Especialistas divergem sobre importação para reserva alimentar e questionam dados da Agricultura
PRODUÇÃO. Produtores, empresários e agrónomos lançam várias dúvidas sobre a operacionalização da reserva e a sua atribuição a uma única empresa.
Reserva Estratégica Alimentar (REA) começou a ser operacionalizada no final do ano passado, com 11 produtos e desde essa altura que se instalaram várias polémicas em torno de todo o processo. Desde as dúvidas sobre a empresa que está a gerir a REA à importação dos produtos que fazem a reserva, e ainda pela forma como serão disponibilizados os produtos.
Ao Valor Económico, produtores, empresários e agrónomos divergem sobre vários pontos. Há quem acredite que Angola não precisa de importar determinados produtos e outros argumentam que, sem importação imediata, não é possível constituir a reserva alimentar.
O proprietário da fazenda Vinevala, Alfeu Vinevala, nota que Angola só tem condições de fazer reserva de milho e feijão apenas com a produção nacional. E os restantes produtos devem mesmo ser importados, para já.
Alfeu Vinevala explica que o país tem, por exemplo, duas fases de produção. E, para adquirir esses produtos para a reserva, o Governo deve apenas criar um fundo e ficar “atento”. “Esta reserva vai acudir nas fases em que a produção é escassa. O país produz volume de produção de milho já muito superior, mas não há a atenção para controlar. Neste momento, o país tem muito feijão”, afirma.
O empresário critica os governantes e garante que o país já “produz muito milho” e a informação só não chega ao conhecimento do público, porque “não se ouve a voz” dos que produzem. “Os produtores no Sul estão a produzir muito. Na semana passada, estive em seis províncias. O que estou a ver de produção o país já deixou de fazer há muito tempo”, insiste.
Já o agrónomo Fernando Pacheco acredita que Angola “não tinha a possibilidade” de fazer a totalidade da reserva com a produção nacional. “Infelizmente, as estatísticas são o que são e têm pouca credibilidade. E, quando surgem situações como esta, a verdade vem ao de cima”, afirma.
O agrónomo assegura que todos os dados divulgados, na comunicação social, sobre os milhões de toneladas que Angola produz “não são verdadeiros”. “Isso faz com que não haja possibilidade de fazermos a reserva com recurso à produção nacional”.
Fernando Pacheco realça, no entanto, que isso “não significa que Angola não possa definir uma estratégia que possa contribuir para alavancar a produção nacional e ver até que ponto ela pode contribuir com parte”.
O agrónomo também rebate as declarações de alguns ministros, que ocuparam a pasta da agricultura, sobre a capacidade de Angola conseguir, em poucos anos, atingir a auto-suficiência alimentar. “Não passam de intenções voluntaristas e não há hipóteses, porque a produção está aquém das necessidades”, argumenta.
Fernando Pacheco critica também a atribuição da gestão da reserva a apenas uma empresa, a Gescesta, ligada ao Grupo Carrinho, lembrando que Angola tem uma “má experiência” com os monopólios. “Tudo o que significa demasiada concentração não é positivo. Os processos de grande dimensão têm sempre problemas de gestão e desvios na medida que não temos capacidade de gerir processos complexos. Dir-me-ão que é uma empresa privada. Que seja privada, porque vimos, ao longo dos anos de reconstrução nacional, empresas privadas que falharam completamente. Se uma empresa privada tem capacidade de fazer cinco, não se deve pedir para fazer cinco mil. A empresa que venceu o concurso não tem experiência nesse tipo de gestão. Se não tem, não deve começar com volumes de grande dimensão”, alerta.
O secretário-geral da Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente (ADRA), José Katiavala, entende que é “possível Angola suportar a reserva com a produção nacional, mas alerta para a “falta de investimentos sérios” na agricultura que inviabilizaram essa possibilidade.
José Katiavala afirma que os últimos relatórios do Ministério da Agricultura provam que o país tem um défice na produção de cereais.
Na campanha agrícola de 2019/2020, a produção de cereais foi de três milhões de toneladas e o país tem uma necessidade de consumo de milho de cinco milhões de toneladas. “A medida do Governo é legítima. São os Estados que devem assegurar a alimentação das populações. Um Estado que não consegue assegurar o direito de as pessoas se alimentarem correctamente pode ter a sua soberania beliscada”, defende.
Um outro agrónomo, que não quis ser identificado, salienta que o Estado tinha capacidade de fazer reserva com a produção nacional e que a forma como o processo está a ser gerido passa a ideia de quem está à frente “não sabe o que é uma REA”. O agrónomo adianta que “só não foi feita a REA com a produção nacional porque dá trabalho e não daria tanto dinheiro para os bolsos das pessoas”. O agrónomo questiona-se o porquê de o Ministério do Comércio gerir a reserva quando naturalmente a entidade que o devia fazer seria o Ministério da Agricultura. “São coisas que não fazem qualquer sentido. O processo já esteve com o Ministério da Agricultura e não sei como foi parar ao Comércio. E não se fazem reservas com tantos produtos. Bastava uns quatro ou cinco. Outro erro é incluir produtos não secos na reserva”, observa.
O Valor Económico apurou que, quando esteve em discussão a proposta da reserva no Ministério da Agricultura, apenas cinco produtos faziam parte da lista. Inicialmente, foram equacionados o milho, açúcar, sal, trigo e óleo vegetal. Depois houve a necessidade de incluir mais um, o arroz.
O líder dos empresários do Cuanza-Norte, Gilberto Simão, defende que o Governo devia impor-se nessa importação de produtos da cesta básica, porque, de contrário, só estará a facilitar a vida aos cartéis que há muito mandam no mercado. “As importações devem ir a concurso e serem bem vigiadas. Se o importador manuseia 100 milhões de dólares para colocar aqui o milho, ou o arroz, devia ser obrigado a aplicar 10% desse valor para alavancar a produção interna”, sugere.
Gilberto Simão, que também é presidente da Associação dos Industriais de Panificação de Angola, não tem dúvidas de que “a nossa economia está nas mãos de cartéis financiados pelos países de origem, com taxas de juros baixos” e aponta que “isso não deixa margem para o empresário local”.
O empresário confidencia ter um amigo no Cuanza-Norte que abandonou a produção de arroz, porque o produto importado ficava 50% mais barato. “Se o arroz do meu amigo chegava ao mercado a 300 kwanzas e o do importador era vendido a 150 kwanzas o quilo, não houve outra hipótese senão fechar a área de cultivo”, lamenta. “Estamos a pregar no deserto. Se não houver vontade política para resolver os problemas, nada vai acontecer. Ficará tudo na mesma, ou seja, importar, importar, importar, porque estamos no ano do imediatismo eleitoral”, insistiu ainda Gilberto Simão, resumindo que “Presidente João Lourenço está rodeado de pessoas que o mentem, porque, na prática, não há nada”.
Para o economista Maurício Munene, “é realmente dicotómico”. “Se, por um lado, se quer reduzir importações como consta de programas de Governo fundamentalmente do Prodesi, por outro, é o mesmo Governo que importa o milho, produto de maior e forte produção nacional, mas, ainda assim, tem coragem de relativizar a fome. Enfim, está difícil compreender essa situação”. Por isso, o economista acha que adquirir no mercado nacional traria múltiplas vantagens, incluindo a melhor via de potenciar e fomentar a agricultura, o agricultor e as famílias.
“É a melhor forma de substituição da importação. E a única forma de acabar com a fome e a miséria, ao passo que à administração local caberia a tarefa de reparar e recuperar as vias de acesso ao campo”, defendeu.
DADOS DA AGRICULTURA DUVIDOSOS
Os dados divulgados sobre a produção agrícola são, muitas vezes, questionados. José Katiavala diz que Angola precisa de saber a sua produção e reforça que as estatísticas que têm sido feitas são, amiúde, questionadas. O responsável nota que foi lançado o centro agro-pecuário que se espera que possa dar resposta a estas situações. “O Ministério da Agricultura tem uma palavra a dizer nisso tudo”, finaliza.
ACÇÃO DA REA
A REA foi lançada com objectivo de regular o mercado e influenciar a baixa de preços de produtos alimentares essenciais que integram a cesta básica.
Com o início da operacionalização, serão colocados, de imediato, no mercado até 354 mil toneladas de alimentos, aumentando progressivamente até chegar às 520 mil toneladas de produtos.
Farinha de milho, de trigo e de mandioca, massango, açúcar, óleo alimentar, feijão, arroz, sal iodizado, peixe seco e frango constituem os alimentos seleccionados para assegurar a Reserva Estratégica Alimentar na primeira fase. O ‘stock’ inicial da REA está avaliado em 200 milhões de dólares.
A Gescesta foi a empresa escolhida pelo Ministério do Comércio para gerir o processo. A empresa pertence aos grupos Carrinho e Gemcorp. Dois dos grupos citados muitas vezes como sendo os privilegiados do Governo de João Lourenço. A Gescesta foi criada em Maio deste ano, segundo o Novo Jornal, com 100 mil kwanzas. Em Dezembro, a empresa foi dada como vencedora do concurso para gerir a REA.
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