“Não vejo condições para o controlo da inflação este ano”
Economista e professor universitário duvida da capacidade do Governo de fazer recuar a inflação para os 15% e questiona a possibilidade de desvalorização do kwanza este ano, lembrando os “efeitos negativos” sobre os rendimentos e capacidade de compra. Entre outras ideias, Victor Hugo critica ainda a política fiscal que descapitaliza o consumidor.
Uma das metas assumidas este ano pelo Governo é baixar a taxa de inflação dos 40,39% para os 15%. É uma meta realista?
Não vai ser possível. Não vejo condições para que o Governo consiga controlar a inflação este ano, quando levamos em consideração factores políticos, concretamente as eleições que esperamos. Será um ano com despesa considerável e, provavelmente, em que poderemos assistir a uma desvalorização do kwanza. Estes dois elementos poderão constituir-se nos grandes obstáculos para que o Governo materialize a meta que projectou para este ano.
Pelo que observa, a desvalorização do kwanza este ano é inevitável. Mas é recomendável?
O Governo tem metas, planos e objectivos. O Governo acredita que, desvalorizando o kwanza, poderá tornar o sector produtivo mais eficiente, mas é uma medida um pouco difícil de se alcançar, porque toda e qualquer desvalorização cria consigo efeitos negativos. Para a nossa realidade, tendo em atenção que o poder aquisitivo dos consumidores vai diminuindo, uma desvalorização que não seja acompanhada com o reajuste dos salários ou com políticas concretas para estimular o crescimento da economia poderá trazer consequências muito duras para a população. E é isso que o Governo deve acautelar e não se precipitar em tomar medidas muito drásticas, como é o caso da desvalorização.
Ou seja, a desvalorização não seria uma medida acertada.
Se o Governo achar que deve fazer, vai fazê-lo. E, se assim for, esperemos que venha a ter sucessos naquilo que deseja fazer. Mas, no meu ponto de vista, não era o momento adequado para se fazer a desvalorização do kwanza.
E como olha para os objectivos orçamentais, quanto ao investimento público?
Se olharmos para o Orçamento programado para este ano, embora haja uma verba específica para esta área, percebe-se que o Governo não terá capacidade suficiente para fazer investimento público, comparado com os dois ou três anos atrás. Não será possível, porque a economia vai passar por uma situação um pouco difícil. É verdade que começa a recuperar o preço do petróleo, mas a dívida acumulada é muito grande. E uma das maiores preocupações do Governo, este ano, será cumprir com esta responsabilidade, que é a diminuição da dívida. Numa economia praticamente estagnada, com um sector produtivo que não se faz sentir, não vejo onde o Governo vai tributar para ter recursos suficientes e investir nos sectores que pretende. Portanto, é uma possibilidade, mas, analisando realisticamente, não vejo isso a materializar-se.
Mas, em relação à tributação, o panorama fiscal sugere que há um potencial grande a explorar a este nível, nomeadamente com a possibilidade de introdução de novos impostos e de alargamento da base tributária.
A política fiscal é um instrumento que se utiliza para corrigir algumas anomalias, quando as importações perigam o crescimento da indústria nacional. Aquilo a que estamos a assistir em Angola, em termos de política fiscal, é meramente um instrumento extractivo. Quer dizer que é uma incidência muito elevada sobre os produtos importados para o Estado ter dinheiro. Quando a tributação for maior, os preços desses produtos tributados, no mercado nacional, tornam-se também maiores, o que, de uma forma directa, contribui para a inflação. Quer dizer que temos uma política fiscal que, de um modo geral, é também um meio contribuinte da inflação em Angola. É muito bom falarmos na reforma fiscal que, a meu ver, é válida. Agora, conforme está a ser conduzida a actual política fiscal, acredito que vai criar problemas mais severos para a economia nacional. Porque se está praticamente a descapitalizar o consumidor. Tecnicamente, não é a politica fiscal que vai resolver o problema de Angola.
Qual é então a solução para o aumento do nível de arrecadação de receitas, de forma sustentada?
Angola precisa de fazer reestruturações profundas que passam exactamente pela redução do tamanho do Governo. O aparelho do Estado tem de se tornar mais eficiente e o mais pequeno possível. Se começássemos a reduzir a despesa nesse lado, o Estado teria um encaixe adicional para os sectores em que quer investir. Por outro lado, há sectores da economia em que não se percebe por que ainda se faz sentir a presença do Estado. O sector da energia, por exemplo, está muito deficitário. Não se percebe por que não se liberaliza este sector e não se convidam empresas, com ‘know-how’ suficiente, para melhorá-lo. O mesmo acontece com o sector das águas e das telecomunicações. Quer dizer, temos sectores que poderiam, hoje, poupar recursos do Estado e aumentar receitas para o próprio Estado, em forma de tributação. É aí onde deveria incidir a política fiscal. Temos uma economia a crescer de forma sedentária com conceitos ou estrutura oligopolista, o que é muito prejudicial para a dinâmica da própria sociedade. A política tributária deveria fazer-se sentir num processo em que a privatização se faz sentir também. Aquelas empresas públicas que, noutrora, consumiam recursos, passariam a produzir recursos para os consumidores ao mesmo tempo que produziriam, de forma directa e indirecta, receitas para o Estado. É a partir daí onde deveríamos começar a falar numa reforma fiscal para actuar na economia.
Ainda sobre os impostos. É contra ou favor da implementação do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) na economia nacional?
Angola não tem condições para implementar o IVA. Há uma má interpretação do que é o IVA. O IVA é um outro valor acrescentando ao produto que compramos. Imaginemos um cidadão com valor aquisitivo zero e você traz o IVA para cima dele. O que estaria a fazer senão a matá-lo? Vamos esperar que essa crise passe e que o poder aquisitivo se vá restituindo. Vamos esperar que os salários consigam corresponder ao custo de vida para, só depois, implementar o IVA. Nesta hora, quando se fala em IVA, está em causa meramente uma política extractiva. Ele (o IVA) vai ‘espremer’ o dinheiro do povo, vai descapitalizar o povo e tornar a economia ainda mais difícil porque as pessoas não terão dinheiro. Portanto, para mim não era o momento adequado para a sua implementação. O IVA é um valor acrescido, que é bom para o Estado, mas só quando o rendimento do cidadão for capaz de sustentar o custo de vida e ter uma poupança mínima. E quanto à efectivação das cobranças de outros impostos, como o predial urbano (IPU)? A nossa base tributária é muito pequena para que esses impostos tenham um papel grande na economia. Devíamos dilatar a base tributária através de investimentos. É isso que o Governo deveria fazer mais, ou seja, investir mais no sector produtivo para que a base tributária seja grande e, assim, conseguir alarga-la. Não se pode tributar uma coisa pequena. Então é preciso esperar que haja investimento elevado no sector produtivo para que depois, progressivamente, seja aumentando a base tributária. E isso é o que não está a ser feito.
É contra os impostos?
É claro que se tem de pagar impostos, mas onde é que vão sair os dinheiros para se pagarem os impostos? Uma medida dessa natureza força as empresas a pagar, levando a que muitas delas fiquem descapitalizadas ou vão à falência. Ou seja, de um lado, faz-se a captação de dinheiro através dos impostos e, do outro, vão falindo empresas. E assim, vão falindo também os consumidores, porque as pessoas perdem o emprego. São políticas que podem criar situações positivas para a economia, quando houver condições e que podem criar perigo para a economia quando as condições na economia são péssimas. E, nessa altura, falar muito em impostos é um perigo para a nossa economia.
Voltando ao investimento público, não acha que a presença de um sector privado forte na economia depende também de um maior investimento a nível das infra-estruturas, ou seja, do investimento público?
As pessoas que hoje desempenham a função de nossos líderes é que devem ter mais capacidade de observar o que é mais importante para a Nação nesta hora. É importante termos uma ENDE estagnada como está? Penso que não! Então, convidemos os privados. Não vamos retirar na totalidade. Podemos deixar o privado com 60% e o Estado com 40%. Assim haverá mais capital privado misto e menos recurso à despesa pública, no seu todo. O Estado retirava-se paulatinamente e tornava-se o regulador. Essa experiência já existe em muitos países do mundo e o que se vê é que é muito benéfica. Nos países ricos, o Estado hoje praticamente não existe nesses sectores. E estes Estados são eficientes mesmo assim. Por isso, temos de estabelecer prioridades. Adoptar uma política dessa natureza estaríamos a poupar recursos para investir nos sectores da saúde e educação, sectores primordiais, e o Estado assumiria a sua responsabilidade. É uma questão de analisarmos a relação entre o custo e a realidade. É nisso que nós, em África, ainda continuamos estagnados. África tem de mudar de comportamento, porque, se as outras economias saíram desse processo e estão onde estão, também podemos sair e seguir o mesmo caminho. Este é o erro que continua a predominar em África.
Mas o investimento em infra-estruturas, na sua opinião, deve ou não ser privilegiado?
Isto é uma questão ‘sine qua non’ que deveria ser assegurada antes. Passámos por fases designadas de ‘gold age’, onde tínhamos recursos para fazer este investimento e não fizemos. Agora vai ser-nos muito duro fazer as infra-estruturas, porque não temos dinheiro e a nossa dívida vai crescendo. Quem vai aos EUA, à Inglaterra ou à China facilmente repara que a portagem é um processo importante para a recuperação do investimento que se faz nas infra-estruturas. Mas quem sai de Luanda a Malanje não vê nenhuma portagem. Não porquê, quando até temos um fluxo de transporte diário a nível das estradas? Estas receitas das portagens seriam uma mais-valia para a recuperação das próprias vias. O Estado, por si só, não terá recursos para construir as estradas, se estiver somente à espera que os próprios utentes da via paguem para a sua manutenção. Devemos direccionar as políticas para aí, no sentido de que o Estado participa e o concidadão também.
Fala numa dívida grande, mas o Governo continua a defender que a dívida pública é sustentável. Em termos referenciais definiu-se o limite dos 60% do PIB e, este ano, deve consumir, em termos de serviço da dívida, 32% do OGE. São números preocupantes?
Estamos a falar em números não realistas. O nosso maior medo é sobre se esta dívida é ainda maior do que se diz. Mas este valor já é muito elevado, porque, quanto maior for a dívida pública, maior será o custo do reembolso. Esperemos que seja mesmo este o valor porque, se for maior, teremos problemas de captar financiamento lá fora. Aqui só há duas hipóteses. Uma é ser transparente, dizendo que se precisa de uma assistência de grande dimensão, porque o ‘meu estado de saúde real’ é este. A outra é esconder o ‘nosso caso de saúde’ e começar a dar a impressão de que estamos saudáveis. Vamos fazer um levantamento exacto sobre qual o valor da nossa dívida pública. E, se concluirmos que, com o valor encontrado, não conseguimos avançar, então vamos ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para termos um programa mais abrangente, de modo a salvarmos a nossa economia. Se continuarmos a omitir informação, estaremos a perigar a recuperação e o crescimento do país.
O Governo projectou, ainda assim, um crescimento da economia na ordem dos 1,2% para este ano...
Fala-se no crescimento a este nível, é muito bom. Vamos esperar que a recuperação do preço do petróleo possa contribuir para isso. Entretanto, temos um crescimento muito desequilibrado que não é capaz de corresponder à expectativa da população. Porque não vai ser um crescimento no sector produtivo. É mais uma recuperação a nível dos petróleos, que é o sector extractivo. Só vamos começar a ver uma Angola estável, se o preço do petróleo se mantiver entre os 55 e 60 dólares, nos próximos quatro anos. Aí vamos ver uma retoma saudável da economia. Para este ano, seria muito milagre dizer que a recuperação económica vai criar um bem-estar. Não é possível!
O empresariado continua a reclamar sobre os níveis de financiamento dirigidos à classe, que consideram ínfimos. Como avalia, em particular, o papel da banca na economia?
A banca angolana está mal estruturada e mal disciplinada. Esta banca é praticamente um cartel. São as mesmas pessoas que têm acções em vários bancos. Estas pessoas não concorrem. Fazem políticas para favorecer os seus interesses. Os relatórios dizem que a banca está a crescer e, de facto, está.
Dizem também os relatórios que os bancos estão a fazer lucros, também é verdade. Mas agora, qual é o beneficio para a economia? Zero, porque, mesmo dando crédito, a banca se retraiu. Alega que tem medo, mas continua a captar poupanças. Portanto, é preciso que haja um diploma anti-monopolista para se quebrar o vício que está na banca. Nesse processo, embora se fale de vários bancos, a verdade é que não há concorrência entre os bancos. E mesmo a taxa de juro cobrada, para quem quer tomar investimento, é muito elevada. É verdade que também a banca não pode ser muito responsabilizada, mas é preciso que haja alguém com coragem para disciplinar isso.
O Banco Nacional de Angola (BNA) não tem feito este papel?
Alguns discursos do governador têm dado a indicação de que o BNA é uma instituição que ainda não está capacitada para corrigir esta anomalia. Alguma reforma está a ser feita, mas o BNA precisa de pessoas competentes para fazer face a isso.
A preocupação do BNA era fazer uma ‘luta’ enorme para que a sua política monetária pudesse vir a ter um controlo sobre a inflação e a estabilidade cambial.
Depois disso, o BNA poderá, sim senhor, ter uma intervenção directa na banca comercial. Se o BNA não conseguir tomar medidas que venham a criar uma estabilidade cambial e o controlo da inflação, será meramente um instrumento de emitir dinheiro, receber poupanças e criar leis para as pessoas cumprirem. O que se pede, mais uma vez, é que o BNA passe por uma reforma grande. Ou seja, tem de se perceber exactamente o que é o BNA, como está estruturado. O BNA não está a dar a confiança de que se trata de uma instituição com capacidade ou poder de fazer uma intervenção directa com os bancos comerciais. É verdade que ultimamente algumas normas se fazem cumprir, mas ainda há muita coisa que passa.
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