CARLOS TEIXEIRA, DIRECTOR DO CPPPGL DA UAN

“Já vamos com substancial atraso em relação às autarquias”

Advogado, o director do Centro de Pesquisa em Política Pública e Governação Local da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto considera que o país tem condições de implementar o poder autárquico desde 2002, altura em que terminou a guerra civil. Aplaude a ideia da implementação gradual do processo, mas entende que, primeiro, deve haver um entendimento entre os principais actores políticos sobre a matéria.

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O Presidente da República assumiu publicamente que o Governo vai preparar as condições para que as eleições autárquicas sejam realizadas antes de 2022. Acha que o país já tem as condições mínimas para implementar esse processo antes dessa data?

Já vamos atrasados para tal [para a implementação das autarquias]. É claro que a justificação desse atraso pode ser de vária ordem, desde os problemas resultantes da nossa história recente que tem que ver com a guerra civil, a aspectos relacionados com as dificuldades financeiras ou económicas. Mas, ainda assim, vamos com algum substancial atraso, porque a problemática da descentralização é um tema que, desde os primórdios da independência, entrou no desejo e na carta magna dos angolanos. Portanto, como digo, não só é possível como é recomendável a implementação deste processo em Angola, porque, aliás, o próprio Presidente da República reiterou que não ficamos bem na fotografia a nível da nossa região. No continente, somos os únicos que não conseguem implementar esse modelo. E isso não é por falta de experts e de capacidade. Porque se não se pode fazer a autarcização em 20 anos, faça em cinco, em três ou em dois. Agora ficar parado é que não me parece bem!

Quando é que efectivamente Angola passou a ter condições para implementar o poder autárquico, na sua opinião?

Razões históricas obliteraram que se desse esse passo, mas, desde o alcance da paz, em 2002, estavam criadas as condições para que efectivamente esse passo pudesse ser dado. E esse passo a ser dado devia obedecer a um conjunto de procedimentos que levariam a uma implementação gradual deste modelo organizacional. O Estado centralizado e concentrado não tem sido capaz de promover o desenvolvimento e o bem-estar dos angolanos. E também, quando dissemos que a autarcização é um meio capaz de proporcionar o desenvolvimento dos angolanos e das comunidades, não estamos a dizer que num toque de mágica isso ocorra. Mas este é potencialmente o meio mais adequado para promover esse desenvolvimento, porque as pessoas que estão próximas da comunidade, que demanda prestações de quem os governa, têm claramente muito mais possibilidades de êxito com este modelo organizacional, que, em tempo útil, satisfaz as necessidades.

Esse gradualismo a que se faz referência, como é que funcionaria em termos práticos?

Em primeiro lugar, tem de haver um entendimento entre os principais actores políticos sobre o que significa gradualismo, porque o processo de descentralização tem de observar os princípios constitucionais – tal como ocorre com a questão do gradualismo –, e o princípio da legalidade. Tudo terá de estar sustentado na lei. Mas os actores políticos precisam de estar de acordo nesse aspecto. Porque gradualismo significa implementar as autarquias locais de modo gradual. E de modo gradual em que termos? Significa escolher primeiro, na base dos acordos políticos, quais são aquelas circunscrições na base de determinados pressupostos que também venham a ser acordados que podem avançar já no primeiro pelotão para esse modelo organizacional autárquico. Entretanto, existem outros actores políticos que entendem que a autarcização gradual do país seria violar um outro princípio constitucional que seria o princípio da igualdade. Mas, pessoalmente e num raciocínio académico e prático, diremos que não têm razão estes actores que pensam que o gradualismo viola o princípio da igualdade, porque este princípio tem de ser lido em, pelo menos, dois âmbitos.

Quais?

Um deles tem que ver com a igualdade formal e outro com a aferição da densidade material das circunscrições, dos territórios, das comunidades cujo modelo organizacional se pretende autárquico. Têm de ser territórios, circunscrições que tenham interesse comuns a prosseguir. E esses interesses comuns pré -passam pela existência de determinadas infra-estruturas básicas, a existência de uma substancial actividade económica, porque será por esta via que o poder autárquico vai tributar os agentes económicos para daí se poder conseguir os recursos que são necessários para catapultar o desenvolvimento. Para além disso, é necessário também que estas circunscrições tenham à sua disposição aquilo a que chamo a geografia humana necessária e indispensável para o desenvolvimento desse processo. Estou a falar de outros agentes, do pessoal com capacidade, com conhecimento, por exemplo, no domínio do ordenamento do território, do planeamento, da gestão económica. Não me refiro somente ao cabeça da futura autarquia. Tem de haver gente capaz de analisar os problemas de determinada comunidade e equacionar soluções para a resolução desses problemas. E gostaria igualmente de dizer que, nos vários momentos em que no nosso país essa matéria foi colocada numa posição relevante em pauta, o próprio poder central tinha iniciado um processo de formação de quadros para prepará-los para este momento. Significa que esse processo, com avanços e recuos em função dos momentos e das opções que se fazem na cena política, económica e social nacional, ganha maior ou menor relevância. Portanto, entendo pessoalmente que este é um caminho que não poderemos contornar e, quanto mais tarde avançarmos para esta solução, pior será para o nosso desenvolvimento, porque verificamos que, ao longo desses 42 anos com um modelo marcadamente concentrado e centralizado, nem assim este desenvolvimento conseguiu chegar à escala nacional.

Tendo ainda em atenção o conceito da gradualidade, qual seria, na sua opinião, o melhor modelo a seguir, a implementação do poder autárquico em vários municípios de uma só vez ou somente a um por cada província?

Os actores políticos podem escolher numa província dois ou três municípios para tal. O primeiro passo é determinar quais são os pressupostos para a autarcização. Com isso feito, vamos ver, na actual geografia de Angola, quais são as circunscrições que têm condições de entrar para esse primeiro pelotão de descentralização de autarcização. E com isso, estas [descentralizações] poderiam seguir um modelo diferente no resto das circunscrições. Quer chamemos projecto-piloto, quer chamemos outro nome. O importante é começar.

O Presidente da República afirmou também que a implementação do poder autárquico teria de ser precedida da preparação de um pacote de proposta de legislação básica…

Sim! Isso tem que ver com o conjunto de instrumentos jurídicos que vão balizar esse processo de autarcização, designadamente os pressupostos para a autarcização e também as regras para que determinados entes possam concorrer à gestão de uma autarquia com a criação ou a aprovação do estatuto eleito local ou do autarca. Portanto, o nome não é muito importante, depois logo se veria. Essa legislação teria de estar também relacionada com o processo de formação de todos aqueles que tenham pretensão e o desejo de actuar neste novo modelo organizacional.

O centro que dirige está preparado para fazer face a este desafio, caso seja solicitado para tal?

Há muito tempo que estamos com essa tarefa nas mãos. Não só ao nível da formação académica científica, mas temos auxiliado uma entidade do Governo, designadamente o Instituto de Formação e Administração Local, a preparar os actuais administradores municipais para que, no futuro, quando se der o passo para a autarcização, eles estejam com um conjunto de ferramentas, de instrumentos e de conhecimentos para poder administrar o território, as circunscrições, de acordo com as regras científicas, jurídicas que se colocam para que esta tarefa seja melhor conseguida.

Esta temática já foi igualmente muito debatida a nível da Assembleia Nacional. O Centro de Pesquisa em Política Pública e Governação Local tem estado a prestar algum tipo de suporte aos deputados?

Quando, no final da legislatura passada, o Parlamento nacional aprovou a lei sobre os princípios a observar no poder local, eles contactaram o centro e solicitaram o nosso suporte. Entretanto, começou a nova legislatura, estamos à espera que nos formalizem esta necessidade de suporte e de consultoria, para o conjunto de tarefas que caberá ao Parlamento nacional no quadro do desenvolvimento da lei aprovada na legislatura passada e daquele conjunto de instrumentos que vão regular o processo autárquico. Portanto, estamos disponíveis e preparados para proporcionar este auxílio.

João Lourenço disse também que iria consultar os seus conselheiros sobre os passos a dar para a implementação do poder autárquico em Angola. Se fosse um desses conselheiros o que diria ao chefe de Estado?

A continuar por este caminho. Dificilmente se poderá dar o dito pelo não dito. Defenderia que as tarefas que estão por implementar, nesse âmbito, fossem efectivamente desenvolvidas, porque este modelo organizacional é capaz de catalisar o desenvolvimento. Não é a varinha mágica certamente, mas é um modelo que, devidamente utilizado, vai auxiliar no desenvolvimento das comunidades e isso vai proporcionar o desenvolvimento do país de uma forma geral.

O Centro de Pesquisa em Política Pública e Governação Local foi criado no início da década de 2000. Fale-nos da experiência já adquirida ao longo desses anos?

O Centro foi criado em Setembro de 2009 em resposta a um desafio do então Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que assessorava o Governo de Angola nos projectos de descentralização. Portanto, este é um projecto que já vem do período antes da guerra e, com o alcance da paz, o PNUD voltou a retomá-lo. Com o evoluir do Centro, das suas tarefas e dos seus trabalhos - porque era propósito do PNUD que depois que passasse o período do projecto alguma instituição angolana se assenhora-se do conjunto de conhecimento e do acervo bibliográfico relativo ao poder local e da descentralização – a faculdade de Direito tomou conta do projecto e passei eu a conduzi-lo até à altura em que bem mais recentemente a própria reitoria da Universidade entendeu transformar este centro de pesquisa em políticas públicas e governação local numa unidade orgânica da Universidade com o mesmo nível de uma faculdade. O nosso core business é precisamente a investigação e a pesquisa no domínio da governação e gestão pública e no domínio das políticas públicas. Procura-se, portanto, que a universidade consiga fazer a ligação entre aquilo que são os conhecimentos teóricos que aqui são produzidos com a realidade prática do nosso país, sobretudo numa altura em que, no âmbito da organização administrativa, se fala na desconcentração de competências.

Há já algum trabalho científico, no domínio da governação local, publicado pelo centro?

Sim. Ao longo desses tempos, produzimos muitos trabalhos de pesquisa, sendo o mais relevante o que resultou de um seminário que recentemente organizámos sobre a problemática da descentralização e da autarcização que está aí disponível. Realizámos também um estudo sobre os aspectos relativos à municipalização dos serviços de saúde. Este segundo estudo, embora não tenha grande divulgação, contou com o apoio do Ministério da Saúde e está ai disponível para que todos os pesquisadores e servidores públicos possam a ele ter acesso quando quiserem tratar de questões relativas à municipalização, no caso concreto, do domínio da saúde e o seu impacto no desenvolvimento das comunidades.

Há algum estudo comparado com o qual Angola poderá se guiar para implementação do poder autárquico?

Realizámos vários estudos comparados, mas entendo que a nossa realidade é bem mais particular. E assim sendo, bom seria que as instituições universitárias, de investigação científica se abalançassem para o estudo da nossa realidade, tendo em atenção esse desejo de descentralização e de autarcização, com atenção às particularidades do nosso país. Particularidades que resultam do facto de termos entre nós e no quadro do poder local as autoridades tradicionais com valências diferentes nos diversificados grupos etnolinguísticos. O que significa que este estudo não deve ser tão-somente de matriz jurídico-normativa, mas bem mais amplo que envolva especialistas de história, da antropologia, da sociologia para que possamos encontrar soluções adequadas à realidade angolana. Sou contra a transposição pura e simples de soluções encontradas para outras realidades, para outras comunidades, outras sociedades que não a nossa. Portanto, o trabalho da academia é precisamente isso. Valorar o conhecimento endógeno, aquilo que é a sabedoria dos nossos ancestrais no modelo de organização administrativa. Eu costumo referir, nas minhas abordagens e nos meus estudos, que o processo de descentralização não é estranho aos africanos. Porque, se nós fizermos uma incursão na História, vamos verificar que, mesmo no reino do Congo, já havia descentralização. Portanto, este é um modelo que não nos deve atemorizar. Devemos segurar entre mãos aquilo que é a pretensão dos povos, das comunidades e em face disso irmos buscar uma bitola de organização e de estruturação que seja mais conforme com os nossos interesses e com a nossa história.

Sendo alguém que há muito milita no ramo do ensino do Direito, qual a avaliação que faz sobre a proposta de Lei do Repatriamento de Capitais, recentemente aprovado, na generalidade, na Assembleia Nacional?

É uma lei que se impõe na actual conjuntura do país, mas é igualmente uma lei que se recomenda no quadro dessa nova mudança de ciclo. Estamos a sair de um ciclo anterior com todos os problemas, dificuldades e deficiências que todos conhecemos e, estando nesse ciclo, a medida justifica-se no quadro do interesse nacional. Sabemos todos que há recursos que, por caminhos ínvios, deixaram o nosso país, os nossos cofres públicos, e há necessidade de recuperar estes recursos mesmo em face ao actual ambiente internacional em que se procura saber como é que agentes públicos ou não terão obtido todo o seu património. Precisamos de fazer reentrar para o desenvolvimento da nossa economia esses recursos que estão a alavancar outras economias que não a nossa.

Acha que será um processo difícil?

Sim. Vai levar o seu tempo. Basta ver, por exemplo, recursos que estiveram no exterior de um anterior presidente nigeriano Sani Abacha só vinte anos depois retornaram, mesmo tendo havido negociações directas entre o novo governo instituído e os bancos onde esses recursos repousavam para os fazer voltar à economia nigeriana. E ainda assim, só regressou parte desse recurso. Portanto, é uma negociação que vai levar o seu tempo. Eu sou daqueles que pensam que, no interesse geral, da paz e da harmonia social, entre perdermos tudo e recuperar o que for possível desses recursos nacionais, é preferível esta solução negociada no quadro dessa paz social que se pretende para esse novo ciclo.

PERFIL

Carlos Manuel dos Santos Teixeira é licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto (UAN). Possui um mestrado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e é doutorando pela mesma faculdade, igualmente em Direito. É docente associado com a regência da cadeira de Direito Administrativo nas Faculdades de Direito da UAN, Independente de Angola e ‘José Eduardo dos Santos’.

É também professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, desde Março de 2011. Já ocupou, entre outros cargos, o de decano interino da Faculdade de Direito da UAN entre 2005 e 2006; assistente da assessoria jurídica da Casa Cívil do Presidente da República (1991-2000); assessor Jurídico do Presidente da República (2000- 2007) e membro do conselho de gerência da Clínica Multiperfil (2001-2002). Advogado, desempenha o cargo de director do Centro de Pesquisas em Políticas Públicas e Governação Local da Faculdade de Direito da UAN, desde Setembro de 2009.