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DOMINGOS FORTES, MESTRE EM SHIPPING

“Lei da Marinha Mercante está totalmente desfasada”

25 Aug. 2020 Grande Entrevista

Especialista diz que o shipping precisa de “uma estratégia clara e realista”, já que “sem que se definam as linhas de força não se pode ir a lado nenhum”. Domingos Fortes defende uma nova lei e critica a falta de promoção de quadros, sobretudo no Porto de Luanda. 

“Lei da Marinha Mercante está totalmente desfasada”
D.R

O Porto do Lobito tem 70% dos equipamentos inoperantes, já o Porto de Luanda parece precisar de modernização? Os investimentos são ou não necessários nesta fase?

Sim, o Porto de Luanda requer investimentos de vulto, sobretudo na reconfiguração morfodinâmica das unidades orgânicas, em especial no terminal da Unicargas pela reconstrução da frente acostável e área de bordo de cais. Requer ainda a introdução de sistemas mais modernos e eficientes no manuseamento da carga, como o RTG e Guindastes STS (shore to shore). Isto tornaria o Porto mais eficiente nas acções de carga e descarga dos navios, reduzindo assim o tempo em porto.

 

Isso resolve o problema das tarifas portuárias consideradas muito caras?

Obviamente, esta acção teria um impacto nas tarifas portuárias, tornando-as mais competitivas, fazendo com que o trânsito das mercadorias pelo porto se fizesse a um custo baixo. Actualmente, as tarifas portuárias são muito altas, o que compromete a economia real do país.

E sobre o Porto do Namibe?

Neste momento, já estão a ser feitos grandes investimentos com financiamentos do Japão, que incidem sobre a reconstrução do terminal mineraleiro do Sacomar e melhorias na extensão do cais do terminal de contentores, o que permitirá uma maior operacionalização da carga contentorizada por força do investimento nos equipamentos de última geração que está previsto.

 “Lei da Marinha Mercante está totalmente desfasada”

O que sugere para impulsionar o shipping?

Em termos primários, o nosso shipping precisa da definição de uma estratégia. Sem uma estratégia clara e realista, não se pode ir a lado nenhum.

 

Onde deve assentar essa estratégia?

Essa estratégia de shipping deveria encontrar respostas para as seguintes perguntas: Para quê uma companhia de bandeira angolana de shipping? Para a transportar o quê? Como resolver os problemas de inobservância das convenções marítimas da Organização Marítima Internacional e fixação de prazos? Transportar FOB ou CIF? Política de incentivos nacionais e certificação dos marítimos? Como armar os navios? Operar com navios próprios ou em casco nu? Qual a política de financiamento do Estado na aquisição dos navios? Construção de estaleiros em território nacional de forma a poupar divisas?

 

Os instrumentos legais não respondem a estas questões?

Precisa-se da adopção de uma nova Lei de Marinha Mercante. Aliás, a nova lei seria bem-vinda porque a actual está totalmente desfasada do actual contexto económico que o país vive.

 

Porquê?

No passado, a estratégia da companhia de bandeira nacional, a Angonave, consistiu em transportar carga FOB, maioritariamente, e 20% de carga CIF de forma a transportar as nossas importações e poupar divisas com o pagamento de fretes. Será que ainda é esse o contexto em que vivemos?

 

Mas também parece haver muitas fraquezas em termos de força de trabalho especializada, não?   

Evidentemente que sim. Logo depois da liquidação da Angonave, deixou de se formar quadros. Na altura, havia o recurso aos imediatos e comandantes estrangeiros, como de Cuba e Portugal, com os quais tínhamos contratos. A partir daí, tudo se desmoronou. No ensino superior, não há academias nem faculdades, onde é ministrado o shipping, talvez por não existir essa indústria no país.

 

Como se pode relançar essa indústria?

Temos de ter toda uma indústria de suporte, nomeadamente, estaleiros, onde se possam fazer reparações navais e construção de embarcações.

 

Os estaleiros do Lobito não podem ser utilizados para esse fim?

É preciso restaurar todo esse potencial que se perdeu. E fomentar escolas que leccionem cadeiras de shipping até à universidade. Se não formos por esse caminho, não teremos shipping no país e estaremos sempre dependentes.

 

A costa angolana necessita mesmo de mais portos, quando, por exemplo, o Porto Amboim já está ao lado do Lobito e de Luanda?

Quanto mais portos um país tiver, melhor. Não se constrói um porto só por construir, mas para atender toda uma necessidade logística do seu hinterland. Para tal, é necessário criar acessibilidades, quer rodoviárias, quer ferroviárias de modo a que a mercadoria seja entregue ao consumidor ou produtor em tempo devido. Poupa-se tempo e dinheiro. Quanto tempo uma mercadoria descarregada no Porto do Lobito levaria até chegar a Nova Seles (Waku Kungu) e quanto tempo a chegar do Porto Amboim? Se os dois portos tiverem boas acessibilidades aos centros consumidores ou produtores, isso permitirá ao armador escolher o porto que melhor lhe satisfaz. Por força dessas boas acessibilidades, os dois portos concorrerão entre si.

Como resultado, os produtos ficarão mais baratos, porque a rapidez na carga/descarga tornarão os fretes mais baratos para os importadores/exportadores. É, pois, salutar a concorrência entre os portos. Infelizmente, não há políticas. Está tudo parado, quando queremos uma economia competitiva.

 

De volta a Luanda. Com a concessão do terminal multiusos, não fica ultrapassado o problema da formação com operações ‘on the job’, por exemplo?

A situação é um pouco melhor nos portos por causa do factor concessão. É que, no porto, onde haja um terminal concessionado, o concessionário tem a obrigação de formar os técnicos, porque, através da concessão, o Estado transfere para o concessionário o ‘know-how’ e a tecnologia que não possui. Já do lado da concedente, a autoridade portuária, a situação é gritante na medida em que não se privilegia o conhecimento.

 

Mas a academia do Porto de Luanda não serve?

O Porto de Luanda tem sido uma excepção nesse pormenor na medida em que tem formado e capacitado muitos quadros, talvez por ter uma academia ao lado e também devido a uma política estrutural de formação de quadros. Contudo, os quadros não são devidamente aproveitados sob o signo da carreira. Quer dizer que não há promoções. Um quadro pode permanecer vários anos na mesma categoria sem ser promovido.

 

Como se pode ‘descongestionar’ isso?

Isso leva ao descontentamento e, consequentement, à perda de motivação, o que influencia grandemente no desempenho da instituição. O escape de toda esta situação é a corrida desenfreada aos lugares de chefia, porque só desta forma se consegue ter algumas comodidades, como carro e outras benesses. Agora pergunto: para quê formar se não se promove? A ausência do quadro de carreira nos portos tem impacto nos próprios conselhos de administração e departamentos do ministério de tutela, que se tornam inacessíveis àqueles quadros. A meu ver, um secretário de Estado e até mesmo um ministro deveriam evoluir de uma empresa. Seriam quadros da empresa que subiriam a pulso até chegar a ministro. É como no exército.

Todo o soldado ambiciona chegar a general. Isso tem reflexos negativos na definição das políticas sectoriais por falta de conhecimento de cultura e da prática da actividade empresarial. Daí o uso constante do ‘copy and paste’ das políticas de outros governos. Portanto, as políticas públicas devem reflectir certa realidade conjuntural.

 

Perfil

Nascido em 1956, em Luanda, casado e pai de dois filhos, Domingos da Silva Fortes é licenciado em economia de negócios pela Universidade de Sarayevo, na ex-Jugoslávia, e mestre de ciência (MSC) em Gestão do Transporte Marítimo (Shipping) e Gestão Portuária pela Universidade Marítima Mundial (WMU) na Suécia desde 1993. Foi, durante muitos anos, assessor comercial da Angonave, passando depois para director-geral do terminal de carga geral e director adjunto para operações da Sogester. Foi também director comercial do Porto de Luanda e assessor do PCA desta empresa. Actualmente, é consultor da Associação dos Portos de Angola (Apang) e formador na Academia Portuária de Luanda. Conferencista nos PALOP, é autor do livro ‘Os caminhos da eficiência nos portos’. Fala português, francês, inglês, espanhol e servo-croata.