quando antes pagava 82 mil kwanzas. O pico mais alto aconteceu de Dezembro a Janeiro. Estou a pagar o crédito desde 2011, tendo começado nos 10 milhões de kwanzas e já vou a caminho do triplo do valor da prestação”, lamenta um dos clientes.

Alguns trabalhadores endereçaram cartas ao BNA e ponderam levar o banco BIC a tribunal, se se provar que está a agir na ilegalidade. A AADIC também pondera requerer uma providência cautelar para proteger os direitos dos consumidores.

A associação considera o banco Millennium Atlântico como o que tem mais queixas dos clientes e o banco BIC como sendo o mais “irredutível com as práticas abusivas e que mantém a insistência no erro”.

O VALOR contactou os bancos BIC e Millennium Atlântico, mas não obteve respostas até ao fecho desta edição.