Legalizem os trespasses
Pela segunda vez em menos de um ano, o Valor Económico destaca, nas suas páginas, a problemática dos trespasses nas centralidades do país. Há uma razão muito objectiva para isso. No quesito particular da comercialização desses imóveis do Estado, os trespasses começam a constituir-se numa inesgotável fonte de conflitos com proporções incalculáveis. Pelo menos a julgar pelas leis actuais que consideram a prática ilegal. Mas também pela visível negligência das autoridades em controlarem o problema agora, já que não vão a tempo de cortar o mal pela raiz.
Como bem se sabe, entre outras razões, a transferência de titularidade de imóveis nas centralidades vem acontecendo essencialmente por dois motivos. Primeiro, porque a crise política e económica levou muita gente a abandonar o país, produziu desemprego em massa e resultou na perda do poder de compra de milhões de famílias. Segundo, porque, desde o início, o Governo não foi capaz de garantir um processo de comercialização justo, transparente e legal. Ao arrepio da lei, muitas pessoas que não deviam ter direito aos apartamentos nas centralidades – ou porque já tinham comprado imóveis ao Estado, ou porque não tinham condições para os pagar – acabaram contempladas. Em contraponto, milhares de pessoas que seriam as candidatas ‘naturais e legítimas’ ficaram excluídas.
O que se assiste hoje, portanto, é uma espécie de inversão de papéis que coloca todos, incluindo o Estado, numa encruzilhada.
Alguns dos que têm casas a mais, tantos outros dos que abandonaram o país e muitos que ficaram sem dinheiro para se manterem nas centralidades estão a vender os imóveis, mesmo sem os terem pago na totalidade. E o Estado que insiste na ilegalidade do procedimento é o mesmo Estado que reconhece contratos de trespasse nos seus cartórios.
Todo este emaranhado projecta indiscutivelmente um cenário de potenciais conflitos sem inocentes. Vendedores e compradores serão culpados por saberem da ilegalidade do negócio. E o Estado será culpado por determinar a ilegalidade do negócio e permitir, nas suas próprias instituições, que o negócio se concretize.
A solução talvez esteja então na reconstrução de uma máxima da sabedoria popular. Dois erros devem levar necessariamente à invenção de um acerto. Se as pessoas erraram ao transaccionarem imóveis violando a lei, se o Estado errou ao vender apartamentos a quem não devia e ao colocar milhões de famílias numa crise sem precedentes, então deve ajustar a lei para legalizar os trespasses em condições específicas. Porque nada será mais ridículo e até criminoso do que vermos famílias perderem apartamentos amanhã, porque o Estado decidiu finalmente desenterrar a cabeça da areia.
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