MANUEL RESENDE DE OLIVEIRA, ENGENHEIRO

“Há empreiteiros que não permitem ser fiscalizados”

Com mais de 54 anos a exercer engenharia no país, Manuel Resende de Oliveira considera-se insatisfeito com a pouca importância que se dá à actividade de fiscalização de obras. Aponta o dedo à falta de autoridade do Governo para que empresas, com destaque para as chinesas, se recusem a ter as obras fiscalizadas.

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Está satisfeito com as práticas actuais na actividade de fiscalização de obras públicas?

Não posso estar satisfeito, porque o que tem acontecido é não haver fiscalização. Ou melhor, há uma fiscalização que não actua por diversas razões. Os projectos não permitem uma fiscalização eficaz, porque o empreiteiro não se deixa fiscalizar. É o caso de algumas empresas chinesas onde não há, praticamente, possibilidade de se fazer fiscalização. Por outro lado, há empresas de fiscalização que não são, efectivamente, empresas que saibam exercer esta actividade de uma forma correcta. Ou não têm conhecimento ou não têm vontade de exercer a fiscalização. Isso traz, como resultados, em grande número de casos, deficiências muito grandes, sobretudo a nível de obras públicas, estradas e também a nível de edifícios. Encontramos com toda a frequência problemas que são realmente graves e que seriam evitados, se se fizesse uma fiscalização competente e eficaz.

Mas quão grave é o quadro? O que está, realmente, em causa?

Para mim, o mais grave é, sobretudo, não se ter noção sobre a importância da fiscalização. Há muita gente que pensa que a fiscalização é uma coisa que não vale a pena, porque o empreiteiro sabe o que faz e fiscalizar é secundário. Este é o principal motivo pelo qual as fiscalizações não são encaradas com seriedade quando, de facto, uma boa fiscalização faz uma economia muito grande, não só a nível da própria obra como a nível da sua vida. Permite que a obra dure muito mais tempo e com muito menos manutenção. Não está essencialmente em causa o custo da obra em si, mas sim o que ela custa depois para ser mantida ou reparada. A fiscalização, neste momento, ainda não está arreigada quer às estruturas públicas, quer aos particulares.

As empresas a que se referiu como estando a exercer a profissão sem o empenho desejado estarão a ser vítimas desta realidade da pouca valorização por parte das instituições que contratam os serviços?

Há também esta possibilidade de a empresa não se empenhar por saber que não tem grande importância, mas esta é uma situação que deve ser, absolutamente, posta de lado. Se tenho a noção de que o meu trabalho não é útil, então porque é que eu vou fazê-lo? Se me proponho fazer uma fiscalização, tenho de exercê-la. Se me demito do exercício, não estou a fazer nada. Estou a ganhar dinheiro sem prestar o serviço que devo.

E um caso como o que mencionou de empreiteiras que não se deixam fiscalizar, a culpa é essencialmente do dono da obra, pois é a posição deste que deve prevalecer. Certo?

Devia valer, mas nem sempre é assim e garanto-lhe, porque se passou comigo em várias ocasiões: nós, fiscalização, não aceitar as posições do empreiteiro e o empreiteiro não aceitar as nossas exigências. Fizemos reuniões conjuntas com o dono da obra, este a tentar obrigar o empreiteiro a respeitar as instruções da fiscalização e o empreiteiro, pura e simplesmente, a não aceitar. Aconteceu comigo e, perante isso, penso não ser necessário falar mais.

Disse que acontece, sobretudo, com empresas chinesas. Alguma razão específica?

Sim. Acontece muito com empresas chinesas por vários motivos. Este caso que contei é devido ao facto de a empresa chinesa estar a executar um trabalho que já tinha sido aprovado a nível superior e, por isso, achavam que já não deveriam estar a apresentar justificações à fiscalização.

Estamos a falar de um cenário antigo ou dos últimos anos?

É assim de há 10 anos para cá.

O que esteve na base desta alteração?

Foi, quanto a mim, a cedência de autoridade das estruturas angolanas, perante outros tipos de acordos que são feitos entre governos e que retiram capacidade de intervenção nas estruturas que têm de executar

Estamos a falar, por exemplo, da linha de financiamento da China. Certo?

Por exemplo. Está a ver que foi buscar o que eu não quis dizer, mas é isto mesmo.

É comum fazerem-se comparações, por exemplo, entre a qualidade das estradas feitas antes e depois da independência devido à maior qualidade das primeiras. Esta fiscalização deficiente é a principal razão desta discrepância na qualidade?

Há outras razões. Primeiro, Angola, quando saiu da guerra, tinha uma necessidade absoluta de repor a circulação terrestre entre as várias províncias, capitais e municípios. Havia necessidade de uma intervenção urgente e rápida de tapar buracos, fazer reparação mínima nas estradas que permitisse que se pudesse avançar. A não conservação da estrada - porque não era possível fazê-lo, aí sim, porque havia guerra - levou a uma deterioração rápida das mesmas. O que se precisava era de uma acção imediata tão rápida que permitisse restabelecer os itinerários terrestres.

Então não houve uma construção de estradas como tal?

Houve uma intervenção nas estradas que muita gente pensou que se construíram estradas, mas não. As estradas tinham de ser construídas a seguir, porque já havia possibilidade de circular. Esta compreensão é fundamental para se poder justificar o que aconteceu. Mas, a seguir, já houve estradas para serem construídas de uma forma definitiva, mas foram sem qualidade nenhuma, por falta de exigência de projectos e de exigência de fiscalização. Muitas destas estradas que já deveriam ter sido feitas de uma forma definitiva foram feitas sem os estudos necessários.

Conhece muitas estradas nestas circunstâncias? Pode apontar algumas?

Na estrada que vai para Kibala ou para o Waku kungo, ainda há pouco tempo, algumas vias estavam a ser reabilitadas e o empreiteiro, ao retirar a base para buscar o terreno natural, encontrou que a base da estrada estava feita de terreno com vegetação. Isso não pode ser. Os projectos também deixam muito a desejar. Mas também há estradas bem feitas, como, por exemplo, a do Nzeto para o Soyo. Mas o que está a ser feito na estrada entre Luanda e Lobito é mau, não está a obedecer ao que deveria, os terrenos não estão estudados, logo vai durar pouco tempo. É preciso e possível fazerem-se as coisas com mais qualidade e gastar-se menos dinheiro.

E gasta-se muito dinheiro com as estradas não apenas pela rápida degradação das mesas, mas também pelos preços praticados que, segundo consta, são bastante altos, comparados a outros mercados...

Tivemos aqui uma época em que o preço por quilómetro de estrada era absolutamente inadmissível. Era óptimo para o empreiteiro, mas mau para o país. É uma realidade só nossa. Quando se usava, não sei se ainda se usa, o padrão de um milhão de dólares por quilómetro para uma estrada com sete metros de faixa de rodagem e mais um metro e meio para cada lado de berma. Far-se-ia a mesma estrada por metade do preço ou por 600 mil dólares, no máximo.

Então foram milhões gastos desnecessariamente?

Sem dúvidas nenhumas.

Regressando à dificuldade de fiscalizar as obras, também acontece com as obras de privados?

Com os privados, há os dois tipos. Há os que dispensam a fiscalização porque têm interesses com empreiteiro ou qualquer coisa do género.

Ou porque consideram muito altos os custos de fiscalização?

A fiscalização nunca é cara. Se atender aos benefícios que traz para o conjunto do investimento, a fiscalização não custa nada. São 3% ou 2,5% do valor de uma obra. O que é isso, por exemplo, numa obra de 50 milhões de dólares? Não é nada, mas pode resultar numa poupança directa na construção da obra porque o empreiteiro é controlado. Penso ser uma questão cultural. Os donos das obras pensam ser um desperdício dar 3% ao fiscal.

Esta margem de 2,5% a 3% são os preços de regra do mercado?

Estatisticamente é o preço normal. Depende depois, porque há obras mais complexas que outras. Se eu tiver de fiscalizar um hospital, por exemplo, é muito mais complexo, tenho mais custos do que se for fiscalizar um edifício normal de habitação.

Na opinião do engenheiro, tem havido transparência na contratação das empresas de fiscalização para empreitadas de obras públicas?

Há uma desigualdade muito grande no tratamento das empresas. Há empresas que se tornam preferenciais e há outras que são ignoradas. Não me pergunte quais são as razões ,porque acho que sabe melhor do que eu.

Será pela qualidade de serviço prestado por cada uma?

Não. É pelo enquadramento em todo um sistema que se implantou na nossa sociedade, mas tenho uma grande esperança que venha a mudar. Estou a falar da corrupção. Há empresas que são seleccionadas porque elas retornam para outras pessoas parte dos seus benefícios e por isso lhes são adjudicadas as obras. Não é o nosso caso. Temos uma postura eticamente mais correcta e, como sabem que com a Progest é difícil entrar em esquemas de corrupção, põe-nos de parte.

Mas já receberam propostas do género?

Várias vezes.

Qual é a actual facturação anual da Progest?

A Progest tem uma facturação anual de entre os 12 e os 15 milhões de dólares, em kwanzas.

E, se alinhassem nos esquemas, qual seria o potencial de facturação?

Nós não entramos nesta forma de trabalho, não nos deixamos tentar por isso. Preferimos ter menos trabalho, mas termos uma vida limpa.Não entramos nestes esquemas de receber dinheiro indevidamente e pagar indevidamente. Não faz parte da nossa forma de estar. Estamos dispostos a pagar, porque tem que ver com a nossa forma de estar. Se aceitássemos, talvez estivéssemos a falar de 30, 40 ou 50 milhões de dólares.

Há a percepção de que, em muitos dos casos de suspensão de empreitadas de obras públicas devido, por exemplo, a atraso dos pagamentos, não se respeitam os procedimentos legais. É um facto?

A lei define como é que um empreiteiro deve suspender uma obra, mas não é o que acontece. Limitam-se a escrever uma carta a dizer que vão suspender, porque não recebem. Não é assim. Tem de haver um auto de suspensão, um inventário do que está feito até ao momento, mas infelizmente não é prática corrente.

Exerce a actividade de engenharia no país desde antes da independência. Participou certamente de várias obras. Quais são as mais marcantes?

São várias. Cheguei a Angola em 1963, vim para fazer pontes e uma obra que me marcou foi a ponte do Cunene. Deu-me muito prazer fazer aquela obra que tinha, na altura, 830 metros. Deu-me gozo não apenas porque era recém-chegado a Angola, como por ter caído no Cunene perante uma obra daquela responsabilidade e num meio que me era completamente desconhecido. Encontrei uma serie de factores que me prenderam. Por exemplo, tinha na obra quantidade de operários que só estavam a trabalhar para ganhar dinheiro para pagar o imposto geral mínimo. Recebiam e iam-se embora porque tinham gado, bens, mas não vendiam uma cabeça de gado. Fiz muitas obras também em Luanda como o Hotel Panorama e também o Presidente. Tenho mais uma dezena de edifícios. Na altura, eram altos, agora pequeninos ao pé dos que existem.

Falando dos prédios que existem hoje... Como encara o surgimento e crescimento desta Luanda dos arranha-céus?

Tenho uma opinião muito crítica neste aspecto, porque a Luanda actual não foi construída de uma forma pensada e planifica, que previsse as necessidades de tráfico, abastecimento de água, energia e de saneamento básico. Nada disso foi planificado. Foram aparecendo edifícios sem qualquer tipo de suporte e isso reflectiu-se na qualidade de vida que temos actualmente, que é o trânsito e as dificuldades todas de estacionamento. Luanda actual nasceu sem planeamento, sem plano director, sem autoridade que permitisse que o crescimento fosse feito de uma forma ordenada. Os prédios foram feitos, até a uma determinada altura, sem sequer exigências de um estacionamento próprio. Invadiram-se espaços públicos para fazer prédios, o que não tem sentido nenhum. Kinaxixe, por exemplo, porquê? Que vantagem trouxe para Luanda o desaparecimento do largo e do mercado? Que vantagem trouxe a alteração do trânsito? Havia necessidade? Faz sentido, por exemplo, que o largo por detrás da Biker fosse privatizado e construídos dois edifícios nele? Aquela encosta toda que vemos quando subimos para o cemitério do Alto das Cruzes (saindo da Marginal) está cheia de prédios mas aquilo era o pulmão da cidade. Será que não havia terrenos para se fazer a expansão da cidade de uma forma pensada que evitasse todos os problemas que temos agora. Eu não estou feliz com esta cidade.

Entretanto, já temos o plano director . Diz-se que vai resolver alguns destes problemas. Também pensa assim?

Sim, vai resolver. Este plano deveria ter existido há muito tempo. Actualmente, já está bastante condicionado, porque há coisas que estão feitas e não são destruíveis ou vamos tentar, pelo menos, não destruí-las. Chegou tarde, mas ainda bem que chegou. Também isto se for respeitado, porque, se não for, não vai servir para nada.

É um plano do Governo, é uma autoridade que deve ser respeitada.

Devia, de facto, ser mas não sei se vai ser. Há tanta coisa do Estado que não é respeitada. O Estado não se impõe.

Quando foi governante, já sentia a necessidade de o Estado se impor?

Não. Aquele tempo não tem nada que ver com hoje. O nosso carro era o Lada, no fim, porque, no princípio, era o Fiat 127. As nossas necessidades e a nossa forma de pensar eram completamente diferentes. Naturalmente, hoje existem porque Angola cresceu, tem outros problemas, e naquela altura, estava a nascer, tinha sido uma colónia.

Pode ser encarada também como desvantagens do sistema de economia de mercado, afinal naquele tempo estamos a falar de uma economia centralizada?

É a desvantagem dos exageros que se cometem porque não há necessidade de se esbanjar o dinheiro desta maneira. Veja, por exemplo, o que está a fazer a Tanzânia e outros países de África. Estão a pôr os recursos do país ao serviço do desenvolvimento do país e não apenas no crescimento de uma parte da população. Aliás, este é o princípio da melhor distribuição, foi sempre o lema, mas nunca foi praticado e espero que agora venha a ser. Temos esta esperança, porque, se isso continuasse pelo caminho em que estávamos, estaríamos a enterrar-nos.

O que lhe faz ter tanta esperança?

A consciência de que os nossos dirigentes percebem que é necessária esta mudança. Não tenho dúvidas de que estão todos conscientes de que esta mudança é absolutamente necessária, é preciso moralizar este país, esta administração pública. É preciso que Angola seja um país normal, que se acabem as loucuras dos esbanjamentos e do enriquecimento ilícito. Vai custar, vai ser penoso, em muitas situações, mas vai ter de acontecer. Se calhar, algumas pessoas vão ficar pelo caminho, mas não há alternativa.

Foi ministro no governo de transição e, depois, entre 75 e 78. Neste período, sofreu alguma pressão do governo português no sentido de cumprir as suas orientações?

Nunca senti nenhuma pressão do governo português. Aliás, Portugal tirou-me a nacionalidade por ter ficado no primeiro Governo de Angola independente e só me deu três anos depois. Para ir em busca da minha filha (foi lá onde a minha mulher deu à luz) tive de ir com passaporte da Guiné Bissau. Não poderia entrar com o angolano porque Portugal não tinha reconhecido Angola. Nunca senti nenhuma pressão da parte de Portugal para fazer isso ou aquilo. Senti, sim, no Governo de transição, mas aqui com a estrutura da direcção, o alto-comissário e a sua equipa. Estes, sim, fizeram pressão sobre mim, sobretudo para eu não ser como era.

PERFIL

Manuel Resende de Oliveira nasceu na vila portuguesa de Murtosa em 1935, mas cresceu em Coimbra onde fez os três primeiros anos do ensino superior, tendo concluído, posteriormente, no Instituto Superior Técnico em 1961.

Dois anos depois, chegou a Angola para estar envolvido na construção de pontes. Foi ministro da Obras Públicas e Habitação no Governo de transição e ainda no primeiro governo depois da independência, entre 1975 e 78.

Trabalhou ainda no Ministério da Hotelaria e Turismo e, em 1986, fundou a Progest, empresa a que se dedica até ao momento. Entre 1984 e 86, foi docente da Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto.